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segunda-feira, 29 de julho de 2013

meu Chico de pé grande

Francisco. me disseram que de Assis. Conheço uma Assis, por conta de um amor desses da vida inteira que pra lá se foi pra se achar em si e se perder de mim. À época que a gente era uma tentativa de um, eu redescobria depois de longa temporada cética minha espiritualidade, costurada em crença ecumênica que mesclava estudos religiosos das "cinco grandes religiões". Numa mesma noite de estudos poderíamos citar Lao Tsè, Jesus Cristo ou Confúcio. Falava-se de virtude, de tesouros e de Caminho.
Aos poucos o coração acalmava. Havia me reconciliado com Jesus Cristinho tinha algum tempo - de frente pra uma fogueira em ritual xamânico. Sentia o cheiro da figueira naquela noite. A figueira e a fogueira. Uma era uma lembrança sensorial que me levava ao passado arquetípico, aninhado no mais profundo de mim. A outra me guiava pelo infinito. E eu vibrava "você precisa é falar de amor", oras. simples assim. e sorria. Compreendia que a potência do fogo tinha a ver com o seu abraço intenso na madeira. E suas chamas multicoloridas... quem nos ensinou a ver tudo assim com contornos tão nítidos?
Mais tarde um Coração em forma de gente me guiava para me aprofundar ainda mais nos ensinamentos espíritas. Eu que creditava a minha desconfiança à doutrina organizada em texto por Kardec pelo álibi de "eles são muito positivistas", revia diante de mim aquelas palavras sobre os dons mediúnicos e me abria, de novo, para outras facetas de mim. Mais uma vez o palco não era um templo organizado, instituído de longa data. Era uma garagem. Poucas pessoas. Livros impressos. Foi diante de livros, por sinal, ali, empilhados na mesa, que senti o corpo ser habitado. ser cavalo. a mão que gira em torno do corpo, que dá a volta ao mundo e que se chacoalha com o barulho do metal: "o senhor que ir até a porta de casa?" Ogum. - entendi o gosto pela estrada e a dificuldade da parada. Entendi o gosto pela construção dos meus mais próximos: mãe, pai e avó. Ai esse axé... não deixo de cantar ao acender o incenso e rodeá-lo pela casa a canção que eu aprendi na casa de Umbanda que tão bem me acolheu nos últimos anos de Araraquara: "tô incensando, tô perfumando, a casa do bom Jesus da Lapa..."
Confesso que a solidão paulistana me distancia de mim mesma. As promessas de meditar, de ir a algum dos abrigos que a minha alma sentiu-se a vontade... o álibi parece tempo, parece perdição. Mas trouxe pra pauliceia um Francisco. Eu queria um Chico. Um outro ex parceiro de vida sempre me lembrava do Chico pé no chão. Da biblioteca que ele erguera num educandário abençoado pelo menino de Assis. Arranjei num é que foi um Chico mesmo de pé grande e no chão? Meu companheiro olha pra ele e diz: "e Francisco de Assis lá era gordo?". Não. Não era. Mas essa imagem de Chico é do tamanho que ele tem pra mim. Sua cortesia imensa. Sua pança de abundância de amor. Como aquele buda sorridente e gordo que eu vira outrora na casa dos amigos orientais. 
Ele ali com seus pássaros. Seus olhos encolhidinhos como quem medita. Fica ali do lado da arruda pra queimar e do meu Santo Antônio de pano.
É, nasci e cresci criada católica. O apostólica romana a gente vai entender só mais tarde, não nas homilias do padre, mas nas aulas de história. E aí junta a sociologia, a antropologia, a ciência política e você já não suporta mais se ver respeitando uma estrutura hierárquica que remonta uma Roma decaída que primeiro mata o rebelde Cristo com seus dons mediúnicos todos abertos, de pulso forte, voz firme, cabeludo, barbudo e questionador da ordem das coisas para se apropriar do seu legado erigindo uma verdade que escraviza, cega. Mas não era assim que se processava em mim na adolescência. Foi de fato um acontecimento a primeira vez que comunguei, comia Cristo. No silêncio que imperava na hora de rezar no fim do dia ao travesseiro, eu conversava era com Nossa Senhora, que pensava que ela era mulher e ela sim devia de saber das coisa que se passavam em mim que nem eu mesma podia palavrar ali mesmo quieta na frente de Deus. Participei de encontro de Adolescentes com Cristo. No encontro dos Casais, envergonhei meus pais ao pedir a palavra, ainda miúda, pra dizer que "criança tem problema de criança" exigindo que nos tratassem como gente. - sim, desde pequena o sanguinho da fé se misturava com que mamãe chamava de "sanguinho Che Guevara".
Quando pisei na Unesp Araraquara pela primeira vez, minha mãe temia era pelo sanguinho Che Guevara. De fato o sanguinho da fé ficaria bem abalado com a vermelhitude que adentraria meus poros não apenas nas leituras teóricas, mas sobretudo nos movimentos do real. "não fica vindo muito nesse lugar" dizia ela ao olhar as paredes pichadas do vão dos Centro Acadêmicos.
Das muitas coisas que li - e nem são tantas assim, na verdade - nesses últimos anos, gostei da passagem que dizia que os problemas da matéria devem ser resolvidos na matéria: não á toa estamos aqui, encarnados, viventes. Aliás, um "teórico" que gosto muito - que foi preso na Rússia pós revolucionária por participar de reuniões religiosas - ele dizia sempre que a gente tem que se encarnar na vida, assumir nosso lugar único no tempo e no espaço. 
Vou me equilibrando aqui nessa coisa maluca que é crer  - desde os cantos da cabloca jurema, na força dos astros, na equanimidade dos budas, na força do pensamento, na costura divina, nos sonhos, nas cartas do tarô e tudo que elas trazem à tona ao meu inconsciente, nos orixás, guias, espíritos, ciganos, em Deus no céu e o Ventre da Mãe Terra. Sim. A matéria da mãe, berço. Dos filhos que sangram. No suor, na labuta. Na crença de que somos emanados por um princípio de Amor e Inteligência e que podemos e devemos criar um mundo aqui na matéria mais justo e humano. 
Me faltam muitas respostas, me sobram perguntas. 
Quero quebrar tudo. às vezes penso em não tocar em nada. 
Mudar o padrão de pensamento. Tocar o outro com o canto. Não sei.
Sei que não ia ficar feliz se quebrassem meu Chico - não gosto desse caminho, mas se for o caminho que for... Francisco. Gozado. 
Eu que nem sei quem vai me abençoar em enlace, sorri pro meu companheiro quando a gente num desses momentos mágicos concordou que "Francisco" é um bom nome pra menino. Ele, meu parceiro de luta. Da vermelhitude e de todas as cores desse arco-íris de existir. 

Ps.: não em esqueço nunca da vez que o pastor me chamou ao púlpito . me dera "oportunidade". Eu sou mesmo folgada. Na primeira eu gaguejei e agradeci por estar ali, sendo bem acolhida, naquela garagem que vira lugar sagrado a cada vez que as pessoas a fazem assim. Na segunda eu pedi licença para oferecer o que de mais sincero e melhor eu tinha e poderia ofertar: cantei. Minha então sogra mangou de mim dias e dias. (deve mangar até hoje).


 Faz de mim  instrumento de  paz.

Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Faz com  que eu procure mais
Consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois, é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.

Para Caio.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Sobre protestos, "baderna", juventude, repressão e jornalismo.

Vale a pena relembrar a entrevista de Darcus Howe para a BBC sobre os protestos que aconteceram em Londres como desdobramento da morte do jovem Mark Duggan e a grande repressão policial nas periferias londrinas. Esta é a matéria deste texto, apesar do título não parecer. Ele foi escrito para a conclusão da disciplina sobre Bakhtin e Augusto Ponzio e a filosofia da escuta, no primeiro semestre de 2012 e publicado neste mesmo ano no livro "A ESCUTA COMO LUGAR DO DIÁLOGO - ALARGANDO AS QUESTÕES DE IDENTIDADE", Pedro&João Editores, São Carlos.


A (NÃO) ESCUTA TELEJORNALÍSTICA

Isabela Morais[1]

Se você disser
tudo que quiser
então eu escuto

Fala – Secos e Molhados

Sobre falar e escutar

            Quando o pensador Augusto Ponzio[2] propõe uma linguística da escuta, muito mais do que uma menção ao dialogismo e toda a arquitetônica bakhtiniana erigida sobre a sua ampla noção de diálogo, o italiano nos propõe associar o exercício da interpretação, estudo da língua(gem) a partir da dimensão do ato ético, afirmando a integralidade do pensamento de Bakhtin e seu círculo onde as categorias filosóficas estão relacionadas com as categorias de interpretação dos sentidos de um texto, unindo forma, material e conteúdo.                                 
            Prestar-se a escutar a palavra do outro é um ato ético, pressupõe uma disposição para a comunicação que se esforça para entender o contexto de enunciação do outro, aquilo que ele intenta em dizer, a partir do lugar em que se situa, único no tempo e no espaço. Ainda que nossas contrapalavras sejam inevitáveis, escutar a fala do outro é ouvir não apenas as nossas respostas às falas de outrem, mas propriamente tentar compreender aquilo que o outro quer expressar, no sentido da sua existência. Por isso o escutar de Augusto Ponzio vem junto com o calar. Calar é o ato ético. Não implica em anular-se. Anular-se é negar a singularidade é ela mesma quem possibilita uma compreensão amorosa dos sentidos dos nossos atos.
            Aliar o ato ético da escuta não é cair a um relativismo pós-moderno de dissolução do sujeito. Todo o ponto de vista está enraizado sócio-historicamente. Ou nas palavras de João Wanderley Geraldi: “é preciso aprofundar a riqueza da diversidade sem cair na insensatez das regras fáceis de que tudo vale, que não há desigualdades a superar, que não há sentidos em circulação e compromissos entre leitores e autores”. (GERALDI, 2010, p. 48).

O (des)encontro de palavras

            Há sim muitas desigualdades parar serem superadas e que, antes de mais nada, devem ser encaradas. Trazemos para essa conversa um vídeo disponível na internet[3] com o excerto do Jornal da Cultura do dia 12 de agosto de 2011, exibido pela TV Cultura e apresentado por Maria Cristina Poli. Com um formato bem peculiar diante dos outros telejornais dos canais abertos, o Jornal da Cultura tem sempre na bancada a presença de dois intelectuais que gozam de plena liberdade para comentarem as notícias exibidas. Além do mais, a intervenção do telespectador é bem quista e de fato intervém no aqui agora do jornal.
            Agosto de 2011 ficou marcado na história do Reino Unido devido a uma série de protestos e tumultos desencadeados pela morte do jovem Mark Duggan pela polícia londrina. Entre os dias 06 e 10 de agosto, o tumulto tomou grandes proporções, encontrando ecos em outras localidades do país. O
vídeo em questão mostra a âncora do jornal iniciando uma conversa a respeito destes conflitos. Dentre as muitas histórias relacionadas aos acontecimentos na Inglaterra, afirma a âncora, está uma entrevista feita pela BBC com um morador da periferia da cidade. Após uma breve apresentação, ela introduz ao vídeo da entrevista que será exibida durante o Jornal dizendo que a apresentadora da BBC perguntara ao entrevistado se ele estava chocado com o que viu nas ruas de Londres.
            Passamos então a assistir a tal entrevista.



 Como de praxe no jornalismo, a âncora do jornal britânico, Fiona Armstrong, pergunta já sugerindo uma resposta “você está chocado?”. Mas os produtores do jornal talvez não contassem com a resposta do entrevistado. Munido de serenidade e clareza, o entrevistado, Darcus Howe, responde que não.
Não, não estou. Eu vivo em Londres há 50 anos e muitos momentos diferentes. Mas do que tenho certeza, ouvindo o meu neto e o meu filho, é que alguma coisa muito muito séria estava para acontecer neste país. Os líderes políticos não tinham nem ideia, a polícia não tinha nem ideia. Mas se você olhar pra os jovens negros e para os jovens brancos e prestar atenção no que eles estão dizendo... mas não ouvimos! Eles estão nos contando, e nós não estamos ouvindo, o que está acontecendo neste país. Para eles...[4]

            É neste momento que Darcus Howe é interrompido pela âncora Fiona. A jornalista parece estar inconformada com a resposta do entrevistado. Ela novamente o interpela, tentando trazê-lo a si, tentando demonstrar o quão absurda é posição de “não estar chocado” com os acontecimentos. “Sr. Howe se você pudesse parar só por um momento... Você está dizendo que não está chocado e nem condena o que aconteceu na sua comunidade na noite passada?”, diz ela.
Howe responde: “Claro que não! Por que eu condenaria? O que me preocupa é havia um jovem chamado Mark Dogan. Ele tinha uma casa, ele tinha irmãos, tinha irmãs e a poucos metros do lugar onde ele mora, um oficial de polícia estourou sua cabeça com um tiro.”
Fiona começa a interromper sua fala novamente, mas desta vez Howe se altera e pede para que ela o deixe continuar. Ainda assim Fiona prossegue. Munida do discurso legalista, a jornalista diz que “é necessário esperar a conclusão do inquérito policial para dizer uma coisa dessas. Nós não sabemos o que aconteceu com Sr. Dogan”. E ela tenta novamente conduzir a entrevista: “Você estava falando do seu filho, do seu neto...”
            Howe, que não parara de falar um só instante, recebe novamente o close do vídeo, o áudio e o silêncio de Fiona e prossegue:

Eles [os policiais] tem parado e revistado os jovens negros sem motivo algum. Eu tenho um neto, que é um anjo. Precisamos começar a pensar. Ele vai crescer, um policial vai enconstá-lo contra parede e revistá-lo, mesmo que não haja motivo e ele não vai ter a quem recorrer. Então penso que alguma coisa séria está acontecendo neste país. Eu perguntei a meu filho ‘quantas vezes a polícia já parou você?’ e ele disse: ‘papai, eu já não consigo contar, de tantas vezes que isso aconteceu’.

            A âncora então afirma que isso não é motivo para sair promovendo desordens, distúrbios, quebrando tudo, como temos visto nos últimos dias. A resposta é clara e enfática: “Eu não chamo isso de desordem. Isto é insurreição popular. Está acontecendo na Síria. Está acontecendo em Clapton. Está acontecendo em Liverpool.(...) E essa é a natureza do momento histórico em que estamos vivendo.”
            Fiona recebe novamente aparece no vídeo e reiteira “O que estou perguntando é se o senhor não está preocupado com os distúrbios, está? O senhor tomou parte dos distúrbios?”
            Darcus Howe indignado responde:
Eu nunca participei de nenhuma desordem. Eu participei de algumas manifestações que terminaram em conflito. Tenha algum respeito por um velho imigrante negro das Índias Ocidentais e pare de me acusar de ser um desordeiro. Eu não estou aqui para ser ofendido. Isso é tão idiota. Tenha algum respeito.

            Um tanto constrangida, Fiona Armstrong agradece a Darcus Howe pela participação, seguindo o protocolo jornalístico e deixamos de ver o rosto do velho negro indignado. A apresentadora do Jornal da Cultura, então, retoma a fala, agradece o telespector que enviou o link com a entrevista e então a banca começa a discutir a entrevista.

Palavra: signo ideológico por excelência

            Escolhemos tal entrevista por ser uma triste ilustração daquilo que o círculo de Bakhtin quis dizer ao afirmar que a palavra é a arena da luta de classes. Esta entrevista nos possibilita também problematizar essa “idade mídia”, como gosta de dizer Geraldi onde:
Usar o controle remoto para trocar de canais, eis a caricatura desta liberdade vigiada, regulamentada, normalizada, em que nos isolamos numa suposta interioridade de leitores-expectadores condenados a ler o mesmo e sua reprodução nas inúmeras novidades que as programações de televisão oferecem, seja esta novidade a passagem veloz de um fragmento de notícia para outro, deslocando-nos todas as noites pelo mundo sem que dele apreendamos a história de sua construção, seja esta novidade o retorno cada vez mais insistente dos mesmos quadros, das mesmas estruturas, dos mesmos risos sobre os mesmos estereótipos, quase sempre preconceituosos. Na idade da mídia, a relação do aparelho de tevê talvez seja a melhor síntese do isolamento do sujeito, apertado pelos círculos que o individualizam e que simultaneamente lhe exigem ser regulado, igual aos outros e autêntico. (GERALDI, 2011, p. 42 – grifos nossos)

            Fica clara aqui a atitude da jornalista em direcionar a opinião do entrevistado. Ela gostaria que ele tivesse dito algo que não disse. A partir da negativa de Howe a âncora tenta muitas vezes mostrar o absurdo que é não ser contrário aos “distúrbios e tumultos”. Esta primeira negativa dele foi o suficiente para deixá-la indignada a tal ponto de não conseguir acompanhar a construção de sua argumentação. Argumentação essa que aponta justamente na direção do que Geraldi aponta na citação há pouco citada, ou seja, explicitar o processo histórico, o meio através do qual os processos se dão.
            Segundo Walter Benjamin (1994) no seu texto “O Narrador”, a imprensa, um dos mais importantes instrumentos da consolidação do alto capitalismo, instaurou uma nova forma de comunicação: a informação, que aspira a uma verificação imediata, podendo ser compreensível “em si e para si”. Se as narrativas da tradição oral são estranhas a essa nova comunicação, também o é a capacidade de elucidar as mediações dos processos históricos.
Na superficialidade dos acontecimentos é de fato plausível que “os cidadãos de bem” condenem carros e prédios queimados, lojas saqueadas. A tentativa de Darcus é associar, entretanto, tais acontecimentos com a crise estrutural do capitalismo, que vem se agravando desde a década de 1970, gerando um desemprego estrutural nos países centrais além da falência do estado de bem estar social e a degradação dos direitos sociais e trabalhistas. Enxergar os protestos enquanto sintoma, enquanto uma resposta a uma determinada conjuntura social.

A metáfora crítica do corpo grotesco e a consciência do processo histórico

Darcus rompeu com o esperado do gênero do discurso “entrevista ao vivo em telejornal”. Geralmente, este espaço é utilizado menos para um debate do que para uma mera ilustração do ponto de vista dos editores do telejornal sobre o fato noticiado. Geralmente se espera uma postura conservadora de um velho senhor diante dos jovens. Uma imagem bastante cara à arquitetônica bakhtiniana bastante desenvolvida no trabalho sobre Rabelais é a ligação entre o velho e o novo, a morte-prenha, a velhice que consegue louvar o novo. Estas imagens estão ligadas ao realismo grotesco. Susan Petrilli[5] considera o corpo do realismo grotesco como uma metáfora contra o individualismo burguês e afirma:

A metáfora do corpo grotesco na sua expressão carnavalesca ajuda a destacar/evidenciar a dinâmica do contraste entre duas visões de mundo dentro da mesma cultura: por um lado, o corpo individualizado e fechado, autossuficiente e isolados em relação a outros corpos, por outro lado, o corpo de protuberâncias e interstícios, situado numa relação intercorpórea,  conectado externamente com outros corpos; e, respectivamente, por um lado, a lógica fechada da identidade, por outro lado, a abertura para o outro com dialógica alteridade extralocalizada. (PETRILLI, 2012 – tradução nossa)[6]

            A postura de Darcus Howe é em si contestatória da ordem burguesa, individualista e de visão fragmentária e a imagem do velho que não nega o novo, mas ao contrário se alimenta dele, está em consonância com ele, numa relação de alteridade e proximidade gera o sentido de crítica e por isso destoa, se destaca, choca.
            Um ponto que merece ser destacado dessa entrevista é o momento em que Darcus afirma que o jovem foi morto pelo policial. Mais uma vez a postura de Howe quebra o protocolo da entrevista. A afirmação convicta tem a força das conversas do cotidiano, todos nós a despeito da oficialidade dizemos e afirmamos coisas a despeito das provas conclusivas de inquéritos oficiais. O discurso legalista de Fiona contrasta frontalmente ao de Howe quando ela o adverte que não se pode falar algo “tão grave” sem que o inquérito esteja concluído. Aqui cabe salientar: não se pode dizer ali, ao vivo, em rede nacional, em lugar social definido. Como já dissemos, nos discursos do cotidiano é possível que aquela seja a forma com a qual este assunto é tratado: o policial matou o jovem rapaz.
            Em seus trabalhos, o sociólogo Loic Wacquant afirma que
a crescente criminalização a que estão sujeitos por toda Europa os militantes dos movimentos sociais de desempregados, de sem-teto e contra a discriminação (...) não pode ser entendida fora do sentido amplo da penalização da pobreza, elaborada para administrar os efeitos das políticas neoliberais nos escalões mais baixos da estrutura social das sociedades avançadas. (WACQUANT, 2008, p. 93).

            O sociólogo francês tem muitos trabalhos em que demonstra que o avanço do neoliberalismo é concomitante a uma política crescente de penalização da miséria e encarceramento em larga escala. Logo, estas intervenções policiais que Darcus denuncia, contra seu filho e os demais jovens negros dos subúrbios londrinos, fazem parte de uma política clara e já diagnosticada:
As agressivas práticas policiais e as medidas de encarceramento adotadas hoje no continente europeu são parte integrante de um processo mais amplo de transformação do Estado, que foi posto em marcha pela mutação do trabalho assalariado e pela reversão da balança do poder, tanto na relação entre as classes como na luta dos grupos pelo controle do emprego e do Estado. (WACQUANT, 2008, p. 93).

Ecos brasilianos

            A ação policial britânica já foi notícia no Brasil quando do assassinato do brasileiro Jean Charles de Menezes em um metrô, alvo de oito tiros.  As justificativas da morte basearam-se na aparência e em “condutas suspeitas”. E conforme contam Roberto Barros e Margaret Mcadam (2005):
Segundo as políticas criminosas do governo britânico, a sorte de Menezes foi traçada pela cor de sua pele. Os amigos do eletricista disseram que Jean havia sido revistado anteriormente pela polícia, além de já ter sido hostilizado por grupos de jovens neofascistas. (MCADAM e BARROS, 2005, s/p)

Não se trata aqui de traçar um maniqueísmo entre os países. A arquitetônica bakhtiniana não nos permite cair na cilada das identidades, que engessam as possibilidades das singularidades e seus devires. Basta lembrar que recentemente o britânico Roger Waters, ex-baixista da lendária banda de rock progressivo Pink Floyd, esteve no Brasil com a turnê do show The Wall e dedicou o show, que é todo permeado por uma forte crítica ao autoritarismo, às guerras e ao individualismo, ao brasileiro Jean Charles “e sua família pela luta pela verdade e justiça e a todas as vítimas do terrorismo de Estado”[7]. A menção a Jean Charles não fora uma mera política de boa vizinhança do roqueiro com o público brasileiro. Não foi apenas nos shows realizados no Brasil que Jean foi lembrado, mas sim em todas as apresentações da turnê. Ao final da clássica canção Another Brick in The Wall pt II, conhecida pela crítica ao autoritarismo na educação, é projetado no muro enorme um metrô em movimento e o ouve-se o barulho do mesmo nas caixas do equipamento de som quadrafônico espalhadas pelo local do show. O rosto de Jean Charles aparece projetado no telão e em seguida sua ficha:
Jean Charles de Menezes
Civilian
Born 1978
Brazil
Died 2005
Stockwell Road
Tube Station
London, England




            Não se trata mesmo de fazer maniqueísmo de identidades nacionais. Até porque se voltarmos à prática que não escuta do telejornalismo, temos um exemplo nacional. Teríamos muitos, mas temos um ainda dentro da conjuntura dos tumultos de agosto, ou nas palavras de Darcus Howe, da insurreição popular. Em vídeo também disponível na internet[8], podemos assistir a um jornal da Globo News entrevistando o sociólogo Silvio Caccia Bava sobre as efemérides inglesas. O início da entrevista (e cabe salientar que toda ela) é bem parecido ao da BBC, o jornalista começa a conversa já colocando seu ponto de vista e esperando uma confirmação do entrevistado:
Bom, Silvio, a gente viu nessas imagens, me parece que o estopim foi o protesto contra a morte do jovem nesse tiroteio com a polícia, mas o contexto social parece ter se perdido, né? O fundamento dessas manifestações. O que tá acontecendo agora, na sua visão, é que pessoas e jovens estariam aproveitando o caos para praticar crimes?

O sociólogo responde, sorrindo: “Não. Eu não vejo assim” e inicia uma argumentação muito parecida com os argumentos expostos aqui tanto de Darcus Howe quanto do sociólogo Wacquant sobre a criminalização da miséria e dos movimentos sociais que se insurgem contra as condições nas quais vivem esses jovens, que sofrem com a presença intimidatória da polícia além do alto índice de desemprego:

Quando morre então Marc, assassinado pela polícia, segundo todas as indicações, não é?, há uma manifestação de cerca de 300mil pessoas, familiares e vizinhos, que vão à delegacia pedir satisfações e durante quatro horas eles ficam lá sem resposta. Quer dizer, eu tô entendendo que o que há é uma falta de canais institucionais, políticos para apresentar demandas e pra encarar uma situação que também tem seus reflexos decorrentes da crise financeira[9].

            A fala de Caccia Bava elucida a falta de voz dessa população marginalizada. O Estado se omite em relação aos direitos, mas é bastante presente no quesito repressão. De forma análoga, é uma tendência da imprensa em não abrir espaço para essas vozes. As duas entrevistas aqui são brechas, de duas pessoas que aproveitaram do momento único e irrepetível e não foram impostoras, não apenas ritualizaram, para lembrar as expressões de Augusto Ponzio, mas foram responsáveis em seus atos e ocuparam seu lugar único no tempo e no espaço e através de suas vozes fizeram ecoar essas vozes que gritam sem ninguém para ouvir.

Exercício da escuta das brechas do singular e seu devir

            Poderíamos ter iniciado nossa conversa falando diretamente da entrevista da BBC, sem mencionar a mediação feita pelo Jornal da Cultura. A ideia foi justamente não cair nas teias tentadoras da generalização, que não nos permite vislumbrar as potencialidades das singularidades em seus devires. Se a atitude dos jornais da BBC e da Globo News converge com a postura recorrente da cultura jornalística, por onde ecoam as vozes hegemônicas da sociedade, a postura do Jornal da Cultura foi diferente, neste episódio singular. No limite, foi ética. Participou do exercício da escuta.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Ed.HUCITEC - Ed. UNB, 2008.
_______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______. (VOLOCHINOV) Marxismo e Filosofia da Linguagem problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 8. ed.  Tradução por Michel Laud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997.
_______.Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Carlos Alberto Faraco e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BARROS, Roberto e MCADAM, Margaret. ‘Somos todos Jean Charles!’ Contra o terrorismo de Estado e a escalada criminosa, xenófoba e racista de Blair & Bush. Publicada em 07 de setembro de 2005. Disponível em http://www.pstu.org.br/internacional_materia.asp?id=4146&ida=0
BENJAMIN, Walter. O narrador. In. Magia e Técnica, Arte e Política Ensaios sobre literatura e História da Cultura - Obras Escolhidas Vol 1. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
GERALDI, João Wanderley. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
MCADAM, Margaret e BARROS, Roberto. "Somos todos Jean Charles!".  Jornal Semanal Opinião Socialista, São Paulo, Ed. 230, set./2005, p.16.Também disponível em: <http://www.pstu.org.br/jornal_anteriores_capa.asp?ed=108>.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.
_______. Encontros de palavras: o outro no discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
_______. Procurando uma palavra na outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
WACQUANT, Loic. As duas faces do gueto. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.






[1] Mestranda em Sociologia/Ciências Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara. Bolsista CAPES. Orientador: Prof. Dagoberto José Fonseca.
[2] Referimo-nos aqui a seus trabalhos recentemente publicados em português pela editora Pedro&João, mas também, e sobretudo, ao curso ministrado entre 12 e 23 de março no Brasil, mais especificamente em São Carlos e Araraquara/SP, respectivamente na UFSCar e na Unesp.
[3] http://www.youtube.com/watch?v=SQ6eI-XWPrM
[4] Depoimento de Darcus Howe, em 09 de agosto de 2011, para a BBC de Londres.
[5] As ideias abordadas aqui estão presentes nos últimos trabalhos da autora que estão em fase de tradução para o português. Tais ideias foram explicitadas durante o curso ministrado no Brasil, mais especificamente em São Carlos e Araraquara, respectivamente, na UFSCar e na Unesp, entre os dias 12 e 23 de março. A autora também nos cedeu algumas anotações em italiano que serão utilizadas aqui.
[6] O texto original das anotações de Susan: La metafora del corpo grottesco nelle sue espressioni carnevalesche contribuisce ad evidenziare la dinamica del contrasto fra due visioni del mondo all'interno della stessa cultura: da una parte, il corpo individualizatto e chiuso, autosufficiente e isolato rispetto alla relazione con altri corpi, dall'atra, il corpo fatto di protuberanze e interstizi, situato nella relazione intercorporea, collegato all'esterno con altri corpi; e, in corrispondenza a ciò, da una parte, la chiusa logica dell'identità, dall'altra, l'apertura verso l'altro secondo la dialogica dell'alterità extralocalizzata.
[7] Fala de Roger Waters durante os shows realizados no Brasil – Porto Alegre (25 de março de 2012), Rio de Janeiro (29 de março de 2012) e São Paulo (1º e 03 de abril de 2012). A reprodução da fala está disponível também nas seguintes reportagens:  http://musica.terra.com.br/noticias/0,,OI5685077-EI1267,00-Roger+Waters+destroi+muro+e+homenageia+Jean+Charles+em+turne.html e http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/03/homenagem-de-roger-waters-emociona-pais-de-jean-charles-no-rs.html
[8] http://www.youtube.com/watch?v=HI1YSPHVeIA
[9] Depoimento de Silvio Caccia Bava para o jornal da Globo News disponível no referido link citado em nota anterior.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

resposta ao tempo.

Quando eu era pequena a Xuxa me contava que São Paulo era a terra da garoa. Não sabia o que era garoa, mas eu cantava aquilo com uma verdade... garoa rimava com gente boa "que gosta-de-trabalhar". Eu tenho mania de ficar colando os acontecimentos da vida, numa teia de sentidos nos quais cada passo do hoje é de fato um fruto de algo que o ontem plantou - consciente ou inconscientemente. No segundo caso, essas costuras feitas por tecelãs da roda da fortuna, ou simplesmente, pra os que creem assim, o dedo do acaso,  as escritas tortas de Deus.
A primeira grande piada pronta é que com o passar dos anos o verso "terra-da-garoa" virou a afirmação enfática: "eu nunca vou morar em são paulo!". Afirmação tão enfática quanto "não vou viver de música". Em março de 2013 - já que o mundo não acabou - cá estou em São Paulo pra cantar.
Mas parece que a vida costura e nos prepara sem que a gente saiba. Lembro de quando eu andei pela primeira vez ao lado do muro que cerca os trilhos da estação Barra Funda. Eu triste e cinzenta por dentro como sampã me figurava. Um amigo querido, de distâncias e acasos, me vinha fazer companhia numa chá de cadeira rodoviário. "Vamos nos ver! Preciso ir até a Barra Funda, me encontre lá!". O palmeirense me mostrava sem querer, indo comprar o ingresso para o clássico do domingo, a trilha que eu passaria a fazer cotidianamente anos mais tarde. Não há um só dia em que eu não lembre do sorriso dele/Deni e das nossas caminhadas ali.

Minha história com o metrô Sumaré é mais recente.

Ano passado eu e conheci Danilo Gusmão, finalmente. E no espaço de uma viagem de ônibus já éramos grandes amigos de vidas. Uma das muitas coisas em comum, além do amor da Caroline, era o frisson que a música independente paulistana causava nos nossos ouvidos. Fomos confabulando sobre o bate-papo de Romulo Fróes e Walter Garcia sobre o tal "fim da canção". Em Minas, a gente tocava na mesa de jantar "A música da mulher morta", do Passo Torto - e eu tinha achado outro doido como eu.
Danilo Gusmão é parideiro de canções e as canta com o Castanho Raso. E o Castanho Raso ia tocar finalmente em palco paulistano: "Isa, canta com a gente?". Dan queria que eu cantasse "Conexão" composição dele. A essa altura, convite aceito, eu estava na Pauliceia pra assistir na famosa Casa de Francisca, que invadia meu feed araraquarense de notícias, o show do Passo Torto, sim, em São Paulo, eu estava, de novo. Ganhei um abraço do Rômulo Fróes naquela noite antes do show. De cantadeira oculta de "No chão, no chão", ele me reconhecia de posts e fotos facebuquianas, eu, seguidora de cliques desses personagens do cancioneiro paulistano. Pós Passo Torto, lá estávamos na casa da Ju - casa que me receberia pelo meu primeiro mês paulistano, meses depois. Leo, Dan e eu fazendo o arranjo vocal pra Conexão. Noutra vinda Leo já tinha soltado "você precisa conhecer um trio de amigos meus... acho que é o som que você tá precisando fazer..."


Semana do show. Lá vou eu, de novo, mais uma vez em tão pouco tempo pra São Paulo. Dan marcou ensaio. "É perto do metrô, Isa". A gente desce então na linha verde as 8 da manhã com teclado, amplificador, prato e caixa de bateria e gente. muita gente. Na saída do trem tinha vidro e rosto de gente com letrinhas na cara. Nas escadarias que nos levavam a rua, eu via a cidade ao longe, o viaduto, a avenida movimentada e aquilo era poesia concreta demais pra não ser fotografada. Caminhamos dali pro estúdio.

"Isa, e se você fizesse a capella "Olhos da Cara" do Romulo?" - completava o convite, Danilo.
A voz de Dona Inah ecoava na minha cabeça. Rouca. Imponente. Exata. Emocionada.

Dois dias depois, o tal trio que o Leo havia falado "vocês têm um nome?" - "Ogã". Trio Ogã. "Mas o que que tá acontecendo?" - Paulinho queria saber. Aliás, Paulo, Felipe e Gian. Esses três nomes juntos já tinha dado rock por outras bandas. e bom rock.
Cantei. Me impolguei. Fiquei feliz. Me caguei de medo e pensei: "mas São Paulo é tão grande, é tanto concreto..."

Eu vim.
Meses depois, eu tô aqui. Pra ir ensaiar com o Trio Ogã, eu vou até o metrô Sumaré. de lá, Paraíso. Hoje voltamos do ensaio, eu e Felipinho. anjo da guarda. Essa rede bonita de gente que se conecta nessa costura doida do "acaso".

No meio do caminho ele me convida pro tal chorinho que rola de segunda-feira do lado da sua casa. já tinha ouvido falar já. Descemos então na nossa já conhecida e cheia de suor linha Sumaré. Passo em frente ao bar quase todo dia de ônibus. É vibe boa. Sempre tem gente interessante, pra quem vê da janelinha.

Um pastel. Prosa. Suco de Laranja. Cansaço. Outro pastel. Suco de laranja e uma hora esse choro começa.
O povo chorão começa a chegar e logo o Felipinho solta: "você precisa ver a dona Inah! Ela sempre vem aqui! Nossa! Ali ela! Acabou de chegar!"

Sim. A voz que ecoou e me ensinou a cantar a primeira música que eu fiz aqui nessa cidade, num fim de semana que mudou tudo e me trouxe pra cá entrava em corpo alma e simpatia pelo bar e parava diante da mesa que eu estava: Dona Inah!
"Essa é a Isa. Ela é cantora"
"Ah é? Que bom. Tem que fazer o que gosta. Vai em frente!"
Contei pra ela que cantei "Olhos da Cara" que ela tinha gravado com o Rômulo: "ele é doido!", ela disse.

Me segurei com a tietagem. Custo a aprender que é tudo gente como a gente e que é bem mais da hora olhar os olhos na mesma altura, feito truta e não ninguém de cima pra baixo. Sorri. Perguntei um gole da vida dela. E reparei na pequenininha. Mãos pequenas como as minhas. Eu tenho mãos pequenas como as dela. Reparei nos causos. Nos silêncios. "Leva ela lá na quarta!"

depois de mais alguns choros, a gente veio embora.
eu e o felipinho. ele me conta da primeira vez que fez um som com a dona Inah e que ela canta de quarta no ó do borogodó "vamos semana que vem?"
e caminhamos, fazendo planos das músicas que ainda vamos tocar.
e caminhando pompeia abaixo, eu sentia a tal garoa que a Xuxa cantava.
Garoa.
Caminhando em São Paulo.
Ali. "Cantora"
em casa.
com garoa na cara.
garoa e não a chuvinha de molhar bobo mineira. GA-RÔ-A.
aquele molhadinho no vento
um carinho da água no rosto.

garoa.
e sorria de costurar aquela noite numa meia dúzia de passos desses 25 anos de caminhada.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Lado Negro da Lua: uma reflexão sobre indivíduo moderno através do álbum Dark Side Of The Moon.

"Faz 25 anos que o álbum Dark Side Of The Moon deixou o Top 200 da Billboard após permanecer 741 semanas consecutivas na lista dos mais vendidos.
Recorde que até hoje ninguém superou", segundo nos conta o Bloco do Pink Floyd
 Aproveito a deixa da data e compartilho no blog um ensaio de ensaio que fiz para uma disciplina no mestrado sobre o álbum. O texto é de 2011 e já foi publicado em doses homeopáticas no facebook em março quando do aniversário de 40 anos do disco.




O Lado Negro da Lua:
uma reflexão sobre indivíduo moderno através do álbum Dark Side Of The Moon.






Isabela Morais[1]

Resumo:
O presente ensaio retende discutir aspectos da vida do indivíduo moderno a partir da análise das canções do álbum Dark Side Of The Moon (1973) da banda inglesa Pink Floyd. O álbum, que é considerado um clássico, esteve nas paradas de sucesso por 14 anos e ainda hoje vende 250 mil cópias por ano.  Além de compreender a conjuntura do disco, as situações que levam à sua produção, seu contexto, as buscas e expectativas dos seus criadores nos ajude a compreender a importância da obra, pretendemos aqui dialogar com a obra, especialmente naquilo que chamamos atenção logo no início: sua capacidade de sintetizar a vida do indivíduo no mundo moderno, desde a sua relação com o tempo, com a morte, com o dinheiro e, sobretudo, sua relação com o Outro. Para tanto iremos nos valer das imagens, sensações e ideias que a escuta do álbum nos suscita tendo em vista algumas leituras teóricas, além de percepções cotidianas, mediatizadas pela leitura sociológica.

Palavras-chave: Indivíduo, Alteridade, Pink Floyd, Dark Side Of The Moon, Alienação, Dialogismo.

                Se nos pedissem uma síntese do que é a vida do indivíduo moderno na sociedade capitalista e nos dessem apenas 45 minutos para forjá-la, não haveria nada melhor a fazer do que ouvir o álbum Dark Side Of The Moon (1973). O trabalho construído pela banda inglesa é considerado por muitos uma das mais importantes obras dos últimos cinquenta anos e para além dos comentários dos críticos, os números de sua popularidade confirmam tal diagnóstico: o álbum ficou cerca de 750 semanas nas paradas, entre os mais vendidos, aproximadamente 14 anos.
                Para além deste artigo, muito já foi dito sobre o disco. O documentário Classic Albums: The Dark Side of The Moon(dir. Matthew Longfellow, 2003) é engenhosamente construído, mesclando entrevistas e depoimentos dos quatro músicos então integrantes da banda: o tranquilo e sereno baterista Nick Mason, que lançou em 2004 o livro Inside Out – A personal history of Pink Floyd; o saudoso tecladista, falecido em setembro de 2008, Richard Wright – indubitavelmente o grande músico, compositor das mais belas harmonias não apenas do disco, mas também de toda a história do Pink Floyd; David Gilmour, com sua guitarra precisa e melódica; e Roger Waters, o baixista e o mais importante letrista do grupo, após o afastamento em 1968 do sempre citado fundador da banda, o criativo Syd Barret. O documentário conta também com depoimentos de críticos musicais e pessoas envolvidas na produção do disco, como Alan Parsons, que cuidou a engenharia de som do disco.
                É possível conhecer mais dos bastidores da gravação lendo The Dark Side of the Moon: Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd, de John Harris (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006).
Ainda que compreender a conjuntura do disco, as situações que levam à sua produção, seu contexto, as buscas e expectativas dos seus criadores nos ajude a compreender a importância da obra, pretendemos aqui dialogar mais diretamente com a obra, especialmente naquilo que chamamos atenção logo no início: sua capacidade de sintetizar a vida do indivíduo no mundo moderno. Para tanto iremos nos valer das imagens, sensações e ideias que a escuta do álbum nos suscita tendo em vista algumas leituras teóricas, além de percepções cotidianas, mediatizadas pela leitura sociológica. De forma alguma iremos desprezar ou ignorar a contribuição as impressões e depoimentos de seus criadores e demais críticos. Mesmo porque, depois de tê-las lido, necessariamente nossa opinião e impressão se modifica, abrindo possibilidades de análises até então não vislumbradas. Mas a centralidade desse exercício de estabelecer diálogo com um álbum de quase quarenta anos está justamente na crença de que ele perdura no tempo enquanto um clássico por ter uma vida própria, que vai para além do seu contexto, devido à universalidade de seus temas.
                Acreditamos que o álbum trata de maneira sintética de aspectos fundamentais do indivíduo moderno, desde a sua relação com o tempo, com a morte, com o dinheiro e, sobretudo, sua relação com o Outro.

Speak to me: os ecos de outrem.



                Quando apertamos o play, ou em 1973 quando colocava-se a agulha sobre o vinil para girar, a primeira impressão é de que o disco está com defeito. O primeiro som que o disco emite é justamente o silêncio, o intervalo. É um prenúncio de algo que perpassará todas as faixas. Pouco a pouco alguns barulhos começam a ser percebidos: máquina registradora, vozes, moedas caindo, risadas, intensamente guiados pela batida forte do coração. A primeira faixa Speak to me contem em si um pedaço de todas as outras canções do disco. Ali estamos sendo apresentados ao mundo. É como se fôssemos o bebê ouvindo, prestar a nasce, o mundo “lá fora” de dentro da barriga da mãe, representados pelos gritos estridentes de uma mulher no final da faixa, que conduz a transição para Breathe (in the air), (além do título sugestivo desta: respire!).
                A importância que um músico atribui à audição é bastante óbvia e quase indiscutível. Entretanto, a lírica floydiana se debruça sobre o ouvir e o falar de modo constante e bastante profundo. A capa do álbum anterior ao Dark Side Of The Moon, Meddle (1971) é a foto de uma orelha. O lado B do disco é inteiro tomado pela música de 20 minutos Echoes. A letra de Echoes fala sobre o eu que se reconhece e se sabe através do contato do outro: através dos ecos longínquos, através da palavra de outros, que são como eu: não foram apresentados ao mundo nem sabem de seus por quês, mas que ainda sim são motivados a seguir. E é no outro que me reconheço: dois olhares se cruzam num relance, e eu sou você e o que eu vejo sou eu. Logo, por favor, me ajude a entender o melhor que eu conseguir.
                Para a ontologia marxiana, o processo de “desenvolvimento” das potencialidades da humanidade ocorrem de maneira contraditória, onde a própria alienação é parte da força propulsora das conquistas do gênero humano. De maneira que a percepção da autonomia do indivíduo está atrelada ao desenvolvimento de uma forma cada vez mais radicalizada de trabalho estranhado e alienação. Conforme o homem se descobre enquanto potência e sujeito, ele se estranha cada vez mais do Outro. Entretanto, somos o outro, nos formamos a partir dele, do diálogo com ele, mesmo no nosso pensamento mais íntimo. A falta desta percepção pode explicar muito da esquizofrenia dos nossos tempos.
                Segundo Roger Waters (2003), ali está a ideia de empatia que o permearia desde então. Notamos também na canção Wot's uh the deal, a quinta faixa do álbum Obscured By Clouds (1972) (trilha sonora do filme La Valle (1972 dir. Barbet Schroeder), a busca pelo outro como parte do entendimento de si: “Hear me shout! Come on in!”. O sujeito sobre o qual a lírica floydiana reflete é um ser social, que se sabe em relação e tem a dimensão da influência da vida em sociedade na construção e percepção de sua individualidade.
                Décadas depois, o tema reaparece em Keep Talking, no último álbum da banda, The Division Bell (1994), já sem Roger Waters, em que o narrador anuncia na introdução da música que algo fascinante mudou a história dos homens: “they learn to talk”.
                Pois bem, Dark Side começa com um pedido: Speak to me – fale comigo. O mundo que se anuncia ecoa dinheiro, maquinaria, tensão, loucura, desespero. O mundo que nos aguarda já existe para além da minha vontade. Há que se fazer a história, mas as condições já foram previamente dadas: nascemos e respiramos após os berros de dor da mãe.

Breathe: bem-vindo ao mundo dos homens.
                Segundo o pensador russo, Mikhail Bakhtin o processo de formação da consciência é dialógico. O mais íntimo pensamento ou as formulações ideológicas mais complexas são forjadas a partir da palavra do Outro. No caso da criação musical não é diferente. O processo de composição nunca é uma experiência completamente original, estamos sempre nos remetendo a harmonias, melodias e ritmos que ouvimos de outras pessoas. Isso não implica que tudo seja uma mera cópia, mas apenas uma retomada daquilo que Renato Russo resumiu em Quase sem querer: “mas quais são as palavras que nunca são ditas?”
                A reiteração da palavra, da harmonia, do acorde, da melodia do outro nunca é uma cópia estrita devido ao caráter único da eventicidade da enunciação, outra ideia bakhtiniana. Ainda que eu toque uma canção com os mesmos acordes, a mesma letra, ou recite uma poesia, ou simplesmente parafraseie alguém, o contexto em que eu estou inserindo tal enunciado é novo, diferente, logo, este enunciado está dialogando com novos elementos e forjando novos sentidos.
Por exemplo, em Breathe.
                A sequência “despretensiosa” em Mi menor (Em) e Lá maior com a sétima (A7) termina surpreendentemente num acorde dissonante, cuja inspiração, Richard Wright revela, vem da música Kind of Blue de Miles Daves. Ainda que os acordes sejam mesmo, o fato de serem tocados em outros contextos forjam novos sentidos, criam novas enunciações. Se pensamos num sentido ontológico marxiano, a apropriação das objetivações do mundo dos homens, do patrimônio do gênero humano é a maneira pela qual a cultura humana se forja. Estamos sempre nos apropriando de algo. Nunca nada é inteiramente original. A mesma sequencia Em e A7 guia a música dos Secos & Molhados, Primavera nos Dentes, cujo processo de composição não deve ter sido muito diferente daquela que Roger Waters descreve no documentário: a banda decide ficar por algum tempo improvisando em dois acordes. Richard Wright então se lembra daquilo que ouviu, daquilo com o qual dialogou, o jazz, seu gênero preferido e cria a partir daquilo que conhece: do intervalo de Sol Maior (G) para a retomada do tema em Em, o caminho previsível seria um Ré com a Sétima (D7), mas magicamente quem introduz o canto suave do dueto de vozes Wright e Gilmour é a dissonância de Miles Daves.
                No campo das Ciências Sociais, especialmente na Sociologia, revela-se sempre a preocupação em atrelar o estudo da obra de arte com seu contexto sócio-histórico, o chão social que a cerca, os diálogos com os acontecimentos históricos. Nada mais pertinente e enriquecedor para os estudos sociais. Entretanto, uma grande obra de arte além de dialogar com seu tempo, dialoga com a história da arte, das formas, da tradição daquele gênero e de gêneros vizinhos. E como esse diálogo é o um dos fatores que a tornam cada vez mais universal.
                O acorde dissonante de Richard Wright anuncia o canto que diz simplesmente: respire. O eu lírico aconselha e acalma: “não tenha medo de se importar” e pede num lindo trocadilho “leave, but don't leave me” (vá, mas não me deixe). Profeticamente, o eu lírico avisa que a vida do sujeito, o que se torna, o que ele é são consequências de seus próprios passos e escolhas: all touch/ and all you see/ is all your life/ will ever be. Aquilo para o qual dirijo minta atenção me define. As minhas ações são portadoras daquilo que sou.
                Mas quais ações?
                Surpreendentemente, depois do acorde dissonante de Miles Daves, um órgão anuncia o novo conselho: “Corra! Corra, coelho! Cave o buraco e esqueça o sol. E depois, no fim, quando o trabalho estiver terminado, não descanse é hora de cavar outro buraco”. Com a mesma sutiliza que somos convidados a nos importar, sentir, estar junto, somos avisados do ritmo de vida que o mundo moderno nos invoca: trabalho incessante, sem descanso. Novamente a serenidade da música retoma o foco, mas o acorde dissonante do jazz no final da sequência, causa a sensação de mudança brusca, como a queda de um precipício: intensa e veloz.
                A sociedade moderna acolhe o indivíduo com seu discurso paradoxal: anseia pela entrega do indivíduo, oferece sorrisos e promete felicidade, mas é ela mesma quem dá a dinâmica de sua existência, um eterno trabalho, sol a sol e sem descanso. Vale lembrar que é na década de 1970 que temos o fenômeno de reestruturação produtiva, atrelada à crise estrutural do capital. O modelo fordista atrelado ao Estado de Bem estar social, a faceta humana do capitalismo, forjada a partir das lutas e pressões socialistas, dá lugar a um ritmo de trabalho ainda mais dinâmico e acelerado, em que o discurso por produtividade cresce conforme os direitos sociais vão sendo tirados. Para a empresa, não existem mais “trabalhadores”, mas “colaboradores”: gente que “veste a camisa” da empresa, que é como se fosse uma família, a quem você deve se entregar “sem medo de se importar” e trabalhar sem descanso até esquecer o Sol.

On the run: viver para o hoje e não para o amanhã, este sou eu!


                Breathe desemboca no barulho do cymbal da bateria marcando um tempo veloz e contínuo, os teclados introduzem o sintetizador que virá, produzindo um som perturbador. Ouvem-se passos, vozes. On the run remete à tecnologia e parafernalha do mundo moderno, que acelerou – e ainda acelera progressivamente – o ritmo de nossas vidas.
                É interessante pensar em como a própria construção da música está atrelada a essa potência da tecnologia enquanto transformação de todas as esferas da vida social, desde a aceleração do tempo até mesmo novas demandas na produção musical.
                No documentário supracitado, David Gilmour e Roger Waters apresentam o processo de construção de On The Run. Desde o início da banda, sua história foi marcada pelo acesso a tecnologias de última geração, como nos shows ainda na era Barret, em que eram usadas projeções de luzes e slides de pinturas a óleo em dissolução.
                O sintetizador hipnótico que conduz a música toda foi programado em um Synth EA, no qual Roger Waters criou uma sequencia de notas que aceleradas resultaram nos sons de On The Run. Em 1973, com equipamentos de mixagem de som totalmente automáticos, Pink Floyd anunciava a música do futuro, programada, passível de rearranjos, colagens e samplers. OAtom Heart Mother (1970) já trazia estes elementos de uso de barulhos, efeitos sonoros incidentais e samplers de voz na faixa Alan's Psychedelic Breakfast, onde ouvimos o café da manhã e seus pensamentos, interligados pela música instrumental.
                Um olhar conservador e pessimista pode não entender a potencialidade dessas transformações. O fato é que elas ocorrem e podem ser apropriadas de diferentes formas. Àqueles que tentaram desqualificar a música floydiana devido ao abuso de uso de tecnologias e mixagens, tais como o Synth EA na feitura de On The Run, Roger Waters responde: se entregarmos uma guitarra Fender na mão de qualquer pessoa ela necessariamente tocará como Eric Clapton?
                A mão não é apenas o órgão do trabalho, mas também o produto deste, tal qual afirma Engels (1980, 51). Se até mesmo os sentidos são construções históricas, “obra de toda a História Mundial até agora”, a própria obra de arte exprime em si as possibilidades materiais de seu tempo. A capacidade de subversão das tecnologias do trabalho para a fazedura de uma obra de arte é o que a torna tão necessária objetiva e subjetivamente para a sociedade. Foi a ferramenta feita para a caça a mesma que forjou na pedra uma escultura. O mérito dos meninos ingleses foi saber utilizar da tecnologia que dispunham de maneira criativa e libertadora. Sintetizaram não apenas a atmosfera de seu tempo através das letras e canções, mas também na própria forma de construção e produção material do disco, de forma tal que anteciparam processos que estariam maduros, plenos e acessíveis décadas mais tarde.
                Leonardo de Marchi, discutindo sobre a história dos formatos fonográficos, afirma que a grande inovação do período pós-guerra foi o Long-Play. Além da possibilidade de gravar mais tempo de material sonoro em relação aos formatos anteriores (45 r.p.m, 78 r.p.m, por exemplo), surge a estética do álbum, transformando o disco em si em uma obra de arte, seja através do trabalho com o design das capas, seja pela durabilidade do vinil em relação aos outros materiais,  ou ainda pela “promessa de alta-fidelidade do sistema estéreo”. Processo este que possibilitou que os vinis passassem a ser consumidos como livros, ou seja, “um suporte fechado passível de coleção em discotecas privadas” (DE MARCHI, p. 10-13, s/data).
                O próprio formato Long-Play possibilitou que o Rock'n Roll adquirisse o status de “arte” quando suas músicas deixaram os singles (compactos) e passaram a figurar álbuns, como sugere ainda De Marchi. Os chamados álbuns conceituais trabalham com a totalidade do formato, em tudo aquilo que ele possibilita: desde o diálogo interno entre as canções, passando pelo trabalho de mixagem (abusando dos recursos estéreos), até o trabalho com a capa e imagens. Dark side of the moon é um fenômeno exemplar de álbum conceitual.
                As frases soltas durante o instrumental On The Run refletem a agonia da correria e tensão da música: “living for today, not for tomorrow, that's me!” Vale lembrar que as frases soltas que aparecem ao longo de todo o álbum foram ditas por pessoas próximas e envolvidas na gravação e que estavam no estúdio. As vozes produzem o clima sombrio, mas ao menos tempo preenchem as temáticas profundas das canções com a sua concretude do cotidiano. Dito de outra forma, pessoas comuns tecendo cometários sobre suas vidas, sensações e experiências tornam ainda mais evidentes a universalidade das questões colocadas pelo disco. Uma universalidade palpável, com todo o paradoxo que um elemento da cultura de massas, inserido na pop art, pode promover enquanto obra que dialoga com a percepção do que é ser pertencente ao gênero humano, para além da espécie.

Time: calmo desespero.


                Uma explosão finaliza a correria e o desatino de On the run. Após o intervalo e um brevíssimo silêncio relógios e despertadores anunciam, quase como um susto, a música seguinte. O tic-tac dos relógios se confundem com as batidas do coração. O tempo é o senhor desta canção. Do nascimento à morte, é tudo uma contagem regressiva.
                Se até agora tudo é uma construção social, desde a nossa percepção dos sentidos à nossa maneira de fazer canção e arte, a própria percepção do tempo também o é. Para além da noção de categoria a priori forjada por Kant, tanto tempo quanto espaço são noções socialmente apreendidas. Um autor que desenvolve muito bem esta questão é Mikhail Bakhtin, no livro Questões de Literatura e de Estética (1998) com o seu conceito de cronotopo, que busca compreender como tais noções se apresentam na estética verbal.
                Além de Bakhtin, David Harvey na importante obra Condição Pós-Moderna dedica uma parte inteira à problemática da experiência do tempo e do espaço. Segundo ele, segundo uma perspectiva materialista:

podemos afirmar que as concepções do tempo e do espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social. (…) A objetividade do tempo e do espaço advém, em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução social; e, na medida em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente. (HARVEY, 1996, p. 189)

                A maneira pela qual a sociedade se reproduz materialmente influencia todas as demais esferas. O capitalismo com sua tendência globalizante, forjou para si novos meios de se reproduzir, multiplicar e se alastrar, criando formas de reduzir as distâncias, tornando as trocas e negociações cada vez mais imediatas. E o espaço de tempo entre um avanço tecnológico e outro caminhou em progressão geométrica: desde o primeiro motor a vapor até os controles digitais, da prensa móvel de Guttenberg até a World Wide Web, avançou-se assustadoramente rápido.
                O fato é que “every year is getting shorter” é uma sensação absolutamente recorrente e normal. A aceleração da produção necessariamente altera a nossa rotina de vida. O mundo não dorme mais: algo que acontece do outro lado do mundo pode ser visto e discutido simultaneamente.
Diante de um mundo cada vez mais veloz e produtivista, a sensação é de desperdício e perda
de horas, em dias cada vez mais monótonos “You fritter and waste the hours in an off hand way...”.        Com tantos caminhos e possibilidades que parecem se abrir e cobranças em ser alguém, o indivíduo moderno tem a sensação de esperar que alguém lhe mostre o caminho ou então que perdeu o tiro de partida.
                Roger Waters (2003) comenta sobre a percepção de a vida estar acontecendo e de que a qualquer momento você pode tomar as rédeas do destino: ingressar no mundo adulto depois de esperar a vida toda por ele, se preparando desde a infância, numa educação propedêutica. A letra de Time descreve a sensação de percepção do tempo acelerado, nunca suficiente e sua impotência diante dele.
                A sensação de impotência e inação diante do tempo acelerado do mundo moderno causa uma agonia e um desespero imediatos. O indivíduo moderno está aprisionado ao seu tempo histórico na maneira mais sutil. “Hanging on in quiet desperation”, suportando num calmo desespero a impotência e frustração, não é apenas o “jeito inglês”, mas a forma como muitos indivíduos “se enganam e seguem em frente”, para parafrasear o genial Tom Zé, em Happy end.

Breathe reprise: lar, doce lar.


                Se o mundo lá fora é tão inóspito e corrido, nada como voltar para casa. O espaço público torna-se cada vez mais um espaço de onde se deseja fugir. O trabalho alienado e reificado sobre o qual o capitalismo se edifica estranha o homem de sua própria atividade.
                Marx desenvolve nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (2006) e na Ideologia Alemã (2007) aquilo que Lukacs desenvolverá como o trabalho como centralidade ontológica do ser social. O primeiro ato histórico, segundo Marx (2007), é o que cria o ser social, a partir do trabalho e da linguagem. Um complexo de complexos, que se interligam em se determinam. Logo, foi através de sua atividade consciente, o pôr teleológico que homem se tornou um ser social, passando de espécie para gênero humano, forjando um mundo à sua imagem e semelhança.
                Sobre uma perspectiva marxiana, a subsunção do trabalho alienado e reificado é o caminho para a emancipação humana. Dito de outra forma, apenas quando toda humanidade retomar o caráter potencialmente humano, criativo e libertador de sua atividade teremos realmente feito a revolução. Tal caráter revolucionário consiste numa completude da processualidade da atividade humana: eu idealizo a partir das minhas próprias necessidades, detenho os meios de objetivá-la, domino todo o processo e usufruo de seu resultado, aprimorando minha teleologia. É desta atividade que Marx fala e não do trabalho assalariado, enquanto centralidade ontológica do ser social.
                Um trabalho em que o homem não se reconhece, não o motiva, não é feito a partir de suas necessidades e muitas vezes não as satisfaz (pensemos em quantos trabalhadores de montadoras de carros, possuem efetivamente um carro daqueles), trabalho em que o homem não se reconhece nas potencialidades do gênero humano, estranhado de si, do outro, da natureza, como este trabalho pode emancipar? A sensação inóspita do mundo público torna o retorno lar ainda mais importante.
                Musicalmente, Breathe reprise é de fato um retorno ao primeiro tema do disco.
                A busca por aconchego, proteção e consolo de Breathe reprise dá-se não apenas no âmbito do lar, mas também no âmbito religioso. O sino chama os fieis a se ajoelharem para ouvir mágicas e suaves palavras. Quando o mundo dos homens não oferece segurança, causa dor e desespero, a busca religiosa é um dos refúgios, que confortam e consolam.

The great gig in the sky: a morte e o prazer.


                Depois da percepção da vida a adulta, vem a percepção da proximidade da morte. O piano sombrio e belo de Richard Wright anuncia a última faixa do lado A do disco. Mesclando-se ao som do slide, uma voz diz: “E eu não estou com medo de morrer, a qualquer hora pode acontecer, eu não me importo. Por que estaria com medo de morrer? Não há razão para isso, você tem que ir algum dia.” O contraste da voz de homem maduro que anuncia não ter medo de morrer só potencializa a sensação expressa no vocal de Clarre, de desespero e pavor.
                Solicitada para pensar na morte, na agonia, no pavor, no desespero, Clare Torry canta o que é considerado um dos mais belos solos vocais da história do Rock.  Durante a gravação a música era conhecida como “The Religion Song” e durante a turnê, antes do lançamento do álbum ela figurava, numa versão bem diferente, apenas instrumental, como “The Mortality Sequence”.
                Letra alguma realmente conseguiria expressar melhor do que o vocal de Clare a sensação de desespero e morte. Interessante notar o quão o vocal remete à sensação de gozo, onde prazer e dor se misturam, onde se chega ao limiar.
                Segundo Michel Foucault no volume I da História da Sexualidade (1988) , é com o advento dos dispositivos de sexualidade que a vida entra na história – através da sistematização dos fenômenos inerentes à vida da espécie humana na ordem do poder e do saber. A despeito das consequências no campo filosófico, sobre a qual Bakhtin se debruça em Freudismo (2004), onde os pensadores, principalmente na transição do século XIX para o século XX tem em comum a vida biologicamente interpretada, numa desconfiança da consciência e, sobretudo, a tentativa de substituir todas as categorias socioeconômicas por categorias psico-subjetivas ou biológicas, uma das consequências para o sujeito é uma relação muito negativa em relação a morte. Ainda que ela seja uma das poucas certezas que permeiem sua vida, o confronto com ela é algo apavorante e se reflete em uma postura diante de uma potencialização da vida, que constrange o corpo a parecer sempre belo, lapidando os corpos, com procedimentos estéticos muitas vezes agressivos.
                A morte invade todos os dias a casa das pessoas nas notícias de jornal. Medo que constrange e apavora. Relação imediatista com a vida, onde dor e prazer se tocam. Prazer excessivo e esvaziado, intenso. O lado A termina com um suspiro de Clare.
Durante a troca de lado, podemos citar como prelúdio para o lado B a seguinte passagem de Harvey:
A incapacidade de adiar prazeres costuma ser usada pelos críticos conservadores, por exemplo, para explicar a persistência do empobrecimento numa sociedade afluente, embora essa sociedade promova sistematicamente o financiamento de prazeres presentes como uma das principais engrenagens do crescimento econômico.


Money: alcoviteiro entre a necessidade e o objeto.



                O lado A apresentou ao mundo o indivíduo: seus medos, obrigações, a agonia do tempo corrido, do espaço apertado. O lado B inicia dando a “solução” (ou explicando a causa): dinheiro. O barulho sincronizado de moedas e caixas registradoras são o primeiro som que ouvimos, ao contrário do lado A que se incia com o silêncio. Em meio ao som agudo e estridente que evoca o dinheiro, surge o riff do baixo que anuncia o single com um compasso nada convencional: Money é tocada em 7/8. Grande parte, para não dizer parte massiva dos singles – hoje conhecidas como “música de trabalho”, canções responsáveis pela projeção de uma banda, ou do álbum de uma banda – são compostos em compasso 4/4, uma formação rítmica “mais simples”, tanto de cantar, quanto de tocar e ainda de dançar. Músicas que pegam fácil. Um exemplo de música em 4/4 é a própria canção Money, que após o solo de saxofone, muda de 7/8 para 4/4, mudança essa intermediada por uma virada na bateria e introduzida por um dos melhores solos de guitarra  - na singela opinião da autora – que David Gilmour já compôs: puro Rock'n Roll.  Além do compasso pouco convencional, a música tem um tempo pouco comercial,  6'22''. A “pegada” meio jazz que o 7/8 mais o teclado de Richard Wright ajudam a construir dar um ar sofisticado a canção.
                Money it's a hit! - é um sucesso. Literalmente: foi o single que conquistou os estadunidenses e permitiu o sucesso de vendas do álbum britânico no além mar.
                Marx tem um belíssimo texto intitulado Dinheiro, presente nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Responsável por tal beleza são as citações de Goethe e Shakespeare sobre a qual Marx formula seu raciocínio:
O dinheiro, na medida em que possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a  onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. … O dinheiro  é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem. Mas o que medeia a minha vida para mim, medeia-me também a existência do outro homem para mim. Isto é para mim o outro homem... (MARX, 2006, 157).

                O grande tema de Dark Side of the Moon, tantas vezes falado ao longo do documentário a seu respeito, é a ganância. Roger Waters mesmo afirma que o que eles queriam eram ser ricos e famosos. Após uma apreensão do mundo, de suas regras e seu jogo, o indivíduo moderno entende, como homem de seu tempo, que é através do dinheiro que ele irá adquirir predicados, é através do dinheiro que se é. Então, “arrume um bom emprego e você está ok!”. E se é ele mesmo a mediação entre mim e o que sou, não é de se espantar que quanto mais tiver, mais predicados se tem. Logo, “Cara, tire a mão do meu bolso!”. Com dinheiro no bolso, posso cogitar as coisas mais impensadas, como “comprar um time de futebol”.
O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isto sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas qualidades e forças essenciais. […] Eu, se não tenho dinheiro para viajar, não tenho necessidade alguma, isto é, nenhuma necessidade efetiva e efetivando-se de viajar.  (MARX, 2006, 159-160)

                O sujeito, o eu lírico, de Money expressa bem a citação de Marx quando afirma que mesmo voando em primeira classe, ele precisa de um jatinho... ou talvez dois. Ou seja, ele tem a necessidade de viajar, porque possui os meios de fazê-lo. Mais que isso, já que ele possui meios para satisfazer tais necessidades, ele tem a liberdade de querer fazer de maneira cada vez melhor, ou seja, necessidades que criam necessidades. Se eu não tenho dinheiro para viajar, não tenho a necessidade de um jatinho novo...
                Mas no final das contas, o sujeito de Money é um homem sarcástico: no fim mesmo, das contas, pois, depois de cantadas das duas primeiras estrofes, do solo de saxofone, de todo o rock'n roll em 4/4, o sujeito declara: dinheiro é um crime. De alguma forma, todos sabem que ele é “a causa” do todo o mal de hoje em dia e desejam que ele seja dividido de maneira justa, desde que ninguém tire uma casquinha daquilo que é seu “but don't take a slice of my pie!”.

Us and them: no fim das contas, somos todos homens comuns.


                Zabriskie Point foi o primeiro filme do diretor italiano Michelangelo Antonioni rodado nos Estados Unidos, em 1970. Trabalhando com a questão da contracultura norte-americana, o filme tem uma bela sequência de imagens gravadas no deserto que dá nome à película. O filme não obteve muito sucesso, mesmo tendo a trilha sonora assinada por bandas como Rolling Stones e Pink Floyd.
                O tema de Us and Them foi composto para uma cena de violência e repressão do filme, onde estudantes protestavam na universidade (tema recente, não?). Roger Waters inspirado pela melancolia do tema e, por que não, pela própria cena, criou a letra, onde de novo o tema da alteridade aparece. Ainda que no final das contas, sejamos todos homens comuns, como o segundo verso da música nós e eles anuncia, a letra da música fala sobre o estranhamento. A facilidade com a qual esquecemos da humanidade do outro diante de conflitos, sejam eles grandes, como o fronte de guerra em que homens morrem como pontos num mapas cheio de linhas, ou pequenos conflitos, como o simples preço do chá e uma porção.
                Mas “só Deus sabe” que esta situação não é o que teríamos escolhido para nós. O último refrão justifica o tormento que estranha o homem dele mesmo: “saia do meu caminho, que hoje é um dia cheio, ocupado e eu estou com a cabeça cheia!” Us and them reitera então toda a temática do álbum até agora. São as pressões do trabalho, da correria, da luta pelo pão de cada dia que acaba tornando as pessoas tão pouco sensíveis com o outro.
                O tema da guerra anunciado no primeiro refrão será revistado por Roger Waters no épico álbum The Wall (1979) [e que se transformou em filme em 1982] e em The Final Cut (1983), que, por ironia do destino, é realmente o último disco do baixista e letrista junto à banda.
                A música é melancólica, lenta e triste até explodir nos catárticos refrões, onde brilham os vocais femininos fazendo base para o jogo de vozes de Wright and Gilmour.
                A sensação de estranhamento – novamente tão bem delineada por Marx nos Manuscritos  - é quase um torpor, como os passos lentos que são projetados no telão durante a música nos shows da turnê Pulse. “Morto e destruído, mas não dá pra evitar. Encontramos isso por toda a parte” - ainda que fiquemos tocados a tragédia alheia, de um de “nós”, não passa de um desconforto momentâneo e impotente, já que é assim que as coisas são, ou tem sido.
                Us and Them é anunciada pelas palavras finais de Money, numa sequência de vozes que afirmam “eu tinha razão, é claro que eu tinha razão! Eu estava absolutamente certo!” Essas vozes respondiam à seguinte questão: “qual foi a última vez em que foram violentos? Vocês estavam certos?”. Sim, todos estavam.

Any Colour You Like: o fetiche da mercadoria.



                Any Colour You Like é a única faixa que não tem letra. Injustamente, é a única música que não é comentada no documentário tantas vezes aqui citado. No livro de John Harris, tampouco, ela é comentada.
                Diante de seu contexto, inserida depois de todas aquelas canções, com sua levada dançante, os sintetizadores de Wright, dando uma ar lisérgico à canção, a música nos suscita à sensação do fetiche da mercadoria. Como se estivessem passando por nossos olhos as mais belas vitrines, as mais belas mulheres em outdoors, cheias de caras e bocas, como estivéssemos nos dopando de mercadorias e tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Dopados. Sensualmente dopados. Afinal de contas o título mesmo sugere: qualquer cor que você queira!
                Graças às maravilhas modernas, descobrimos na enciclopédia eletrônica Wikipédia, que o título realmente remete à uma mercadoria. Segundo o verbete, “O título foi originado de uma resposta que o técnico de estúdio utilizava quando lhe eram feitas perguntas: "You can have it any colour you like" ("Você pode ter da cor que você desejar"), que era uma referência à célebre descrição de Henry Ford sobre o Ford T: 'Você pode tê-lo na cor que desejar, desde que seja preto.' " Essa máxima foi dita por Henry quando, através de uma medida de redução de custos para a produção do auto, a fábrica passou a fazer apenas modelos na cor preta.
                O próprio disco reflete esse fetiche. O atrelamento da música com a publicidade e as mercadorias não é novo. Se pensamos na banda brasileira Blitz, que atingiu um grande sucesso na década de 1980, passando a figurar como marca dos mais diversos produtos, conseguimos visualizar a potência que a música tem enquanto nicho de consumo. Além dos muitos anos em que o Dark Side ficou nas paradas de sucesso, o álbum originalmente lançado em Longplay, foi relançado em Compact Disc (CD) e depois remasterização no seu aniversário de 30 anos, através de uma tecnologia que segundo John Harris é “uma daquelas inovações que fazem com que a indústria musical convença milhões de pessoas a comprar de novo os álbuns que já possuem” (HARRIS, 2006, p. 7-8), o remix 5.1 com som surround. A cada ano cerca de 250 mil exemplares são vendidos. Sem contarmos nos produtos lançados a seu respeito como o próprio livro de John Harris, o documentário já citado aqui.

Brain Damage: o maluco está na minha cabeça.


                Todo esse dinheiro e fama que as vendas do Dark Side proporcionaram aos meninos ingleses não fez outra coisa senão confirmar os diagnósticos da reflexão do álbum: melancolia e pessimismo é o tema do álbum seguinte: Wish You Were Here (1975), que claramente remete a loucura do ex-integrante e fundador da banda, Syd Barret.
                A loucura comentada em Brain Damage, para além de uma única menção a Syd Barret, pode ser lida como uma própria esquizofrenia que irá gradativamente tomar conta do grupo, com sua dificuldade de conversar e manterem-se unidos. Essa dificuldade estará clara nos dois últimos discos da banda sem Waters. E não é um desconforto subjetivo: de fato Gilmour e Waters ficaram muito tempo sem se falarem. A banda que tão bem refletiu sobre a alteridade, a necessidade do outro e o fato de sermos e precisarmos do outro, mesmo numa relação cada vez mais estranhada e mediatizada, acabou provando deste veneno da modernidade.
                O estranhamento da sociedade moderna é tal que a falta de identificação com o Outro, com a sociedade se reflete na própria incerteza do sujeito consigo mesmo: “there's somone in my head, but it's not me!”
                A modernidade proliferou os discursos. Mikhail Bakhtin ao refletir sobre a poética de Dostoiésvki entende que o processo formal pelo qual elabora seu texto, sua prosa polifônica, em que o autor nada mais é que um orquestrador de vozes autônomas, tal processo está atrelado ao próprio desenvolvimento do capitalismo que coloca em choque diversos e distintos discursos. Entretanto, não são todas as multiplicidades de vozes e discursos que se fazem orquestráveis e inteligíveis. Aliás, muitas vezes o que acontece é justamente o contrário: uma multidão de vozes que não se ouvem. Que falam cada vez mais alto e escandalosamente, ouvindo apenas a si mesmo, a sua própria prepotência e solidão. Ainda que a possibilidade do dizer, do se fazer ouvir, a potência do sujeito que se compreende como um enunciador da sua narrativa, ainda que essa potência tenha sido revelada e trazida à tona pela modernidade, a dificuldade dos sujeitos se ouvirem e se identificarem não é necessariamente uma consequência desse processo. O próprio mundo acadêmico nos serve como bom exemplo: nunca se publicou tanto. A pressão para que se publique, se produza é tanta, que dificilmente o nosso tempo produzirá círculos de estudos que tenham tempo efetivo para que seus membros se leiam, produzam coletivamente e pensem organicamente a respeito dos problemas que efetivamente vivemos e nos confrontamos, para além das especulações conceituais... Falar demais não significa ouvir, muito menos conversar demais...
                Eis então que em apenas um verso, este mal estar é sintetizado na letra de Brain Damage: you shout and no one seems to hear! E assim vamos, conforme a genial expressão de Foucault, alugando as orelhas dos psicanlistas e a fins, em busca de quem nos ouça e nos dê uma solução para tamanha sensação de falta de lugar e incompreensão.
                Entretanto, ousamos defender que Brain Damage exala a positividade, ainda que consiga magistralmente refletir um dos sintomas dos nossos tempos: o grande número de pessoas que consomem anti-depressivos, ansiolíticos e demais buscas para curar a sensação de mal estar reinante. A positividade está no encontro marcado no lado negro da lua: a esperança de que os “loucos” e “desajustados” se encontrem, se saibam, se reconheçam como não-sós, o encontro dos desajustados, daqueles que gritam sem ninguém pra ouvir. O reconhecimento de que o meu mal estar é também o mal estar do outro pode(ria) ser um caminho para a transformação desse estado de coisas(?).

Eclipse: e tudo debaixo do Sol está nos eixos...


                De uns tempos para cá o dito “homem ocidental”, de quem temos falado durante todo esse artigo enquanto “ser universal”, parece estar redescobrindo a natureza. Ou, melhor dizendo, a natureza tem se imposto diante de tantos desastres naturais diante do homem, como algo vivo e que responde ao uso desequilibrado que o sistema capitalista tem feito do planeta. A despeito de cor, credo, gênero, classe, quando uma catástrofe acontece, ela atinge a todos.
                A despeito do que fazemos, a natureza segue seu curso. Eclipse parece nos lembrar justamente disso: não importa o que esteja acontecendo aqui na Terra, o Sol está eclipsado pela Lua.
Se pudermos então voltar a aprender com a natureza e entender que tudo nela é um eterno devir, uma constante transformação e renascer poderemos entender as batidas do coração no final de Eclipse como um recomeçar, um reencontro com as batidas que anunciavam o início do álbum. Cada novo recomeçar abre novas possibilidades.
                Ao terminar de ouvir o álbum, seja numa despretensiosa fruição estética dos sons, seja numa compreensão ativa e interessada de suas letras e sua “mensagem”, podemos simplesmente agir como sempre, numa percepção fatalista de que “é assim mesmo” e “fazer o quê”, ou então, ciente dos dramas do indivíduo moderno, que se sabe enquanto sujeito histórico, situado num mundo repleto de contradições, tomar novas atitudes, buscar novos caminhos. Agir de forma consciente como alguém que sabe ver para além das aparências, sabe perceber a essência dos processos. Alguém que sabe que não existe o lado negro da Lua: ela, na realidade, é toda negra...

Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Ed.HUCITEC - Ed. UNB, 2008.
_______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______.O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_______.Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). São Paulo: Ed. Unesp, 1998
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
HARRIS, John. The Dark Side Of The Moon: Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
LONGFELLOW, Matthew (dir). Classic Albums: The Dark Side of The Moon. 2003
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. 1845-1846. São Paulo: Boitempo, 2007
_______.Sobre Literatura e Arte. São Paulo: Global Editora, 1980
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.

Na Web:
DE MARCHI, Leonardo. A angústia do formato: uma história dos formatos fonográficos. In Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Abril, 2005. Disponível em www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/29/30.





[1]    Mestranda em Sociologia/Ciências Sociais no Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp Araraquara. Integrante da banda Ummagumma Pink Floyd Cover. isabelamoraistp@gmail.com