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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"de mãos dadas"

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


gozada essa vida. minha mãe sempre gostou de dizer que eu tenho "sanguinho che guevara" - o que ela ainda pensa principalmente quando surta em casa quando vê meus posts sobre manifestações e afins. desde miúda eu escuto essa frase (tá. desde mais miúda ainda). eu me lembro bem. estava na 6ª série de um dos colégios mais conservadores da cidade. aliada a outro aquariano e um monte de amigos, a gente tava disposto a ressuscitar o Grêmio da escola. pra isso, eu criei uma plataforma dos meus sonhos. eu era a "vice" da chapa. o presidente, em pleno colegial-ensino médio, tava assinando embaixo qualquer coisa que eu pusesse ali. coitado. por minha causa ele sofreu acusações seríssimas em plena sala de aula. professoras dizendo que ele tava mexendo onde não podia. - é que eu, desavisadamente avoante que era/sou?, propunha uma nova forma de se pensar a estrutura da escola. eu propunha aquilo pelo qual a USP/UNESPs da vida viriam a fazer um mundo de greve, sem nem ter ideia do que isso era e sua periculosidade: PARIDADE. Paridade entre pais, professores, funcionários. meu projeto se chamava "de mãos dadas". é. eu ainda não fazia ideia do "Sentimento do Mundo" do Drummond. 
e, evidentemente, não ressuscitamos grêmio algum. muito menos as pessoas se deram as mãos. anos mais tarde eu sairia pela porta dos fundos da mesma escola por conversar sobre como cada vez mais o ensino público alfabetizava menos... (e voltaria com o rabo entre as pernas, disposta a passar no vestibular logo).

e por que tô dizendo tudo isso?
porque hoje acordei com "mãos dadas" na cabeça e no coração. e as pessoas postaram. e comentaram. e toda vez que falo essas duas palavras juntas eu lembro da minha treta de 12 anos de idade.






Mãos Dadas



Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE









quinta-feira, 10 de outubro de 2013

o arqueiro

mede o mundo
com a própria régua.
régua justa 
rigorosa régua.

medida certeira
mas certos são desiguais
a carruagem anda lenta
e cada um sabe
da dor que é 
se reinventar
pra ser o que é.

cabe confiar.
despir-se.
entregar ao Tempo - grande alquimista.
esperar que a miudeza do que é relativo
se esfarele diante da intensidade
do que é Verdadeiro.

a roda é grande
e roda

e não para
e leva a gente
de asfalto e gente
lá se vai...
mais
um
dia.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

pensa num cara... de 100 anos.

Imagina uma pessoa que nasceu em 1913. A família da mãe adorava uma seresta. A própria mãe tocava piano. Os tios viviam "vadiando". O pai era chegado nos versos. Foi estudar em colégio rigoroso. Imaginem que o menino respirou ares integralistas na universidade ao mesmo tempo em que cantava marchinhas inéditas no Carnaval. - as mesmas que hoje em dia a gente repete nostálgico de um passado que a gente nem viveu.
Não era muito difícil entender que o menino resolvera fazer Direito - um dos cursos mais frequentes dos poucos do começo do século passado. Ele tinha sua turma de amigos e gostava de cinema e conversava com os amigos sobre. - queria ser cineasta.
Mas desde cedo roubava os versos do seu pai pra dar pras namoradinhas - é gostava de mulher e como! E então publicou seu primeiro livro de poesia antes mesmo de se formar. Só com 20 anos.
E foi aplaudido. A comunidade católica gostou - afinal menino fora formado em seu ambiente.

Menino lança outro livro e tal e coisa e arranja uma bolsa pra estudar literatura em Oxford. Acho que foi de tanto ler os sonetos de Shakespeare no original que ele desembestou a fazer os mais belos sonetos que a língua portuguesa conhecera desde Camões. Um soneto a la ingleses e não como era a moda francesa aqui no Brasil.

O menino era libriano. Doido. Casou por procuração acredita?
de volta ao Brasil precisava começar a trabalhar, moço de família. E o convencem ao tal do concurso público (pouco mudou de lá pra cá). E na época se passava no Itamaraty por concurso. E passou. E seu primeiro posto foi nada mais nada menos que nos EUA.  Um doce nas mãos da criança. O fanático por cinema ficou pertinho, pertinho de Orson Welles e de Hollywood.

O menino, que agora já era um homem de família com filha e tudo mais, ouvia Jazz. Foi conhecendo a turma que fazia aquele barulho maluco, filho do blues. Imagina então um cara que testemunhou de perto o racismo norte-americano? bem diferente do nosso? Viu um menino negro ser morto porque assoviara pra uma mulher branca. Soube da história de uma cantora negra que morreu porque não a receberam no hospital de brancos pós acidente de carro.

Um homem que viu a II Guerra começar e assombrar o mundo. Escrever crônicas sobre o desejo de paz, mesmo tendo aprendido com o livro do Eclesiastes que existe "tempo de guerra, e tempo de paz".

Imagine um homem que precisou viajar com um gringo pelo Brasil a fora para cair em si de que o seu país era um lugar repleto de contradições e deixar de andar à direita integralista para dar passos mais avermelhados à esquerda.

Imagine então um homem que vai pra França e lá encontra um cara maluco pra produzir alguma coisa de cultura brasileira. E aí esse homem se lembra de uma noite em que ouviu a batucada vinda do morro e baixou nele a vontade de transpor o mito de Orfeu pro morro carioca? O amigo ficou maluco e fala pro homem: poxa, bora filmar isso! e aproveita pra montar essa peça de teatro no seu país, uai!

O cara então um poeta respeitável, diplomata ainda por cima, comete a ousadia imensa de levar pros palcos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro um elenco de atores negros. E ali era só o começo da ousadia. - da qual sai endividado. O homem lembrou do menino que sempre gostou muito de música. E já que a peça era sobre um músico, por que não escrever os versos também a serem cantados? E por que não arrumar um parceiro pra musicar?

O homem então - que já era poeta, cronista, crítico de cinema, diplomata - vira definitivamente um compositor popular. Poesia e Música: Orfeu.

E aí então seus versos ganham os versos mas também os palcos. Ele vai brigando com o terno e a gravata e cantando...O homem então repleto de amigos faz música com gente viva, gente morta - nem Bach escapou. Faz música até sem saber que faz: musicam ele. O menino criado cristão agora era homem que canta orixás.

A essa altura o homem perde o emprego. Vira showman de vez. A essa altura o cara já casou um monte de vezes. A essa altura botaram o nome dele na reinvenção da música popular. A essa altura já tão falando mal dele: era um baita poeta e agora fica aí fazendo musiquinha com esse menino novo.

Muda pra Bahia. Fica mais chegado ao povo de Santo.
Imagina só um homem que fica falando por aí que é o branco mais preto do país.

Pensa num cara que casa nove vezes e não para de escrever nem canção e nem poesia - e que se morria de medo de avião.

Agora imagina ele sessentão Todo de jeans e bata? cantando em universidades e lendo um poema seu pros operários paulistas em pleno Primeiro de Maio? 

Imagina um cara que não esquece sua veia católica e subverte A Arca de Noé pros pequenos, entre versos e canções?

Pensa num cara que tinha a casa aberta? Um brother mesmo... que viva cheio de amigos e sempre sentindo saudade deles... morrendo junto a cada vez que um morria.

Imagina um cara que morreu num dos seus lugares preferidos: a banheira -  lugar em que gostava de escrever...

pensa só.

Agora pensa que tem músicas suas sendo cantadas num monte de lugar do mundo: por todos os continentes. Pensa que ele, que tinha um apreço formal  a ponto de subverter as formas mais clássicas da poesia, é muito mal quisto nas universidades do seu país. "Poeta menor. Pequeno". 
Poetinha. - camarada - que foi homenageado ainda em vida pelos seus. 
De que vale seus sonetos serem recitados a torto e a direito e suas canções? Pensa numa dificuldade tremenda de achar bons textos por aí que falem dele? Pensa que no ano de seu centenário há vários programas de rádio contando sua história... 

penso que no ano em que ele faz cem anos, se pá faz tanto frio em São Paulo quanto fazia na fria madrugada em que ele nasceu. 

domingo, 6 de outubro de 2013

foto-grafar.

aumenta o brilho
mexe no contraste
se mira no espelho.
edita, repara.
(atrás de uma tela tem público)

o branco fica mais branco.
bota um vermelho nos lábios
e daí se parece zumbi?

o mesmo riso.
a cabeça meio torta
os cabelos propositalmente
em desalinho perfeito.

pasta de gente
dente reluzente
no metrô é só
mais uma cara emburrada.

colunas tortas
vozes bravas
alteradas
ouvido na câmera
registro da rispidez.

e daí a feiura
da face contorcida?
não tinha flash.

as fotografias da máquina da memória
em cliques de cérebros de estranhos
já não fazem assim
tanta diferença mais...




sexta-feira, 4 de outubro de 2013

it's her fault

acordou fedida. há duas madrugadas ela ronda pela cidade entre bares, sambas, cartas, amigos, meia-luz-inteira. fede gato. bafo. descabelos. babas. acordou com o peso das fumaças. olhava pra dentro e via o caos. do lado de fora o devir. andar.
a roupa apertada de quem precisava de agilidade nos movimentos. suja de molho. embassssssssssar.
pé-ante-pé ela deixa mais um quartinho provisório, um dos tantos da vida de andarilha.
se olha no espelho. água na cara. caça a chave. anda.
anda.
anda.
anda.
à espera do farol abrir ouve o caminhão ao lado
"noooossaaa" e depois de captar o tom de cantada barata mal consegue distinguir os fonemas-sílabas-desaforos.

o sinal não abre. o caminhão passa a seu lado. o infeliz completa o ato: bota a cabeça pra fora e vai contorcendo o pescoço. vê então uma cara amarrada. emburrada.

anda.
anda.
anda.

sobe escada.
desce escada.
passa.
para. compra.

"hmmm. nossa que gostosa!"
ele diz depois de cruzar com ela
que dessa vez grita:

"que merda, hein?!!!"


salta. escada. anda.
respira.
calcula.
reza. medita.
esquece.
assombra.
enraivece.
bafo. cecê.
suvaco cabeludo.

"hmmmm que delícia hein?"

"PUTA QUE PARIU!!!!!!!!"

anda. espuma. raiveja.
fiu fiu. - CHEGA de fiu fiu
merda.
existir.