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domingo, 27 de setembro de 2015

são paulo é um rio

"são paulo é um rio".

um não. vários. nasceu da confluência deles, no vale entre três deles. mas sobretudo estar em sãopaulo muitas vezes é como tentar ficar parado no meio da correnteza de um rio: é um exercício imenso de tensão dos músculos para não se deixar levar pela correnteza.

como pode uma cidade sem água com tanta água correndo debaixo de seu concreto? é impossível caminhar mais de 200 metros sem passar por um rio, dizem. e ainda assim, tanta gente sem água. como é possível uma cidade sem água se quando a chuva vem, tudo se alaga e a água, em toda a sua fúria nos devolve a destruição.

é isso. o afeto. existe sim amor em sãopaulo, assim como existe água. só não se tem tratado bem de ambos.

é bonito falar sobre os rios, sobre as águas, sobre as entidades femininas que as representam e guiam. belas no altar. mas e no ato, o que fazemos com elas?
o que fazemos com nós mesmas?

foi do encontro de duas mulheres, machucadas pela vida e tantas vezes por elas mesmas. o encontro numa cidade que desperta paixões, pulsões, solidão, fúria, acalanto, dor e prazer. o questionar-se sobre tudo isso e tanto mais que nasceu o desejo de fazer gritar o feminino sofrido, a água doente em procissão pela cidade.

em breve todos teremos que ter nosso modo de benzer essa água que há fugidia, furiosa, maltratada em são paulo.

oremos, desde já.

e olhemos para as ruas e os rios. esses que estão lá: canalizados, retificados, poluídos, mas estão e são a alma dessa cidade.

"são paulo é um rio" é uma performance em construção de isabela morais e érika malavazzi.

ganhou as ruas pela primeira vez dia 07 de setembro de 2015, pelo centro da cidade, da rua aurora pela Praça da República, Teatro Municipal, Vale do Anhangabaú até a Ladeira da Memória. e há de ganhar novo chão. - que ainda nos pulsa o desejo de ser rio, de ser grito, de cantar e rezar, denunciar e ser nessa babilônia.

essa foto é anderson carvalho e integra a exposição do Picadeiro do Yelp, amanhã, 28 de setembro, no centro. uma das 30 selecionadas.

agradecemos pelo registro de anderson.
pelo figurino de Sandro Freitas
e todo o apoio do Estúdio Judith Paissandu

e a todos cuja arte e versos nos ajudaram a entoar esse grito pela cidade
desde os cantos das lavadeiras, os sambas de coco, as palavras de Micheliny Verunschk, as canções, de Douglas Geermano, Kiko Dinucci e Dea Trancoso, aos amigos próximos e distantes com a sua dose de coragem.

"devagar, devagar
rio não para de correr"



terça-feira, 22 de setembro de 2015

cê acha que eu sou um rato?!

e é sempre assim. o lugar onde as fichas me caem (algumas delas) é o bar. "toca um cazuza, então" - me pediram, ao pé do ouvido, com segundas intenções travestidas de olhar pra dignidade. toquei simples e fácil na ponta do dedo: "disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso. minha metralhadora cheia de mágoas. eu sou um cara".

ao refrão, foi inevitável não lembrar da cena, mais que da cena, da pergunta:


"Cê acha que eu sou um rato?"


talvez "Que horas ela volta?" já valha simplesmente por essa pergunta. que o filme se repete, se dá e se entrega didaticamente, quase como "O som ao redor" as vezes faz - vide a ~SENSACIONAL~ cena do plástico da revista-veja- durante a reunião de condomínio, tudo bem, é verdade. mas pensando agora, só de ter construído sentido para essa pergunta o blues já valeu a pena - pra citar o velho Chico.

eles estão com os pés na piscina, a filha da empregada e o filho da patroa. ele pagando de legal oferecendo o baseado. ela, cansada, exausta de testemunhar e, mais que isso, viver na pele a contradição da vida da mãe nas relações mais simples como "a mesa do café" "o chão que eu limpo" "o tempo que eu gasto com o filho dos outros mais do que gastei com a minha própria filha a vida toda...", bem, a filha da empregada, exausta, fuma o baseado e demonstra toda a sua vivência [que está mais no que não diz do que no seu esteriótipo de "coitada... ela vai prestar FAU"] no olhar que lança à pergunta: "você é virgem?"

só ali, ao menos pra mim, ficou claro que a vida da filha da empregada é a própria repetição da mãe:
  "ainda somos
os mesmos
e vivemos"

jéssica tinha um filho. a foto 3x4 que a mãe vira no livro. jéssica também o deixara pra trás, tal como a mãe o fez.
o menino-patrão excitado sobre virgindade como quem se preocupa com outras levezas da vida, mal sabe, que ela ali, além de já conhecer o sexo, já conhecia também o parto. ~dos que gera, e dos que deixa.
porque sim, lembremos todos, que mais do que o quartinho de empregada que o moço dO Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, demonstra até literalmente, desenhando no curta "Recife Frio", ou no esmiuçar do "Eletrodoméstica", uma das heranças da escravidão na relação de ainda hoje empregada doméstica, passa pelo crivo do corpo.


o corpo e o aninhar-se do sinhôzinho nas tetas grande da Regina Casé, ops, da Val.
ou, pra ser mais explícita, o patriarca que pelo encantamento, vindo do tédio da vida que leva, vazia, mentirosa e mesquinha, com piscina, quadros e status, bota a filha da empregada pra dentro de casa, mostra pra ela o mundo, dá quadros e a pede em casamento. a tensão sexual no ar.
 - bem, é ele quem olha da janela desgostoso, lá da varanda do quarto, os dois jovens fumando um com os pés na piscina esvaziada.

esvaziada?
cheia de ratos.
tuas ideias não correspondem aos fatos...

bom, o caso é que a piscina é bem de luxo. dormir no quarto de hóspedes, ainda vai. comer escondida na cozinha, vá-lá "sua mãe é parte da família". mas na piscina... assim, de roupa, às gargalhadas e sem constrangimento, de igual pra igual, em prazer corporal com o meu filho?
aí não.

se eu não gozo, ninguém goza.

e aí, eu compartilho minha sensação de esteriótipos novela-das-6-da-rede-globo.
um grande amigo meu esses dias reclamou via Facebook que a galera não fica fazendo dramalhões nas ruínas de Auschwitz, mas que no Brasil a gente adora fazer novela em fazendas escravocratas...

e filmamos os porões. e damos "dignidades" às escravas de casa. às donas chicas, as pretas cozinheras... àquele pretinho que vai falar com o português errado, meio rápido, olhando pra baixo, sempre à disposição do sinhozinho.
se não, ele é safado, folgado, tá tirando por cima dos irmão e dos patrão, filho da puta que se morrer no final da narrativa, é até um alívio.

 - ai, ai. se soubessem como as coisas eram pralém do dramalhão.. ai ai... a delicadeza do ofício, a sutileza da estratégia, o traçado nobre dos serviços sutis, desde o ferro que forja à política que liberta, passando pelo tabuleiro "inocente" que passa recados e articula toda uma teia de micro-poder que gera a liberdade. - é que não é assim que contam na escola...

pois bem.
veja só a cena. o dono da fazenda, um senhor mais velho sente ciúmes do filho que se encantou com a escrava da casa, a filha, nova e cheia de encanto e curiosidade.
e a brecha, aceita por todos nós -  Ó COITADO DOS HOMENS! - é porque a esposa é uma mocreia, só pensa em futilidades, o dinheiro, a distância. é uma mulher carrancuda, mal humorada. sempre ela, a louca.
veja a cena, então, da sexualidade dos debaixo explícita junto ao prazer, ao baixo, ao animalesco, enquanto à senhorinha da casa é recheada de virtuoses romanescas, empecilhos amorosos, desencontros, provas do verdadeiro amor.

"Mino, escravo de Albino Rocha
Dançou com sua cabrocha
Na beira do Ribeirão.
Ela, escrava mais geniosa,
Dançou com menino prosa
Na beira do Ribeirão.

Mino, escravo de Albino Rocha
Dançou com sua cabrocha
Na beira do Ribeirão.
Ela, escrava mais geniosa,
Dançou com menino prosa
Na beira da imensidão.

Ribeirão sangrou
Ribeirão vazou
Ribeirão morreu de dor de amor.
Ribeirão sangrou
Ribeirão vazou
Ribeirão morreu de dor de amor." [Ribeirão  - Rodrigo Campos - Bahia Fantástica]

***
antes dessa empregada, o que fez fervilhar minha timeline tempos pra trás foi a narrativa do clipe "Boa Esperança" do Emicida. Para o bem e para o mal. Eu mesma levei umas 3 ou 4 vezes assistindo o vídeo pra fichar cair e embasbacamento clarear. e o debate rendeu, dias, semanas... prós e contras, da narrativa utópica, da revanche, da gota dágua, da forma-conteúdo, do que se diz como e quando e porque e pra quem. - louvado seja já por isso! debate: com furor e respeito - mas nem sempre, porque discordar ainda é visto NO PAÍS DA CORDIALIDADE - e assim como parece que se leu nas coxa Gilberto Freyre às vezes parece que leram mais mal ainda Sérgio Buarque e as Raízes do Brasil, na beleza que uma leitura weberiana criativa pode ter sobre o Brasil - discordar aqui ainda é falta de educação.

[dai uma das causas do ódio toxicante do Facebook e o maniqueísmo na visão e suposta resolução de problemas...]

bom, o clipe do Emicida traz uma rebelião de doméstica e a gota dágua de uma situação DE SÉCULOS de opressão. entre tipos de gente, tipos e variações de respeito e dignidade humana. - que ali também passa pela dignidade do trabalho, mas tem a ver com algo ainda mais elementar e básico.
tanto que o áudio da descrição da rebelião que finaliza o clipe, no "gênero do discurso" âncora-de-jornal-nacional revela que uma das reivindicações da imensa onda de rebeliões que assola o país de norte a sul é MAIS RESPEITO.
bem, não é de hoje, nem de ontem que estamos falando da relação daquelas que passaram a ter direito a FGTS... não mesmo.

e nesse sentido, só pra sair do círculo vídeos, filme,
a tirinha de Kiko Dinucci da série Classe Idade Média é igualmente didática:




mas, voltemos à piscina.


Anna Muylaert gosta delas.
a primeira personagem que nos é apresentada nesse filme é ela. a piscina, mas naquilo que dizem por aí, possam chamar de uma relação de fronteiras borradas: a piscina é o objeto-tanque-d'água, mas um sujeito de uma relação social que instaura ao estar associada a um locus, ou pra aumentar o palavrão: a um cronotopo. relação de tempo e espaço. como isso se dá.
ali o menino, criança, se diverte sozinho com a babá e interroga pela mãe. e com a mesma naturalidade que quer saber da mãe, quer tentar entender porque cargas d'água a empregada, tão querida, de corpo, ninho e afeto e PRESENÇA não pode entrar na piscina.

"mas ó, se ele te chamar pra nadar tu diz que não tem roupa de banho" - assim como fizera a vida toda, a mãe ensina pra filha - desabusada que já toma café com a patroa e dorme na casa-grande -
qual desculpa dar.
mas daí se junta a fome com a vontade de comer. o filho da patroa cheio de hormônios e vida. o sol escaldante. ela e a vontade de nadar. pronto. tá feito. ali de roupa e tudo na piscina do patrão. opa. da patroa.
que vê aquilo e surta.
e em menos de cinco minutos liga "pro cara da piscina" e diz que teve um problema. é. precisa trocar a água. "eu vi um rato."

e ali se desmorona com sutileza toda a fachada da cordialidade da patroa que é grata à mulher que criou seu filho.

durante o baseado ela pergunta então, faceira, desbocada, relaxada, cansada, exausta e irônica, ligando todos os pontos que passam por ela e por tantos outros lugares: "cê acha que eu sou um rato?"


Anna Muylaert gosta de piscinas porque também é numa delas que começa outro longa seu:
"e além de tudo me deixou mudo um violão".


a história de uma menina que lida com o alcoolismo e a frustração da mãe inglesa no país dos trópicos diante da separação e de uma vida que não leva mais. a menina que aprende a mentir no mercado, a roubar o vinho que sustenta a o vício da mãe. que frita seu próprio ovo. e que de tanto lavar sua própria roupa já que a mãe é incapaz "e também não contrataria uma empregada visto que isso é coisa do Brasil. Na Europa nãos e faz isso", bem, de tanto ir à lavanderia acha o violão que desencadeia as paixões do resto da narrativa.
filme lindamente costurado em sãopaulo e a trilha dOs Mulheres Negras, seja em ato - um professor de música e um vendedor de instrumentos dA Teodoro, sejam cantando o passeio "Imbarueri".

Anna pode ser sutil. O serviço doméstico ali feito pela menina que estuda em escola bilíngue é quase um sacrilégio diante da irresponsabilidade da mãe. Mas e se nossa menina fosse preta, é, mais melanina, e POBRE? normal carregar o irmão no colo, enquanto faz comida, não?
e aqui não há juízo nenhum sobre o serviço em si, mas sobre a relação social na qual está instaurada.


explico.

fiz uma grande amigo lavando louça.
é.
noite de sábado em casa, no ninho, com os amigos, vinho, comida, violão... casa coletiva, melhor ajeitar as coisas, ele se levanta também vai pra cozinha e diz que quer lavar a louça. eu disse: "é memo?" - porque assim, eu não curto quando eu tô muito na pegada de lavar e alguém me diz pra não fazer isso, como se fosse uma ofensa, como se minha mão fosse cair, etc etc...
nos entendemos ali. que lavar a louça é um cuidado.
consigo. com o outro. uma forma de amar. ele, bunitinho, capricórnio com ascendente em câncer: AMA CUIDAR DOS OUTROS. mesmo.
e ali rolou uma sinceridade e essa percepção, confirmada, de que o problema não é coisa em si. lavar louça não é um serviço menor AO CONTRÁRIO.  e que é da-ora poder oferecer isso para o seu próprio lar ou para o canto dos amigos.

"cozinho porque gosto de comer", sempre diz o mestre quando comentam do seu gosto e habilidade com a comida.

mas esse mesmo mestre da frase acima também foi o mesmo que me jogou na cara meus habitosinhos-pequeno-burgueses-de-gente-que-sempre-teve-empregada-em-casa-e-nunca-precisou-lavar-uma-cueca-e-nem-arrumar-a-cama.

e é. tá marcada no corpo da gente. é fato.

e desconstruir um hábito é fazê-lo descer degrau por degrau.

minha relação com o serviço doméstico de ser SERVIDA SEMPRE só se alterou quando eu fui embora de casa - privilégio classe média estudar fora, na pública e morar em república - mas sem esbanjar grana a la playboy e ter que aprender a esfregar roupa, desentupir pia, entender que o lixo dela não vai embora sozinho - nem ele e nem o de canto algum da casa - a deixar banheiro limpo - ou seja limpar a merda do outro - e todo o resto da porra do toda.

e isso transformou minha relação com a Rô quando voltava pra casa aos fins de semana. e também com meus pais "deixa essa louçaí, a rô lava amanhã". "aii... que bunitinho... ela cozinha"...
quando ia pra cozinha e pegava a mesma faca velha, quase sem corte e dizia "minha mãe precisa trocar isso [e porque não eu né?]" "já falei, mas..." "é porque não é ela que usa..."
ou ainda sobre a máquina de lavar, o tanquinho "maria, precisa trocar" - mas sempre tem outras coisas com as quais fazer milagre com a grana... "é porque não é ela que lava a roupa."
e aquilo pra mim claro. e óbvio e doído.

eu vivi a ausência da mãe que trabalha fora um tempo. até uma aluna do primeiro ano do ensino médio responder numa prova de sociologia o absurdo que a nossa sociedade que obriga a mãe a trabalhar fora e não poder cuidar do seu filho... eu nunca tinha visto a coisa por esse ângulo.
por que a Val não pôde cuidar da própria filha? por que a patroa não cuida do próprio filho?
que horas elas voltam?
porque aí, passa por outro lugar, que não apenas o da emancipação da mulher que "pode-trabalhar-fora-e-ter-uma-carreira" e a pessoa que me fez enxergar a resposta da minha aluna dessa forma, foi justamente a minha cunhada - mulher super bem resolvida consigo, com o ofício que escolheu e que não via sentido algum na vida voltar pro trabalho apenas 4 meses depois de ter dado a luz...
essa mesma sociedade que nos faz ter que achar meu irmão um super herói simplesmente por ser pai e dividir a funça com a esposa, de cuidado, de tomar conta, banho, fralda e o escambau porque os horários dele são mais flexíveis...
agradecemos pelo mínimo - e isso também é resquício da cordialidade daquele que mira subir pelo apadrinhamento do opressor. - passo que o leva praticamente irremediavelmente a se tornar um assim que tiver alguma brecha...

que horas?

mas outras relações são possíveis nesse tempo-espaço do serviço "doméstico"

foi esses dias mesmo, uma amiga - dessas recentes, de pouco suor, mas que parece que de uma (ou várias) vida inteira, ela, que tem um espaço. é. um... bar. não. restaurante. ah! não sei. ela cozinha atrás do balcão com a mesma dignidade desses homens que trampam nessas padoca-faz-tudo-24h-de-sãopaulo. ainda que ali se venda cerveja cara, artesanal. o prato tenha o requinte e cuidado. onde se pode escolher o que se oferece para que se faça sempre com cuidado e amor - outro tempo, não o da máquina. - enfim,um canto prova de amor pelo ofício e pela cidade.
ali Ná Conceição. é. a gente sabe como é banheiro coletivo. de balada. aquele do meio do rolê. ou o banheiro de rep que muita gente usa e vira aquela narquia...
pois bem. o banheiro entupiu.
a reação na balada é o nojinho, a ponta dos pés e o pular pra outro lugar minimamente, quando há.
ali, estávamos em casa. mesmo que não fosse. mas com familiaridade e carinho e cuidado o suficiente para aceitar uma das frases mais belas: "se você vê uma tarefa, ela é sua".

bom, quando eu saí do banheiro pensando que pegaria a sacolinha que sabia onde tava pra trocar o lixo, chegava alguém que tava no corre do desentupidor. um amigo vê a movimentação e ao fim do rolê, quando a gente já tinha arranjado até o pano pra deixar o chão minimamente, ele chega, bonitinho com um saco de lixo, que ficou ali na pia e horas depois foi de fato bem útil.

 o freezer alagou já no fim da balada, é. transbordou gelo derretido por todo o chão escorregadio. eu já meio alta vi a movimentação de longe e ouvi alguém dizendo que pegaria o rodo. "cadê? achou?" "não tem. tá quebrado". eu, vizinha-da-balada vim em casa e peguei os dois rodos e levei, atravessando a noite do centro e cheguei convicta. arribei a barra do vestido, descalcei as sandálias e deslizei no alívio refrescante da água gelada nos pés do calor de sãopaulo. e fiquei ali...teeeeempos até a mão inchar puxando água. e as vezes eu ouvia a possível voz do outro na minha cabeça, antecipando, imaginando "não. não faz isso" ou ainda possíveis admirações "noosssa... a la..."
mas não. tava todo mundo de boa. de boa MESMO.
tanto a galera bebendo uma, que tava satisfeita em pisar no chão alagado e em alguns papelões - solução provisória, tanto eu que agora tava relaxada, curtindo o calor e a vida enquanto ouvia "Down by the Seaside" cantando Led na maior altura. ali. diante de taaaaanta gente que eu admiro e que é só gente. que faz aniversário. que canta. conta causo. faz piada. se impressiona com a beleza das coisa...
todo mundo de boa, como quando meu amigo lavou a louça do jantar de casa.


é hora de perder a paciência. matar o velho mundo dentro de nós  - e ó que apesar do causo bonito do final, eu tô bem longe de ser coerente com tudo que disse e minha relação com as pessoas...
mas sobretudo, é hora de ter fé no afeto, na possibilidade utópica e papável de se construirem outros lugares, outras relações... o novo, enfim. feito que mesmo a sujeira que fomos. e seremos até parir o dia que virá.



***

em tempo:
já que o estalo se dá com o Cazuza no boteco, continua pelo chão do Conceição Discos, nada como terminar com canção empregada-cozinha-sala de estar-apartamento.

a bossa nova cumpre seu papel de contradição no filme de Anna. uma das poucas canções de todo o filme é justamente "Águas de Março" tocada justamente na festa de aniversário da patroa. - bossa status nova. - cena em que se explicita a ingratidão e a vergonha que a patroa sente de Val.
pois bem, a dita primeira bossa-nova da história nasceu do assobio de uma empregada:

"No livro Chega de Saudade, de Ruy Castro, há uma passagem falando que Tom se inspirou num chorinho que sua empregada costumava assobiar quando foi começar a compor Chega de Saudade."