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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

sobre vipassana


Há dois anos atrás eu passei a virada do ano em silêncio. O que me lembrava que alguma coisa acontecia do lado de fora era o barulho dos fogos de artifício que vinham de algum lugar perto-longe daquela serra chuvosa onde eu me encontrava.
Ali eu fora aprender uma técnica, após das histórias ouvidas de amigos do peito e confiante nos conselhos do meu então companheiro.
Como um lugar preservado, no meio da serra a convivência com insetos e animais de toda espécie era inevitável. "Não matarás" - mesmo. Aprendi ali que é possível simplesmente respeitar o lugar do inseto. Tirá-lo com cuidado. Não deixar minha bolsa aberta, ou deixar meus sapatos virados pra não topar com um escorpião ali dentro. Até hoje eu tenho muito pesar quando mato um inseto. Tento desviar das formigas. Até a relação com os pernilongos mudou. A técnica consiste basicamente eu aprender a observar as sensações do corpo, numa espécie de compreensão física e íntima daquilo que as mais diversas correntes filosóficas e espirituais sempre dizem: TUDO É IMPERMANENTE. Tudo passa. Se você observar bem, tentando não se apegar ou ter aversão vai perceber (não sem alguma dificuldade) que até a coceira do inseto pousando em você, passa. Parece besteira, mas até a minha mania de me coçar sabe? aquela agonia que as vezes dá, até isso diminuiu drasticamente. Conseguir perceber como essa impaciência refletida em ato nada mais fazia que me machucar.
E como desperdiçamos palavras!!! Como as conveniências palavratórias podem nos afastar da sutileza da comunicação dos olhares. Estar em silêncio é parte da técnica. Não é o objeto do retiro. Silenciar o de fora, para ouvir o de dentro, para silenciar o de dentro. Observando as sensações, sempre. Observando os pensamentos.
Com a impossibilidade de falar e compartilhando espaços comuns, dividindo quarto, banheiro e mesa de alimentação com mulheres diversas, você aprende a observar os pequenos atos. Que um determinado jeito de olhar significa "desculpa". Que as vezes não precisa dizer "desculpa" - algumas coisas simplesmente acontecem, e não são por mal.
Estar com aquelas mulheres partilhando o silêncio me fez amá-las profundamente: ao final do curso, eu já sabia como algumas delas comiam, como fulana lavava a louça, o ritual de sicrana ao acordar.
Com o silêncio, seus atos se tornam sua companhia. Parece bobagem dizer isso, mas você presta atenção naquilo que está ou não fazendo. E como. Passo fundamental para se transformar, não?
Tendo como companhia os atos, coisas simples corriqueiras que desmerecemos ao longo da rotina, tornam-se prazerosas de fazer, perdendo sua aura de "ordinariedade estúpida": cuidar do lixo do banheiro, varrê-lo, lavar as louças, secá-las. Aprendi em silêncio a lavar melhor minhas camisetas, observando uma mulher simpática que só.

Quando eu finalmente pude falar, sentia a tonalidade da minha voz outra. A velocidade da fala, o jeito com o qual eu respirava. Minha postura, meu andar transformados. Pudemos enfim conversar. Com a exaltação da fala o ato pequeno deixou de ser a grande companhia: transformar em estética verbal as mulheres há dias amadas era tentador e prazeroso. Nesse dia o lixo do banheiro transbordou, e as louças demoraram o triplo do tempo para serem lavadas. Houve atrasos para entrarmos na sala de meditação e a concentração definitivamente era mais difícil.

Não foi sem dificuldades que eu passei pelo curso do Vipassana. Observar a si próprio, criar disciplina de meditação... Mas eu sabia porque estava indo e pelo que iria passar. Tinha menos a ver com experimentar algo exótico, do que uma oportunidade de aprender uma técnica que poderia me ajudar a viver melhor.
Talvez por isso minha experiência tenha registrado em mim um baú de memórias doces que saem de mim com um sorriso. Sempre.

Na seguinte reportagem, a jornalista Laura diz: "O professor Goenka prometeu em várias de suas palestras (sempre ministradas à noite) que o final do curso viria acompanhado por semblantes felizes, típicos de pessoas maravilhadas com as possibilidades abertas pelos ensinamentos recém-adquiridos."
Foi mais ou menos assim mesmo que eu me senti.

Não. Não voltei ao Vipassana. Não. é raro eu praticar aquela meditação com aquele rigor, tal qual nos é orientado.

Mas se me perguntarem sobre meus dias por lá, com certeza não será em nada parecido com a experiência da jornalista Laura.

Gratidão a todos aqueles que lá me serviram. Gratidão pelos ensinamentos.
Que todos os seres sejam felizes.