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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

sobre estar só.

 - mas assim, moça?
 - é.
 - desse jeito, assim?
 - é como foi. do jeito que tinha.
 - sei não. doutro jeito podia ser.
 - .
 - mas é que o riso era grande...
 - e a dor também.
 - mas tinha tanta luz...
 - ...
 - tinha tanta vida...
 - tinha, moça. tem mais não.
 - mas vida não acaba. só transforma.


 - é. pode ser...

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

mansidão

pesava. de dentro pra fora. na concha. encharcada, escorria pela narinas: asas quebradas, o aperto do peito no peito. azul-imensidão-do-fim. baforadas e torpor. chuva de verão. lua cheia. estúpida. câncer, leão. com descaso olha: meses. números. cotas - contas. todas elas, menos uma. mansa brisa arrebenta as janelas, desossa as sutilezas do por vir. tá entupida, com o leito e a gata mijada. 'esculpida culpa estúpida': pensou em sequencia. palavras são só jogos paralisantes. parali-zante. antes. nó. (mente. sabe que mente. palavras são ânsias e por isso mesmo lhe fogem. golpeiam. cercam). prestes a zoar. olha a janela, mas não pula.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

e além de tudo me deixou mudo um violão - (ou música serve pra isso)




Pensa então numa boa combinação de Beatles, Chico Buarque, Riachão, Os Mulheres Negras, São Paulo, um olhar adolescente, ruas, problemas familiares, força e delicadeza? Conseguiu vislumbrar o que poderia amalgamar tudo isso? Sim. Um violão. Escondido, esquecido e empoeirado. 








"E além de tudo me deixou mudo um violão (While My Guitar Gently Weeps) é um telefilme, lançado ano passado pela TV Cultura, na quarta edição do projeto da emissora que teve como tema "A Música na Cidade". Dirigido por Anna Muylaert (de "É Proibido Fumar"), o filme nos conta a história de Erica, filha d'A Rita. A adolescente mora com a mãe, numa relação difícil, em que uma fala inglês a outra responde em português. Situação explicitada já no começo do filme: a bolha da mãe na casa de amigos, bebendo e contando piadas sobre a rainha, na língua anglo-saxã. Para chamar a atenção da mãe, Erica se solta numa piscina. Assim será por todo o filme, a mãe se atenta para Erica, pralém do abismo de seu alcoolismo, quando percebe a filha se divertindo com a música alta, ou, pior ainda, quando ouve saindo do seu quarto o barulho de um violão.

Chico Buarque e Beatles estão nas entrelinhas, se costurando nas mais possíveis combinações entre um e outro. Erica encontra na lavanderia - sim, com o alcoolismo da mãe ela tem de cuidar de si, passando pelas compras de casa e feitura do almoço - empoeirado um violão com a inscrição "LovelyRita". E na cabeça de cada telespectador passa um filme próprio: imaginar o músico brasileiro, que toca violão, que gosta de Beatles e conhece uma garota de nome Rita. E inglesa. E adorável. Nome de música. Sabe? sabe sim... gente bota música em tudo - canção pra tudo - ainda mais no Brasil... e... sabe aquele sensação gostosa estar vivendo um trecho da canção que gosta? Vida-arte e vice versa? 
Quando a gente fica besta de ver passar num lugar cantado numa canção - digo por mim que toda vez que vejo a placa "Vila Ipojuca" meu coração dispara e minha cabeça Trovoa, graças ao Maurício Pereira.

Pouco comentado nas boas quando não protocolares críticas do filme é o fato da trilha sonora ser feita pel'Os Mulheres Negras: a terceira menor big band do mundo, formada por dois homens brancos, que fez música nos meados da década de 80 misturando equipamentos eletrônicos, guitarra, saxofone, letras irreverentes, diversos estilos músicas, bossa-nova-beatles, humor, piada, versões, escrachos e a percepção de que de tudo se faz música e de que não tem regra do que é, do que pode ou não. -
  "Profissão de fé d'Os Mulheres Negras: tudo é música boa e tudo é influência. E ponto final". - nas palavras de Maurício Pereira. 
Pra não ser perder no leque de conexões, "Lovely Rita" tá no álbum Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, revolucionário e inovador nas técnicas de gravação, experimentação - : 

"Em treze canções levam ao limite o conceito do rock, agregando orquestrações, instrumentos hindus, gravações tocadas ao revés e sons de animais. Rockmusic hallbaladasjazze até música oriental se mesclam em Sgt. Pepper."  - e viva a wikipedia.
parece que na gravação de Lovely Rita usaram até pente e papel pra produção de efeitos sonoros
Experimentações e misturas: Beatles
Experimentações e misturas: Os Mulheres Negras.


Música serve pra isso - nome de álbum d'Os Mulheres, de música e de filme. "E além de tudo me deixou mudo um violão" parece que é o par ficcional da canção que conta:


"Que o mundo é tão variado / Tanta exclamação que às vezes / Não se nota que é constante / Que uma banalidade / Gere uma canção gigante"

Voltando dos devaneios pra narrativa do filme, Erica se diverte com os amigos em Barueri ao som de Imbarueri, com Maurício Pereira dizendo:


  "Onde a felicidade amarra o sapato. 
Imbarueri é do lado do lugar comum."



Após o encontro com o violão- velho, quebrado, empoeirado "Lovely Rita", o pai de Erica a incentiva a tocar e é o Maurício Pereira quem interpreta o delicioso vendedor de instrumentos musicais de um loja da Teodoro. V O tema é música na cidade, lembra? A cidade é São Paulo. A rua não podia ser outra. A Teodoro. Com seus vendedores que são músicos, trabalhadores. Gente que sabe o que tá vendendo, pra quem, pra que. Gente que em muitos dos casos queria mesmo era ser consumidor das peças sofisticadas e caras. Músico. Maurício. Na memória afetiva de quem ouviu "Um dia útil", as fronteiras entre personagem e ator se mesclam. Não. Não sei  - e acho que não - se o Pereirão já foi vendedor em loja de música, mas músico, de ofício, de trabalho, de cuidado, isso sim - não tem dúvida não. 


"e amanhã é mais um grande dia/ um dia comum de muito trabalho/ um dia grande / que nem um diamante / um longo dia belo / um baita dia duro e lindo / eu ganho pra estar brilhante / num dia útil"



O professor de Erica é um amigo das antigas do pai, "aquele gordo", interpretado pelo outro Mulheres, é claro, André Abujamra. E ele dá aula onde? É ali. Numa travessa da Teodoro - de pequenas portas e anúncios.

E aí é que são elas... com toda essa música sugerida, o que Erica quer tocar?

"Cada Macaco No Seu Galho". A música que ela ouve, na versão de Gil e Caetano, no último volume no seu quarto, seu galho, seu espaço, enquanto dança, se solta, se sente, flutua. Pra temperar a mistura desse roteiro, a canção é de um sambista de 92 anos, vivinho da Silva, Riachão, mesmo compositor de "Vá Morar com o Diabo" - imortalizada na voz de Cássia Eller.

As cordas do violão azul de Erica ressoam as dores da mãe. A fúria d'A Rita deixa mudo seu violão. É a Gota D'Água. Ah... Lovely Rita. Dor. Choro. Berro. Gente pequena que fica grande. Comprar o vinho. Roubar o vinho, chorar. Aguentar as pontas. Segurar o rochão. Explodir a verdade. Viver.

recomeçar. 

É a voz de Erica quem dá a trilha da deliciosa tomada dela, subindo a Teodoro com violão nas costas, entre as cores dos muros, das pessoas e dos ônibus, bem são-paulo.

"eu queria aprender pra tocar pra minha mãe."

"é. qual que é?"

A versão d'Os Mulheres d'A Rita do Chico é o filme em canção.  O vazio, o estouro, o samba, os Beatles, a sutileza, a singularidade d'Os Mulheres, anjos guardiães dessa história, com música por toda parte, porque assim ela está. Mais que compositores da trilha, Os Mulheres Negras partilham da proposta do roteiro, do tema explicitado, tratando de algo que lhes é tão caro. a presença da música na banalidade, no corriqueiro, como também nos ditos grandes momentos. Os Mulheres Negras contemplando essa presença cantada ou sugerida de canção por toda parte, como parte da vida. Transpira. Na vida e/da cidade.




[em resumo:
assistam ao filme. é delicioso.
e se você não conhece Os Mulheres Negras, não sabe o que tá perdendo.]

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

sobre 'contíguo' de Danilo Gusmão



de como e ainda com tanto amor,
ainda dou de barato
com esses companheiros de vida.






no avançar das páginas, cada uma das vozes se faz clara - mesmo que entrecortadas de preto e branco - negro suor.

Aline contou do cão, do cimento, do andarilho, espasmo.
Galvão percebe o cronista - atento-olhos-ouvinte e o duvidoso poeta, certo da batalha que trava.

muitas vezes não entendo, Danilo. - o que é bom.

Os espaços entre as palavras. . .

às vezes ele olha tão de perto (de tão perto) que cega a minha rapidez. que sorte ele cravado aqui.

ontem ele estava feliz de ouvir que seu livro-parto-palavra-rabisco deu tesão em alguém.

Eu me rendo: eu me detive: eu me assustei.

A poesia de Danilo me pegou desprevenida, lendo-a aqui, nessa poltrona em movimento, nesse verde-azul das montanhas.





- encontrar o sentido de título amarrado perspicaz à despedida sem ponto final. costurado(s) na alma de cada estrofe a dedicatória - e quanta sorte eu saber ver gente por detrás dos nomes próprios.

As citações precisas. Dan presente no Danilo. do verso em canção e também o caminho in-verso.

sem a melodia que embala, por pouco não se percebe a letra da canção, ali. mas o papel canta.








"grito na medula": o encontro do cão e do poema, nos esbarros e cacos da cidade grande. Nuno Ramos e Rômulo berram nas páginas pretas. E Dona Inah ecoa por onde o olhar para. olhar o cão. o detalhe. olhar a nós mesmos: sobreviventes da cidade cinza. mas,
 "sobre
                                                                              viver
                                                                              mata"

de como dou de barato. o geminiano besta de coração grande que não sabe como se apresentar na orelha de seu primeiro livro, é um homem imenso nas linhas (d)escritas. pariu um livro prenhe, bem pensado.
e revela, desvela, desnuda a cada um que se aproximar pra ver. ler. transpirar.
(este livro guarda versos que ainda cantarei)
até a minha declaração de amor ele me antecipou nos seus versos.

café







- então,
(pr’onde que o barco vai quando deixa o cais é de não saber pra gente que fica, que é cais. o cais da gente deixa margem pacata se pegar mais perto sem poder molhar. seca. a saudade que forra o nós um se arrebata e é feio falar. mas se fosse de fica-calada, quieta, guardava. é peito forte que escora esses corações, desses, assim. agüentam. o ocaso é cedo, o acaso é certo. se espalha pelos estreitos. é de muito as estradas na ponta da proa do se ser, num mar. e é carecido de fazer caminho um só que cante, estreito.  só que é de duas mãos, dadas, que o caminho prossegue. faz que não vem, mas vem. deixa. bota esse café na mesa. capricha num não dizer bonito de o dizer o quanto é de nem contar. recolhe meu ombro do olho e acolhe o meu pranto. nem santo que sara. padroeiro que guarde, nenhum. já é hora, meu bem. levanta dessa cadeira e clareia esse sol que é de nuvem. cala o agouro que o tempo se cansa em fazer de minuto. é canoa. teima de ir pra sem voltar. podendo voltar. se cansa. já é tempo de remo. deixo de fé. quarar num esmo assim de qualquer é dó. é céu, é mar que invade a gente e leva. passarinho que assenta na dobra da beira e fica. mora lá, castanho. vê se apruma do fundo. rodeia o ao redor. radia. aquenta o calor que as colchas lhe prestam. de volta: que é porto.)
sinto saudade.

- também,


(roberto me disse, mais cedo, enquanto fitava a janela, em busca de pássaros, que seu pai um dia lhe falou pra nunca mentir. roberto, depois, disse que seu-pai tinha se esquecido de lhe dizer a verdade. depois. a roberto eu dou ouvidos miúdos, atentos. tímpanos íntimos. verdade é calada, de aptidão inata ao sigilo. não é costume o seu dizer. é prélio de dentro, peleja de sem-findar. assombra o cerne do interno, o imo: de dentro. sofrimento não. esse é brado, clamor de fundo. meus sofrimentos são de fazer peito, qualquer que for, menor. guardados se atamanham, graúdos. abundam pra querer sair. quanto do não dito se asila num só silêncio sem talhar, lavrar. indizível. quanto passarinho numa beirada de estação, primavera. entremeio de dois tempos. difícil é sentir e ser ao mesmo tempo. pra sarar agonia que for: é verdade. pra estio, invernia. andorinha voa de primavera à primavera, maior que qualquer que verão-inverno. pra se não ter pesar, dizer: primavera. aflição desaflige quando sai. pelo menos apazigua. serena é agonia que deixa crisálida. borboleta: passarinho. primavera. menina, me nina no teu cinjo de volta. me abrange. perdoa. bobeira minha, sem ter de-. é tento agora. é tempo de aprumo. verão você, invernia de mim: maio-flor. horizonte amaina pra retina pouca. majora quando dois, companhia. quando somos. sejamos.)

amor.


híbrida síntese indissolúvel.

p. 113-115
GUSMÃO, Danilo. contíguo.

ou tudo de velho de fora e de novo aqui, ó, 






sábado, 4 de janeiro de 2014

entreabertos
basta
ver
revés da imagem
corpo mole
braços longos
riso, canto do boca
torço pescoço
exibido colo
me detenho ante o mergulho
é fundo e não tem volta
unhas comidas
vermelho pelos lençóis
bom dia, sol
espio ali, imenso na sua cova
passo adiante
a lembrança
da língua, dentro, entre
amortece
amanhece
me olha
me chama
me abraça
nem me cabe
arranha
mostra os dentes
riso largo
hálito da manhã
me largo
amor de manhã
escrevo outra hora
quem sabe
de manha
amanhã.

deu brecha...


na torcida pela pancada
canela quebrada
vontade de verão
todos os graus pra suportar
pra refrescar, 
enchente, gente.
quem come bola
engole advogado e não se rebaixa
na tela colorida
a coca cola a ideia de que faz bem.
bem bolado e há tempo.
derrete.
no tempo do aqui e agora
cuidado, que a frequência acelerou.
na terra de amarildos
fingir de morto, mata.

naquela mesa


Nunca se abraçavam. Ele via a barra da saia-de-secretaria passando apressada pela casa: papel-higiênico-nariz escorrendo, roupa-de-cama, frango assado, compras do mês, psicólogo. A voz alta nunca gostou de portas trancadas. Pudesse, invadia o banheiro e mesmo na hora mais íntima, na privada, no cheiro, se imisucuiria por cada poro. Cada cômodo da casa, por sua vez, era uma mistura de presença e ausência, plena. Não como o copo, que vazio está cheio de ar. Mas a superficialidade dos movimentos ativos e penetrantes, nutriam no menino uma cadeia de esperanças de paragens mais demoradas. E quieto, um dia, mesmo à contragosto de seus pulmões, ele foi embora. 
Levou na mala o lápis que ela apontava convicta e impaciente sempre que ele gentilmente tímido convidada ao ofício: "mãe, me ajuda com a lição?" - ela não sabia das confissões que tocava no rasgar o grafite desgastado contra a madeira. Alto, levava os pulos dados, incessantes, nas quadras e as braçadas salgadas. Levou dentro uma ressaca de alto mar.
Atravessou o deserto e deixou no seu rastro de água de lágrima. Venceu as fronteiras dos sofás vigiados e amava sob as máquinas de lavar. Escrevia cartas, poemas secretos, cravava os dentes nas coxas, nos decotes.
Ela via pela janela a vida passar, feito a Carolina. E da vizinha Janaína, com seus cabelos de espuma, sabia pouco ou quase nada, exceto das ferrugens a consertar. Os cômodos da casa extensões suas. Suas nervuras. Convicta, abalada, abandonada. Ferrugens na alma - se ela soubesse como Janaína, sua vizinha, é boa nessas feridas.
A barra da saia dela entretanto, não sairia de dentro, também, assim, tão fácil.
Pouco também avança essa escrita que sombreia os laços do real com pitadas blasè. Agora mesmo estavam ali, ao redor da mesma mesa, que o mundo roda... rememoravam no idioma natal - ventre, olhar, suor e partigiano - viagens que nunca fizeram, com roteiro de filme que nunca vi. Nas frestas das portas, dá pra espiar um amor cansado, mas vívido. De tropeços, com mancadas, muletas, aparelhos sonoros, controles, ventiladores, trancas nas portas, as lágrimas que rolam são afeto re-contido. Ele, meio bobo, com palavras nas mãos, ainda espera o abraço. Sem sombra, nem pavor, um milagre bate na porta: descem juntos pelo elevador e de fronte à porta de vidro, ele, não mais menino, e ela, não mais de saia, se tocam, se aninham e caminham com dedos entrelaçados pela orla da praia.







Cape Cod Morning - Edward Hopper