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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

it happens all the time

hoje é realmente um dia em que dói não "poder" falar contigo. sei que poder a gente pode tudo nessa vida, mas ontem mesmo nós reestabelecemos essa linha do não dizer, respeitar o tempo do outro e as frestas de esquecimento, memória, laços, afetos e prosseguir.
não que seja agradável saber do interdito, mas vida que segue, canção que se canta. memórias de silêncios, gestos teus já incorporados ao meu - que é, pra mim, talvez, das formas mais sinceras de amar.
hoje dói porque o Joe Cocker morreu, preto.
desde muito cedo desse relacionar-se que criamos, de passos entrecruzados, você falava, com os olhos brilhando, dos "Anos incríveis", do seu sentir-se traduzido e mais, da força da versão do Joe Cocker pra música "dos besouros", como também gosta de dizer, nesse seu jogo intricado, passional, racional e inevitável com a palavra, a língua e as coisas. E é tanta paixão travestida de imparcialidade que você mal percebe - ou percebe? - o desdém quase herege com que fala dos Beatles.
mas sim, você e todo um mundo inteiro se rasga com o Joe Cocker interpretando a canção dos Beatles, ali, em êxtase, sem nenhum pudor de sentir amor, sentir saudade, sentir-se rasgar. assim, como eu o vi diante dos amigos, na festinha na casa da ariana querida, eu ainda tímida e você e aninha ali, dançando como se a vida fosse um simples permitir-se.
desses novos sentidos que se desvelam na vida, no encontro da palavra do outro, Joe Cocker disse através dos Beatles, alto em bom som. Ali, no mítico vídeo em pleno Woodstock... quer mais motivos pra ser um clássico que hoje nos torna órfãos?
vídeo mítico e que tem paródias, como todo bom clássico. Rio aqui de lembrar da sua insistência em mostrar pras pessoas a versão com a legenda que tira sarro da pronúncia do Joe Cocker...
hoje dói não falar contigo. queria te abraçar e dizer, é, ele morreu. mas fez passagem. não se preocupe. ele continua ecoando no tempo e no espaço. ressoando e reverberando.
queria te abraçar, porque sei que tá doendo. ou só imaginando. mas sei lá... fiquei pensando no meu desorientamento quando soube do Gabriel García Marquez e da minha impotência no saber das coisas da vida, que a morte é parte dela, que todos passamos, e blablabla, que ele tava tão longe de mim fisicamente, mas que ainda assim, doía, egoistamente, doía.
eu sei que dói. e me dói não poder ser cúmplice de um afeto fraterno assim mais.

mas o tempo é o que fazemos dele.
há de passar, mundo andar.

e eu acredito no tempo, sempre disse isso - não que você gostasse dessa frase, mas é verdade. e num tempo grande. e na força que o afeto tem, pralém da nossa vontade imediatista.
então, daqui, dessa saopaulo que chora e vela pela voz que hoje se cala, eu fecho os olhos e te abraço. e te desejo amor.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

uma vez até morrer

A morte em cidade do interior é acontecimento. tudo bem. nem toda morte, mas tem ainda um poder de alterar rotina, de se espalhar pela cidade. não é indiferença pura e acontecimento banal de uma megalópole onde tudo se faz e se anda todo o tempo. não.
Na cadeira do dentista ouvia falar nA rádio da cidade não apenas o nome completo, mas também o apelido carinhoso, que o identificava pela cidade toda. poisé. o Toco morreu.
e a morte na cidade no interior tem um lugar. é. O velório municipal que fica junto AO cemitério da cidade. ali, onde se passa e se sabe se "alguém morreu de novo!?".
ali. na pracinha do cemitério, hoje cheia. e cheia. de todo um borburinho. a morte é local de reencontro, de alvoroço na tarde da cidade. é um murmuro, uma falação. um reencontro na urgência dos dias. A morte é um caderno com listas de nomes, óculos escuros, flores mortas. a morte são letras douradas. ali no salão que pede "silêncio-por favor-obrigado" em letras vermelhas e tortas na parede. a morte é um riso indeciso e um choro in-contido.

nessa tarde, a morte era vestir-se da última e grande paixão da vida. a camisa alvinegra, a cara que descansa depois de tanto sofrer. e não havia ali herói. havia um homem com seus tropeços, amigos, vícios, qualidades e contradições. e sua paixão: o atlético mineiro.

de repente, o silêncio se coloca e a morte desfila. o caixão vem carregado pelos amigos e filhos e rostos sérios, lágrimas e decorado com a bandeira do time do do coração, o único possível e cogitável em toda a passagem por aqui. de repente, a morte é a (in)(con)ciência dos passos lentos de cada um dos presentes de que essa caminhada todos farão. a morte é um belo pôr-do-sol entre as lápides da cidade, um vôo mais urgente que qualquer riso vivo de alegria e a vida um velório cheio na praça e na esquina.

e então, a paixão torna-se canto e alegria. todos os amigos cantam o hino do atlético mineiro. alto e forte e convictos. ali, mais que qualquer oração, discurso, o ritual de passagem, de brindar a vida, a cumplicidade, a riqueza da amizade, suas alegrias e dores, seu valer a pena, ali era aquele hino, palavras de ordem sobre vencer e lutar, sobretudo. síntese. e transbordamento.

"Clube Atlético Mineiro uma vez até morrer", sim. ali, até morrer.

e sim. choramos todos. atleticanos ou não. porque a morte por de ser um aperto no peito de quem escreve, mas a passagem... ah! a passagem é entrega. é re-saber-se. é só contínua-ação.

nossos mortos não nos devem nada. deixem que vão.


(bom descanso, Toco e boa caminhada.)


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Desfazer os nós
Os enlances e desenlaces
Lamber as feridas, encarar os estragos
Juntar os cacos
E andar.
Tanta história mal dormida
passado mal contado
Nao saber, nao dizer
Entregar e esperar
A casa, o afeto, a memoria
Finda. Findador.
Solta a materia suja, resta a vida

Borandá.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

brás

"escuta... é coisa da igreja isso aqui?"
"não... não é não... é a exibição de um filme"
"e paga?"
"não.΅
"hm. e é quando isso aí?
"agora. a pipoca é de graça também."
"e que filme que vai passar?"
"é um documentário."
 - interjeições variadas. caras mil de rejeição e resmungos.
"escuta. sabe onde eu acho uma farmácia aberta por aqui? preciso de um epocler."
"pergunta no mercado..."



"moça. sabe onde fica a igreja universal aqui?"
"hm... acho que é só seguir em frente."

enquanto a porta do prédio da rangel pestana 1292 esteve aberta, vi passar o fim de tarde agitado de sábado de muita gente. de olhos aflitos, de passo apertado, de vontade de trabalho e de fim de trabalho. de risada. de saco cheio. sacolas, sacos, bolsas, pacotes. olhos puxados, lábios grossos, varia
ções de melanina.

e toda aquela gente é gente, com história, suor. meia dúzia de sonhos. vontades de amanhã, ou de um daqui a pouco menos zoado.
vistos do alto preenchem galpões, pequenos cômodos. esquinas e feiras e frutas.

e de toda aquela gente, sabia ao certo quem entraria pela porta aquela noite. gente que desceu pela estação do trem no meio de uma concórdia cheia de gente. gente que de fora ouve que ali não é lugar pelo qual se ande. gente que rodeia a cidade em duas rodas, ocupa e se encanta. gente que se aquece no abraço e com a lua no alto.

ali na tela a história em sotaque carioca, de gente removida. décadas atrás. tão diferente da gente, mas tão perto dos recortes desumanos que as capitais do capital costuram.

foi um sábado de atravessar fronteiras.
foi desses dias em que me encharco de amor pela contradição pulsante de são-paulo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

malstigo

mal mastigo e sinto
ali, ainda sólido
o gosto falso
do tempero encaixotado
é tão de mentira,
é tão mercadoria
que nem nome próprio tem.
penso na marca
na marca, no resíduo perpétuo
dentro de mim.
o knorr no pastel de palmito
a fritura que agora marca a caneta que marca o papel.
é muito? é querer demais?
e o gosto é falso, de mentira
mas o sódio funciona.
seja nas gustativas,
seja nas narinas
fome, se almoço
mais de meio dia
mordidas
uma a uma
findo pastel
finda tortura.
voraz.
laranja espremida,
exibida, gourmet
um copo que vale
sacos cheios.
saco cheio tô
de tanto bucho vazio.
tanta comida envenenada
bicho morte.
apodrece(mos) no lixo.
mastigo.
veneno.
martírio.

domingo, 23 de novembro de 2014

uma bala.

de resto, fixava o olhar em qualquer ponto que fosse. não duraria mesmo. a questão era apenas conseguir se concentrar na própria solidão. estava nervosa e não conseguia abstrair a existência das pessoas, que abstraíam seu choro copioso, as lágrimas inundando o olhar. na estação anterior elas ainda se restringiam ao canto do olho. uma puxada de ar mais forte, um tufão inventado, já era o suficiente pra secar-se - quantareia. mas foi um atropelo de gente. ela só queria sair dali, mas todos aqueles rostos, mortos de cansaço, desfigurados pela fumaça, pela rotina, pela indiferença, todos aqueles olhos esbugalhados, todos aqueles gritos anunciando a entrada no front, corpos de guerra, todos aqueles vieram pra cima dela, que não se movia. era tudo vermelho. ela então batia, todas as sacolas, coisas e trecos eram armas e gritou também. e gritou alto. e gritou que-se-foda e berrava, tropeçava, xingava, batia, ofegante, assustada. do lado de fora, baldeação, anda, rápido, atropela, espera outra porta e chora. pior que chorar por não ser gente o suficiente pra si, era ver as gentes virando manada pra poder andar. viu um monte de monstro. sentiu por dentro como era virar um monstro e nada era mais assustador que de autorreconhecimento nenhum, migrar pra total repugnância do não-ser. chorava. muito. soluçava. abriu a porta entrou. chacoalhava e chorava. e sentia que seu choro preenchia cada vão do vagão e seu transbordar de humanidade era incômodo. olhares iam ao limite de serem percebidos, viravam. como lidar? se sentiu menos gente, de novo. e chorava mas já nem pensava. só no engasgo e na estação por correr, mais um ônibus pra perder, outro funcionário pra convencer, outra madrugada por danar. um homem então foi de tal forma interpelado por aquele choro que já não negava. desconcertado, era quase como se fosse necessário desculpar-se por tamanho desaforo: não se lida com gente assim, a essa hora, no metrô. "sorrir na sala e chorar no quarto", lembrava do conselho da professora. ele respirava fundo, fez algum tipo de oração e avançou: "sua mochila está aberta", enquanto apertava a sua mão e lhe entregava uma bala. e todo aquele importa-se arrancou-lhe ainda mais lágrimas. apertava a bala feito amuleto e saiu. com uma bala e um gole de esperança.
 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

o amor pegou pesado.

dessa vez o amor pegou pesado. na saída do metrô, o amor me olhou de esgueio e já não me mirava mais. vai. me levava pela mão pelo caminho de sempre, mas já não estava ali. o amor, que até anteontem, construía belos castelos nos ares, horizontes, londres, luccas, que tais, agora me contava sem dizer que ia embora. e é claro, que o amor negaria, pois ele estava ali. ainda perguntava sobre o dia, sobretudo, desejava bom dia, quando não repetia o mantra ali criado "tododia" - fosse em francês, italiano, na língua que fosse. o amor pegou pesado. manteve o corpo perto e me explicou, sem dizer uma palavra, como é que é o amor quando o amor vai embora. é que ele, parece que, me espiava de outras vidas. o amor me viu indo embora sem olhar pra trás. o amor me viu duvidando da vida, do rumo, da entrega. o amor resolveu se vingar. agora era a vez de me fazer sentir de volta. o amor estava ali, mas não estava mais. e nesse limbo insuportável, o amor me devolvia a mim. e isso, foi golpe baixo. o amor fez de um jeito que quem fez as malas fui eu. atravessei a cidade atordoada e fui me encontrar comigo, ali, esquecida no meio de um monte de tranqueira que outrora tinha sido eu. remendo de passado, vontade de futuro e uma sujeita sem coragem de ter desejo de enlaçar a própria mão. 'o amor é uma merda' - pensava algumas vezes ao dia. no primeiro dia doía pra caralho. no segundo, já conseguia respirar. no terceiro, ainda contava até dez antes de tentar acessar o amor. depois, já estava mais próxima dessa coisa que chamam eu. o amor pegou pesado. ele ainda me ronda e não dá respostas. o amor me devolve todo dia. com lâmina afiada de justiça, me realinha com passado, com passos dados, me dissolve qualquer futuro que não tenha chão calcado no agora. o amor me devolveu o presente. e eita presente pesado. o amor pegou pesado.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

o caderno

a primeira música que aprendi ao piano se chamava "Caderno", a primeira pecinha. Dava o sol com polegar, esticava pra pegar o charmoso mi-re#-mi-re#-mi- e com o dedo pequenino acertava o segundo Sol, mais alto. eu era criança. e a essa altura também já sabia cantar, mesmo trocando a letra - coisa que até hoje atrapalha e muito minha vida de 'cantora' - "Aquarela" - e confesso que achava gozado o autor se chamar Toquinho - pensava em toco de lápis, coisa pequena, menino. [mundo doido].
lembro da capa dos cadernos da primeira série. uma amiga da minha mãe arranjou de encapá-los com tecido xadrez, um branco e amarelo - viu? nem era rosa! <3 - com direito a bichinhos de papel de carta.
a caneta foi um tabu que durou até o ensino médio.colegial.científico,  - sejalá o nome certo disso na minha época. Sei é que nos primeiros anos do fundamental a gente não podia nem pensava em brisar nessa coisa de escrever à caneta na escola. - e justamente por isso ela era tão desejada.
caderno. linhas. papelaria.

no caminho de volta pra casa da vó na quinta-série tinha a, então, segunda (hoje, maior e primeira) melhor papelaria da cidade. minha mãe caiu na besteira de ter ficha lá, e eu realizava em doses homeopáticas meu sonho de menina de ter uma só pra mim. vez ou outra ia pra casa lápis novo, caneta, lápis de cor, adesivo, cola, papel colorido e haja!
sempre gostei de me perder numa papelaria e ficar olhando aquele tanto de coisa, possibilidades de criação, cores por todo lado. queria uma só pra mim.  - muito mais vontade que talento e disciplina.

e aí a gente cresce. fichário. caderno de 12 matérias. meiadúzia de canetas bic. especializa o talento. escolha um curso. vestibular. escrita científica, citação. word. teclas. digitar. imprimir, formatar. recortar e colar só com control Z.

aí você vira professora - a primeira coisa que faz é ir a uma papelaria e comprar pastas! <3 - e na sala de aula se depara com celulares que fotografam lousas e com a pergunta "vai usar caderno hoje, fessora?"[e se sente velha e nostálgica.]

hoje eu fui à papelaria de gente grande. é. marquês de itu, concorrente da casa do artista, são paulo, telas, tintas. poisé. ando andando com gente que, ao meu ver, não cresceu. é. não ficou chato. continuou rabiscando, pintando, recortando, juntando as coisas, fazendo forma, bricolando e haja matéria. descobri há pouco tempo na vida o caderno sem linha.
os rabiscos, que nunca abandonei, na capa, na borda das coisa, no canto, no meio, no risco, agora não ultrapassam limites. os criam.
essa gente que virou gente grande mas não parou de desenhar usa caneta. é umas canetas diferente.

papelaria de gente grande tem preço alto. é coisa chique. teve moça com laço e lapela, olhar meio baixo, voz meio pra dentro e patroa com cara feia. preço grande.
descobri hoje que aquarela pode custar 200 reais - e eu era tão feliz com aquelas bolinhas maisomenos na infância...

criança quando fica triste ganha presente. ganhei um e me dei outros hoje. choveu em são paulo. andei o centro de são paulo. tenho cadernos sem linhas que tentem ordenar. tenho canetas, faço traços em azul, rosa, cinza e preto.

hoje, justo hoje, que vi gente grande ficar triste da partida de um menino velho de 97 anos. hoje, justo hoje cinza. hoje, manoel pai das desimportâncias e da martha, mulé grande que rabisca com a liberdade de uma criança. hoje, justo hoje treze, dia de voltar pra casa com mala cheia. dia de se olhar no espelho, se defrontar com o rabo do escorpião zanzando nos céus. hoje, justo hoje que a lua ruge com juba de leão, eu durmo suja de tinta buscando ouvir os desejos da menina que nunca deixou de rabiscar.


Esse é Manoel chegando no Céu.
verdade.
senão, é só uma belezura da filha dele, martha barros.

sábado, 8 de novembro de 2014

after leaving alone for so many years

ainda tremendo, com lábios vermelhos, sentou-se do meu lado, e me contou:
"ontem o amor estava alterado. ontem o amor se encheu de álcool. o amor me agarrava com força. me chamava de sua. me chamava de absoluta. o amor se embrenhou nos meus cachos. rolou pelo asfalto. o amor me disse que eu não entendo. que eu não sei o que é amar. o amor listou meus tropeços sarcasticamente, como quem ama. despiu minhas memórias como uma linha de produção: um e outro passando. não, você não sabe o que é amar, me contou o amor. o amor me pariu. ergueu alto e firme seu falo e se debruçou.o amor me abraçava com força, apertava meu braço, meu ventre. o amor chutava o mundo e dizia que tudo aquilo era por mim. o amor me chamou de canto. se perdeu. me beijou a boca. silenciou o mundo. o amor me odiava por tudo aquilo que eu era. o amor me cristalizou numa cápsula, me enfiou lá dentro. o amor me bulinou. o amor não faz a menor ideia do que se passa na minha cabeça. mentira. o amor sabe do meu asco. da minha vontade de fugir. do meu ódio. o amor sabe que eu não sei disfarçar - que eu tento. o amor me prendia ali, entre as lentes, entre as grades. o amor era vermelho como sangue. o amor é um rock. o amor sorri como num pagode. o amor arrotou. vomitou. o amor morreu atropelado na contramão. o amor me deixou. o amor me armou e eu nunca mais voltei de lá."
fechou os olhos, abanou o rabo, e levou suas manchas pretas felpudas pralém de onde se vê.


 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

três vidas em três dias.

cruzava a rua. o vento contra o rosto. os olhos fechados. o salto, em aquarela. os prédios desavisados no meio do caminho. voávamos entre eles. você pintava de preto a pele dela. de dentro de uma oca surgiam as falas articuladas de quem fala com classe da falta de classe dos dois senhores ali, sentados, do outro lado do balcão.
cruzava o calçadão. as duas rodas da bicicleta. um par de coxas. decote. unhas mordidas em vemelho. sutiã não seguram os peitos - em vermelho - e girando, cigana, no meio da rotatória.
 - metá metá é bom pra meter.  (pensava num trocadilho infame, enquanto seu sexo rompia com as dimensões do tempo-espaço - que nada! o trânsito-contorna-a-nossa-cama é coisa clichê)
na sombra da parede madrugueira, os desenhos de sombras em pleno gozo. a porta entreaberta, a janela escancarada... era tara ou pura e simples liberdade?
- era a brisa. querendo passagem.
na curva do viaduto, garupa e um canto que ecoa entre os concretos "dormiiiiiirrrr no teu cooooolo é tornar a nascer."
me desenhava. rabiscou inteira e me reescreveu. ali, entre os passantes, na entrada do metrô. sol de domingo. chuva de consolação. justifiquei. "nunca acreditou em acasos", mas ainda briga com a intuição.
gozava com a intensidade de um novo nascer. e todaquela porra ali em volta era semente de vida. engolia.
quenada. vermelho o sangue. quente nas veias, nos olhos. e desde quando se ver no outro é se saber?
queria contar pro preto que agora sentia latejando a ciumeira. que se pintava. se importava. que não sabia, e daí? como confiar? - bem que disseram. e quando for a tua vez?
respira. acena. sorri. faz o mesmo. oscila. se desenha. se desdenha. adesiva.
era um buraco sem fim e sabia que era o desafio que sempre pedira.
dar de si - fora tão avisada...
não há ismo nenhum que valha o bom senso e a entrega. e não há vergonha que impeça de envergar a espinha. tá bom. ainda é difícil,
mas teve mato, teve papo, teve amigo. teve plano, teve suor, teve domingo. teve prosa, teve chuva, teve segunda. teve não, teve sim, teve carão. teve banho, teve bike, teve flerte, (não) teve seta, teve seda. teve pele, teve verdade, teve sentir.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

duas rodas para a liberdade.

"nos dias de hoje
o príncipe encantado
chega de bicicleta"


Ele ficou todo ofendido porque eu disse que parecia que tinha 15 ou 16 anos. O mocinho, quase meu vizinho, que veio trazer a pé, do outro lado da rua, o galão d'água estufou o peito e disse que tinha quase dezoito!!! Antes dessa prosa a gente conversou um cado, enquanto ele me ajudava com o galão imenso. E qual não foi o assunto que não a ciclovia nova aqui do bairro? Ele é entregador, uai. E anda de bicicleta o dia todo. Era segunda e ele tava me contando como passou o domingo agoniado porque "como lá fica fechado no domingo, eu não faço nada...". 
E mais uma vez, como a ciclovia adiantou o rolê: "já vi muito entregador ser atropelado".

Sim, pessoas. É isso. Os escritórios chiquetosos de Higienópolis, ou mesmo os cults e arrumadinhos de Santa Cecília, ou mesmo nóis simprão, que dependemos de meninos como esse, pra entrega "rápida e ágil" daquilo que não podemos fazer porque o nosso tecido de vida está cada vez mais escasso... pois é! Essa demanda vem de Bike, meus caros.

Para quem até agora só viu o rolê da ciclovia como mais uma molecagem do Haddad ou coisa de classe média cult-eco-chata pare pra pensar nas pessoas que TRABALHAM de bicicleta. 

E aí me vem à mente imediatamente a cena que vejo cotidianamente do alto da janela do Brás: trabalhadores bolivianos e todas as etnias que a gente finge que não vê, que não sabe que existe, mas veste o que eles, praticamente feito escravos, produzem... esses mesmo! andando de bicicleta aos montes. Os trabalhadores do Brás. Ou, pra ser internacionalista, rs, lembro das imagens do clipe de Us and Them, nós e eles. Gente que zanza de um lado pro outro, em bando, atomizados em multidão. Seja passos, seja as rodas da bicicletas.



Ontem ia ter uma manifestação com uma monte de bicicleta solta por aí. Aliás, Minhocão, esse monstro bonito que a gente teve que aprender a amar, em domingos de sol com gente andando e invadindo a cidade noutro ritmo que não o dos motores... uma pena que as pessoas o queiram abaixo pra ver se quando você cair, você não cai em cima da gente que dorme debaixo de você e já leva isso tudo embora...

devaneios a parte, fico aqui com a lembrança gostosa do menino, de camiseta amarela, pequeno pequeno, se divertindo de Skate na ciclovia aqui do ladim de casa, bem na hora do rush, com aquele mundaréu de gente sozinha enfileirada dentro de carros.

Pra rua, molecada!



"Criança na ciclovia, indo para a/vindo da escola sozinha em pleno Viaduto do Chá. 
Não, vc não está delirando... "
Retirada foto e legenda da página do Facebook 
Movimento Ciclofaixa na Santa Cecília
Foto de ALINE OS


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Passo Torto vai à escola.

"Gostei da música, mas aquela letra é do inferno.
É que eles só cantam São Paulo
e São Paulo é o inferno."

Eu faltei quarta passada. É. Eu me mudei na segunda, cheguei de viagem domingo, brotou uma gig na terça, sem repertório e arranjei dessas febres no corpo que deixam a gente de cama. E eu dou várias aulas na quarta. Quarta [e sexta] é dia de ir pra ETEC e vejo por exemplo os 3 primeiros anos. Mas sou professora em tempos de Facebook e matutando sobre que fazer pra compensar a ausência, numa instituição escolar que não tem estrutura de professor substituto, eu acabei tendo a incrível ideia de passar uma atividade pra aula seguinte, pra não se desconectarem tanto da gente e ouvir um som. É. A ideia era ouvir SAMUEL, do Passo Torto e brisar. Escrever algumas linhas, com começo meio e fim, sobre o que entendeu da Canção, sensações, impressões, opiniões e relacionar - na medida do possível e da lembrança, com os assuntos da aula passada, quais sejam: estratificação, desigualdade e mobilidade social. 

depois de aulas bem densas com segundos e terceiros - e o "pior" ainda estava por vir - entrei no Primeiro Ano A e eles cantavam quase em coro "Diiiiiiz Samuel?"

Fiquei feliz. Dei o corre de buscar o amplicador e eles se assustaram de me ver entrando com aquela coisa enorme dentro da sala de aula: "Já que é pra ouvir música vamo ouvir direito!" - porque as caixinhas de abelha do computador, ninguém aguenta.

Botei o play em Samuel enquanto recolhia os trabalhos. "Professora... eles são amadores?" "Nãa..." " Quer dizer, eles não são muito famosos...?"




Dificilmente eles vão aparecer no Faustão ou a música deles vá tocar na próxima novela das 9, mas eles são uma referência importante pra música que é feita aqui em São Paulo hoje e tem uma certa visibilidade num circuito que frequentam. - eu disse.

E apresentei didaticamente: na lousa: e dizendo: Passo Torto é: Kiko Dinucci - setinha Metá Metá - setinha Juçara Marçal e Thiago França (inclusive tem uma versão de Samuel deles).
Rodrigo Campos (São Mateus e Bahia), Romulo Fróes (que tá lançando disco novo esse mês. é? esse mês. ontem saiu a primeira canção <3) "Nossa, professora, você conhece eles?" [sim, a professora boba sorria.]
Marcelo Cabral - que dentre outros muitos trabalhos é produtor do disco do Criolo, aquele último, foda e desse disco que ele tá fazendo agora - ele era do Skate, gatinho - olhos se arregalam! Criolo. Essa gente, parte dela, cresceu pertinho do Kléber: dou aula na zona Sul, fiii.
e eles ganharam duas vezes o prêmio TIM de música brasileira... (porque argumento de autoridade em alguma medida, sempre, ou não, funciona)

Tem poucas críticas sobre eles...: "é claro. fiz de propósito, que se não vocês iam copiar". Eles ouviram. Passo Torto. e foi uma experiência incrível ver aquela molecada de 14, 15 anos me contando como foi aquela sensação de fruição estética inédita:
o violão!  - como o violão chama atenção. os arranjos. "um jogo dos instrumentos" a tentativa de encaixar em algum gênero conhecido que explique, o que era "aquele samba.... mas uma MPB"... "dá mais destaque pra letra", salientava outro. 
a cozinha fez falta pro outro primeiro ano. 

E aí passamos pros depoimentos deles sobre a sensação de pensar e escrever sobre aquela letra. Conheci vários Samuéis: o menino rico deslocado, vários meninos da Fundação Casa, meninos da Zona Leste, Migrantes nordestinos, adultos, crianças, jovens de aventura pelo Centro. 

E eles? quantas vezes o muro não foram eles mesmo que sentiram?

"Sabe o que é, terceiro ano, eu estou com - desculpem a expressão - tesão por São Paulo" 
Poder conversar com esses meninos sobre essa cidade, sobre toda a imensidão que ela é, depois de estar aqui e vivê-la, fazer isso através da canção do Passo Torto, foi qualquer coisa. 

"ó, e eles estão pertinho de vocês. Estão fazendo essa semana e na outra uma vivência no Sesc Santo Amaro com a Ná Ozzetti. tá lindo. queria eu ir..." - pertinho? é. considerando que eu estou em Santa Cecília, pra vocês é pertinho. 

E, que ironia do destino, não é que hoje eu fui buscar minha máquina fotográfica na Vila Guilherme? E vê bem se eu não andei da Luz até lá, lendo os meus meninos brisarem no Passo Torto, no "Vila-Sabrina-onze-cinco-seis"?

Mas foi sentada na Vila dos Ingleses, já com a máquina resgatada, à espera de um sorriso largo que me saísse pela porta, que eu li essa análise que reproduzo aqui procês, meninos que estão fazendo lição de casa em público e hoje, foram comigo pra escola:

"PASSO TORTO - SAMUEL
Impressões

Antes de começar a contar minhas impressões sobra a música "Samuel" já vou avisar que estou fazendo isso às 19horas e meio que eu acordei com o pé esquerdo e parece que o dia meio que tirou pra me sacanear, então minhas impressões podem ser meio distorcidas, errôneas e depressivas. Vamos começar.
A canção Samuel feita pelo grupo Passo Torto, (que na qual eu não conhecia, obrigado Isabela, agora conheço uma outra banda com um som legal) tem um ritmo meio samba com MPB, algo que eu acho fantástico e de ótimo bom gosto.
Quando a música começou eu tava de cara fechada e quando começou o violão eu arregalei os olhos e pensei: "cara, que daora" e quando o vocalista começou a cantar eu achei interessante. Vou explicar o porquê.
A letra é simples, quando a música termina você consegue entender seu propósito. Ela fala de um cara chamado Samuel que nunca tinha ido a um lugar, talvez o centro, se bem que ele cita a Augusta e a única que eu conheço é uma rua com uns bares e clubes, então eles foram à um clube! Certo? Por enquanto fica assim. Provavelmente, eles nunca foram lá, pois são pobres e a música dá a entender isso, ou eles são uns playboys, mas acho pouco provável. 

A música cita alguns amigos do cantor como o Deto, que é um cara doido pra... que pelo visto gosta de zoar e causar, tipo tirar sarro dos guardinhas e roubar coxinhas, pera, esse é o Nikimba.
Até aí, Samuel ainda não deu sua opinião sobre o local, e nem se quer vai dar. Nesse ponto eu já tava curtindo muito a música e somos apresentados ao Nikimba, o cara do apartamento 23, que é cabuloso que monta atrás de busões e ele sim rouba coxinhas, o Deto rouba moedas de homens de lata.
Depois disso a música fala "Por que cê nunca veio aqui/Quem te prendeu, quem te impediu/ qual foi o muro que subiu/ Por que não atravessou [...]" Nessa parte dá a entender que Samuel nunca tinha ido ao local não porque ele não quis, e sim porquê ele não podia, talvez por ser pobre.
Nessa a música acaba e eu fiquei surpreso, pensei que eu ia ouvir, fazer esse trabalho e esquecê-la, mas não, eu gostei muito. Agora se esse meu texto ficou bom ou não, eu ainda não sei, provavelmente eu não entendi o que a música queria passar, mas  beleza, a música é boa e agora eu acabei de ouvi-la pela 5ªvez seguida, sério, tava ouvindo agora.

Ps.: De qualquer forma, perdoe minha linguagem informal, eu só consigo fazer textos não tão ruins assim."


***

AH! Em tempo, Rodrigo, Kiko, Cabral e Romulinho: a Katarina (ou foi a Duda?) veio toda convicta dizer que ia tentar ir vê-los no Sesc Santo Amaro. Eu postei no nosso grupo no face... Se por acaso, aparecer uns pedacinhos de luz, que me fazem ter vontade de viver ainda mais, por lá, sorriam pra eles.


Um beijo grande, 

Isabela.

Ah! a epígrafe é de uma aluna, pra cuja sala não consegui dar aula hoje. Ela disse aquilo ali, na lata, na rua. no acerto de um passo torto. 

"Hj ganhei de presente uma letra genial do Rodrigo Campos para uma música nova minha, ja pré levantada em nossa Residência Passo Torto Sesc Sto.Amaro !!" postou hoje Marcelo Cabral feliz da vida. 




terça-feira, 5 de agosto de 2014

Imagens de Palmares (ou a necessária ambivalência).


[esse artigo foi escrito em 2010, durante a graduação em Ciências Sociais, como trabalho de conclusão de disciplina do prof. Dr. Dagoberto José Fonseca.]

Eis-me agora em Olinda, remoinhos. Sei que haver além, naquelas serras, uma Terra da Promissão para os pretos, é o alvoroço permanente dos cativos em Pernambuco, tão perto fica a liberdade... "Há que arrasar Palmares, há que recuperar, vender ou matar os pretos fujões!" - ouço que dizem os senhores de engenho, diz também a tropa portuguesa. E tentam, vejo que tentam, muitas e muitas vezes tentam destruir o quilombo, mas repelidos acabam sempre. Só a Cerca do Macaco é defendida por uma tríplice paliçada, cada qual sob a guarda aturada de 200 homens. A defesa da liberdade é, sem dúvida, a grande organizadora do povo de Palmares.

Fernando Correia da Silva.

            Até meados dos anos 70, o dia da consciência da luta histórica dos negros era comemorado no dia 13 de maio, referente ao dia da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, em 1888, que finalmente estabelecia o fim do regime escravocrata. Depois dos anos 70, começou-se a discutir a questão do fim do regime escravo no Brasil, distanciado da ideia de real liberdade do Negro a que se pretendia tal abolição; visto que os negros logo foram incluídos numa dinâmica de marginalização de sua população, pela falta de possibilidade de prover seus meios de vida.
            Dentro desse novo movimento social que surgia e se fortalecia, o pensamento artístico e intelectual teve um avanço fundamental no que dizia respeito à História imbuída de suas opressões; o desenvolvimento civilizatório com base em atrocidades de todas as naturezas. Com isso, nasce também o modo de pensar a questão do Negro dentro desta história e civilização no Brasil, e vê-se tal população está imersa em uma complexa rede de contradições seculares.
            A começar com a atenção voltada para o fato de que quando se instaurou o liberalismo no Brasil, o regime escravocrata permaneceu, e a vitória dos negros sofreu e sofre milhares de empecilhos para se triunfar no tecer histórico de cada dia, e foi cedida muito tempo depois do dia 13 de maio; decidiu-se transferir a data que remete à luta do Negro contra as contradições em que foi inserido para o dia 20 de Novembro. Data da morte de Zumbi de Palmares, que foi um exemplo de resistência contra esse processo de exclusão a que foram submetidos os escravos.
            A proposta deste artigo, num primeiro momento, é analisar a historia do quilombo de Palmares, situada em Alagoas, destacando, principalmente, elementos do contexto do século XVII que passam por essa luta da população alagoana quilombola contra os holandeses, em contra o governo de Pernambuco.
            Quando em 1600, Pernambuco foi invadida pelos holandeses, houve considerável abandono de terras pelos senhores de açúcar, que recuaram diante da invasão; isto beneficiou a fuga de muitos escravos que buscaram terra e abrigo no quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga em
Alagoas.
            Com essa e outras possibilidade de fuga, o quilombo tornou-se uma comunidade (em 1670 eles já eram 30 mil). Verdadeira república dos negros, a região de Palmares cumpria com essas exigências de produção e convívio para alimentar essa população, organizada enquanto sociedade quilombola, funcionava tal qual um pequeno Estado em que se deveria o cumprimento de leis públicas severas, como a punição de morte para homicídio e deserção, bem como as decisões públicas essenciais eram tomadas através de assembleias em que participavam todos os adultos da comunidade.
            Acomodados em choupanas, elaboradas por fibras, que também compunha matéria-prima essencial para a confecção de outros artigos essenciais como vassouras e tapetes; a população cultivava milho, mandioca, legumes, feijão e cana. E até compunham suas próprias vestimentas através das cascas de algumas árvores.
            Nascia daí, uma cultura quilombola embebida dos modos culturais africanos dos antecedentes daqueles que compunham a região. E toda essa tradição criada e reproduzida na região dos quilombos de Palmares, fez com que aumentasse a preocupação de forças dominantes, como os holandeses invasores em busca dos interesses açucareiros e o governo pernambucano que pretendia dizimar a população de Palmares.
            Segundo Décio Freitas, o chamado Estado palmarino surge de suas necessidades básicas: “acomodar e agregar grupos étnica e culturalmente heterogêneos, e aglutinar forças para a luta contra o inimigo externo” (FREITAS, 1978, p. 104). Cada mocambo tinha sua liderança ou “chefe comunitário”. Eles se reuniam em assembleia para a eleição de uma liderança central, denominado “Grande Senhor” ou “Grande Chefe”. O primeiro que se tem notícia chamava-se Ganga-Zumba. Décio Freitas afirma que Ganga-Zumba nasceu em Palmares e era descendente da nação Arda.
            Os ataques a Palmares tornavam-se cada vez mais frequentes e intensivos. Por volta dos anos de 1670 os ataques comandados por Carrilho levavam gradativamente Palmares a exaustão, mas os quilombolas resistiam bravamente. As notícias que se espalhavam entre os portugueses de que Palmares havia caído não iludiam mais os líderes. O governador de Pernambucano propõe então um tratado de paz, garantindo liberdade terra e direitos a quem se rendesse. Em junho de 1678 uma comitiva palmarina vai a Recife selar o tratado. Cinco meses depois o próprio Ganga-Zumba vai ao encontro do governador honrar o trato. Não se sabe quando exatamente Ganga-Zumba deixou Palmares rumo ao vale do Cucaú.
            Mas Palmares resistiria. Nascido livre em Palmares no ano de 1655 e raptado aos cinco anos, um menino negro cresceu sob a tutela de Padre Antônio de Melo que o batizara de Francisco. Aos quinze anos, o garoto resolve fugir para Palmares, regressar a terra onde nascera. Daí então passa a ser conhecido como Zumbi, nome que marcará a história do quilombo.
            Zumbi é uma importante liderança militar e seu papel torna-se demasiado importante quando do tratado de paz que o já velho Ganga-Zumba travara com os “brancos”. Zumbi não aceita o tratado. Ganga-Zumba é acusado de traição e envenenado a mando de Zumbi, que assume a liderança do quilombo, cuja resistência obstinada era a principal característica.
            Definitivamente, depois de 5 anos de luta intensa dos negros de Palmares chefiados por Zumbi, em 1687, a classe dominante colonial contratou o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho para atacar Palmares, escolhido por sua fama de matador de índios e capturador de escravos fugitivos; houve o segundo ataque, e os quilombos, sem munição, lutaram contra seis mil soldados por durante um mês. E ao final de longo combate, o quilombo foi destruído e sua população massacrada. Zumbi, apesar de conseguir fugir, logo após a destruição da Sede dos quilombos, Macaco; foi capturado pelas tropas dos bandeirantes, sendo degolado aos 40 anos no dia 20 de Novembro de 1695.
            As primeiras referências políticas a Palmares surgem no Brasil já nas primeiras décadas do século XX. Astrogildo Pereira, fundador do Partido Comunista do Brasil, teria sido o primeiro a propor uma interpretação classista da luta do Quilombo de Palmares, em 1929. A primeira obra historiográfica de grande importância sobre Palmares também está vinculada ao PC O Quilombo de Palmares – 1630-1695, escrita por Edison Carneiro e publicada pela Editora Brasiliense em 1947.
            Petrônio Domingues faz uma análise sobre o movimento negro brasileiro durante a república e o divide em três fases esquemáticas: a primeira entre os anos de 1889-1937 (ano em que o Estado Novo dissolve as associações); a segunda de 1945-1964 (da redemocratização ao golpe Militar) e a terceira fase de 1978-2000 (da criação do Movimento Negro Unificado até o fim do século XX). As duas primeiras fases carregam diferenças entre si, mas ambas basicamente mantem um discurso moderado quanto à questão racial, forjando uma postura ou assimilacionista ou integracionista. Tais fases não chegam a fazer uma denúncia sistemática ao mito da democracia racial e têm como dia de reflexão e protesto 13 de maio, dia da assinatura da Lei Áurea.
            Adotando um discurso racial mais contundente, cuja estratégia cultural de “inclusão” parte da igualdade na diferença, valorizando uma identidade negra, que vê a mestiçagem de forma negativa, denunciando o mito da democracia racial de forma incisiva, o movimento negro que floresce na década de 1970 preza por uma revisão da historiografia oficial. Em 1971, surge em Porto Alegre o Grupo Palmares, cuja atuação foi fundamental para a própria criação do Movimento Negro Unificado em 1978. Dentre outras demandas, o grupo foi o primeiro a propor o dia 20 de novembro como alternativa às comemorações do 13 de maio. Para o grupo, a Lei Áurea assinada no dia 13 de maio foi apenas uma liberdade concedida que não alterara efetivamente a vida dos negros; ao passo que relembrar a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695, é de fato voltar-se para um momento de luta e resistência da própria população negra. A proposta do grupo gaúcho ecoou ao ponto de termos o feriado nacional, ainda que facultativo, no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
            Segundo Deivison Moacir Cezar de Campos em sua dissertação sobre o Grupo Palmares, “a instituição do 20 de Novembro, como Dia do Negro, em oposição ao 13 de maio, sintetiza essa passagem de uma tradição oficial para uma tradição negra” além da “afirmação de novos referenciais identitários para o negro” (CAMPOS, 2006, p. 134-135). Revisitar Palmares é antes de tudo uma estratégia política, em que a análise do passado parte de um ponto muito específico do presente.
            Pretende-se refletir aqui como as imagens da história do quilombo de Palmares e seus personagens foram constituídas em algumas manifestações artísticas e de que maneira isso reflete o caráter mitológico de tradição inventada que esse evento vem tomando. As obras aqui apresentadas com certeza não são as únicas sobre o tema e as análises serão apenas pontuais, não atingindo talvez a complexidade que lhes caiba, devido a limitação deste artigo.
            Domício Proença Filho propõe em artigo analisar a trajetória do negro na literatura brasileira, primeiro enquanto objeto, numa visão distanciada e depois como sujeito, já numa atitude compromissada. O professor emérito e titular da Universidade Federal Fluminense reserva um lugar de destaque para o livro de João Felício dos Santos, Ganga-Zumba, lançado em 1962 por “um romancista que tem obsessão pela liberdade” (FILHO, 2004). Filho afirma que o romance é altamente representativo em termos de elementos valorizadores da contribuição do negro à cultura brasileira. Na obra, um narrador onisciente alterna relatos com comentários explicitadores, mas, a cada momento, cede a voz às personagens nascidas a partir de uma realidade diluída ou ignorada pela história oficial.
São personagens da época, com fala típica de negros, carregada de africanismos, de ritmos, com sentimentos e problemática peculiares, marcadas pelo sofrimento, mas dimensionadas sobretudo à luz da altivez de um grupo étnico que se assume, em torno do seu Ganga, na luta por sua afirmação, no percurso de Palmares. (idem)

            Além de estudioso das artes literárias, Domício Proença Filho também é autor. O livro Dionísio Esfacelado (Quilombo dos Palmares), lançado em 1984, é um compêndio de poesias que narram a trajetória de Palmares, passando por seus personagens como Ganga-Zumba e Zumbi, além da menção a diversas divindades. O livro também traz os discursos de diferentes perspectivas da sociedade referente à questão negra e sua memória. Instigante e provocador até a última estrofe, o livro é uma das maiores obras literárias de memória da cultura afro-brasileira e conta, ainda, com um Glossário Opcional, baseado em importantes obras sobre a cultura negra e afro-descendente.
            O início da década de 1960 é marcado pela chamada cultura engajada. Diversos intelectuais e artistas, seja no teatro, na música ou no cinema, estão preocupados em fazer uma arte conscientizadora e nacional, que retrate a vida dos brasileiros e suas demandas. Após o golpe militar essa atitude ganha força e mais um ideal de luta pela liberdade. Para o bem e para o mal, floresceram obras de artes compromissadas com os dilemas do seu tempo. É o caso, por exemplo, do movimento Cinema Novo, do qual faz parte o então jovem Carlos Diegues.
            O primeiro longa-metragem do diretor alagoando, radicado no Rio de Janeiro, é justamente uma releitura da obra de João Felício dos Santos, o filme lançado em 1964 Ganga-Zumba. A história retratada pelo diretor tem a centralidade na figura de Ganga-Zumba, filho de rei trazido para o açoite no Brasil em cujas esperanças dos amigos se concentram, na certeza de que ele será rei de Palmares. O filme retrata as estratégias de fuga dos escravos e o árduo caminho até o quilombo e termina com a chegada e coroação de Ganga-Zumba como líder de Palmares, como se ele realmente estivesse predestinado à liderança, só precisasse chegar até a Serra da Barriga.
            Vinte anos mais tarde Cacá Diegues produz o filme Quilombo, que pode ser considerado uma continuação de Ganga-Zumba. O filme se pretende mais histórico, fazendo referências contextuais ao longo do filme, que começa no contexto da invasão holandesa e a fuga de Ganga-Zumba para Palmares. Entretanto o trajeto a Palmares, justamente por não ser o foco do filme, não é tão realista quanto o do filme de 1964. Ganga-Zumba é retratado como líder pacificador e congregador. O quilombo é visto como um paraíso na terra, onde índios e brancos vivem harmoniosamente com a massa de escravos fugidos. O filme conta a história de Zumbi: seu rapto na infância, sua vida ao lado do Padre Antônio Melo, por quem foi batizado com o nome de Francisco. Rael Lopes Alves (2009) destaca a cena em que Francisco recebe o nome Zumbi. É uma espécie de batismo, um ritual de iniciação em que o personagem recebe um objeto mágico, sua lança em chamas e a proteção dos guerreiros mortos, dando uma dimensão fantástica para a figura de Zumbi. Na conclusão de seu trabalho Rael defende que a narrativa do filme é ambígua, já que se pretende histórica, mas apresenta momentos fundamentais da história de maneira fantástica, folclorizando a cultura negra. Além do mais o filme ameniza o conflito entre negros e brancos. O filme também não é fiel à história no que tange à ruptura da relação entre Ganga-Zumba e Zumbi. No filme de Cacá Diegues é Ganga-Zumba que se arrepende do tratado de paz e forja sua própria morte, com intuito de motivar a volta dos quilombolas que o acompanharam para Palmares.
            Esta confusão entre as personagens é característica de outra obra, não do cinema, mas do teatro: Arena conta Zumbi, musical em dois atos de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Edu Lobo. Feita durante os primeiros anos da Ditadura Militar, o discurso da peça deixa bastante clara a intenção de ler Palmares a partir do presente, ou seja, como a luta pela liberdade dos negros de Palmares era a mesma luta pela liberdade daqueles que são contra o regime instaurado em 1964; que a repressão do Golpe é de alguma forma a mesma repressão a que os negros estavam submetidos. A peça falava de Palmares na realidade para “falar do que não se podia falar”. O leitor atento conseguirá enxergar nos discursos da peça uma contemporaneidade com as críticas à politica dos militares; a dependência da colônia em relação à metrópole como uma alegoria da dependência brasileira em relação ao capital estrangeiro, sobretudo norte-americano.
            Na peça a primeira liderança importante do quilombo é Zambi, papel que na verdade é de Ganga-Zumba, segundo a história. E Ganga-Zumba se transforma em Zumbi. Ou seja, Zambi, que significa “deus” em Bantu, virou um personagem e Zumbi, que é um nome próprio, transforma-se em um título.
            A peça traz também a conhecida frase de Padre Antônio Vieira: “Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e a paixão de Cristo do que o vosso”. Durante várias passagens é evidenciado o papel de cúmplice do regime escravista que a Igreja Católica teve, legitimando que o negro conquistaria os céus com o sofrimento da carne.
            Entretanto, em 1981 a Igreja Católica brasileira resolve se redimir perante a população negra. Idealizada por Dom Helder Câmara, escrita e produzida por Dom Pedro Casaldáliga e pelo poeta Pedro Tierra, musicada por Milton Nascimento, produzida por Frei Paulo César Bottas, a Missa dos Quilombos foi celebrada pela primeira vez para um público de sete mil pessoas em 22 de novembro de 1981, na praça em frente à Igreja do Carmo, em Recife, local onde a cabeça do líder quilombola Zumbi dos Palmares foi exposta no alto de uma estaca. O texto é fruto de dois anos de pesquisa sobre a escravidão negra e o silêncio teológico da igreja católica a respeito do tema, foi pensada como uma continuidade da Missa da Terra Sem Males. O objetivo da Missa é o de se retratar aos povos negros, herdeiros dos negros escravos da época do império, e se desculpar pelos equívocos da escravidão. Entretanto esta retratação não representa a atitude oficial da Igreja Católica, uma vez que a missa foi vetada pelo Vaticano.
            O quilombo é representado como a terra prometida, lugar onde outrora a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram e que há de ser novamente construído. Zumbi é o Moisés Negro do Sinai Palmares, é o patriarca “mártir de todos os Quilombos de ontem, de hoje e de amanhã”. Ganga-Zumba não é mencionado em nenhum momento – algo que reflete o que comumente ocorre, alijando o seu papel de grande líder e unificador dos mocambos, já que Zumbi assume a liderança já nas duas últimas décadas do quilombo.
            Vale destacar como a Igreja tem dimensão do seu papel histórico quando na sua homilia Dom Helder Câmara chega a dizer:
“Houvesse a Igreja da época marcado presença mais na Senzala do que na Casa Grande, mais no quilombo do que nas Cortes, outros teriam sido os rumos da história do Brasil desde o seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento”.

            A missa tem grande valor simbólico, uma vez que mesmo que não tenha servido à causa do negro nos tempos coloniais, muitos negros se converteram ao catolicismo e o praticam ainda hoje. Desta forma o caráter político da missa se coloca diante dos seus fiéis, relembrando a história, assumindo sua culpa e se colocando a favor da demanda dos negros perante a sociedade brasileira em um momento de forte comoção social, tanto pela recente criação do Movimento Negro Unificado quanto pelos movimentos em prol da redemocratização do país.
Aos treze de maio de mil-oitocentos-e-oitenta-e-oito,
nos deram apenas decreto em palavras.
Mas a Liberdade vamos conquista-la!
(trecho da Missa dos Quilombos)
            Foi através desse espírito explícito até mesmo na Missa dos Quilombos que o movimento negro deixou de lado as comemorações em treze de maio, alegando com a Princesa Isabel apenas cumpriu uma formalidade, deixando os negros à sua própria sorte. A História, porém, guarda grandes surpresas. Em 2006 foi divulgada na impressa a carta redigida pela Princesa Isabel em 11 de agosto de 1889 ao Visconde de Santa Vitória, na qual a Princesa fala sobre a possível compra de terras para a indenização para os ex-escravos. Desta forma, fica evidente que era sim intenção da Princesa Isabel tomar providências efetivas para os ex-escravos. Além do mais, princesa esteve vinculada aos chamados “quilombos abolicionistas” e protegeu escravos fugidos de maneira ativa. Entretanto, o poder monárquico estava com seus dias contatos e o golpe da República impediu que se mexesse nas terras brasileiras – tesouro precioso desde os tempos das sesmarias e que ainda hoje continua nas mãos de poucos.
            É fato que a mudança do “treze” para o “vinte” foi fundamental para o movimento negro moderno e sua articulação em torno de suas demandas e legitimação de sua cultura. O resultado é evidente nas políticas públicas brasileiras, ainda que suscitem críticas por aqueles que alegam que não existe preconceito no Brasil, que “estão tentando dividir o país duas cores”. Resta saber se após esta revelação sobre a Princesa Isabel sua imagem será novamente benquista pelo movimento negro, ou se persistirá em criar maniqueísmos, onde alguns são grandes heróis excepcionais, outros são grandes traidores, grandes vilões.
            Uma grande conquista veio na Constituição de 1988 e foi reafirmada no recente Estatuto da Igualdade Racial que é o direito da posse da terra das comunidades remanescentes de quilombo. A luta é bastante árdua, uma vez que, como já citamos aqui, o problema da terra no Brasil é antigo e seus donatários são nada flexíveis quando se trata de ceder um pouco do seu quinhão a uma causa social ainda que demasiado justa. As comunidades precisam legitimar sua estadia nas terras historicamente através de um relatório técnico assinado por antropólogo. No entanto, a imagem que a sociedade e o senso comum fazem de quilombo e suas “reminiscências” são de negros atrelados necessariamente a atividades culturais negras tradicionais tais como a prática do candomblé, capoeira, jongo, etc. Mas nem todas as comunidades são assim e nem tem que ser. O processo social vivo em que as relações se dão nos meandros de jogos de poder assinalam comunidades diversas em que a assimilação cultural é parte do processo. Estar integrado à sociedade circundante e/ou exercer atividades fora do âmbito das atividades “tradicionais” legitimadas não tira o direito dessas comunidades de se estabelecerem nessas terras. Se não pensarmos assim corremos o risco de folclorizar tais comunidades. Risco esse que se apoia inclusive na própria conduta radical do Movimento Negro Unificado, muito importante estrategicamente, mas que precisa ser repensada uma vez que muitas de suas demandas começam a ser atendidas, ao menos na teoria. Forjar uma identidade foi fundamental para a luta, mas pode acabar aprisionando os que estão fora desses costumes a uma necessidade de folclorização.
            Devemos ter em mente quando pensamos em quilombo não apenas Palmares, que foi sem dúvida um dos casos mais marcantes da história brasileira. Pesquisas recentes falam sobre quilombos espalhados por todas as regiões brasileiras com estratégias distintas. Além do mais temos o caso dos “quilombos abolicionistas”, que tangenciam os centros urbanos, quando não estão dentro deles, como é o caso do famoso Quilombo do Leblon, onde fica a atual zona sul carioca. Tais quilombos, diferentemente do modelo tradicional de resistência à escravidão, tem suas lideranças muito bem conhecidas, como afirma Eduardo Silva (1998), tem “cidadãos prestantes, com documentação civil em dia e, principalmente, muito bem articulados politicamente.” E continua:
Não mais os poderosos guerreiros do modelo anterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de instância de intermediação entre a comunidade de fugitivos e a sociedade envolvente. Sabemos hoje que a existência de um quilombo inteiramente isolado foi coisa rara. Mas, no caso dos quilombos abolicionistas, os contatos com a sociedade são tantos e tão essenciais, parte do jogo político da sociedade envolvente.

            É preciso recuperar a memória desses quilombos também, até mesmo para forjar uma identidade política em que mais do que destacar as diferenças, sejam pensadas as possibilidades de ação política junto à sociedade e ao Estado. A comunidade negra tem diante de si um grande desafio que é fazer o Estatuto da Igualdade Racial ser conhecido pela sociedade, discutido e, acima de tudo, respeitado. Isso quem fará são homens reais, e não idealizados.
            Na introdução do livro Liberdade por um fio – História dos Quilombos no Brasil João José Reis e Flávio dos Santos Gomes advertem que dizer que os quilombolas foram heróis diminui a riqueza de sua experiência e que o referido livro celebra a “luta de homens e mulheres que para viverem a liberdade nem sempre puderam se comportar com as certezas e a coerência normalmente
atribuídas aos heróis” (REIS e GOMES, 1998, p. 23). A história cotidiana dos homens é marcada pelas decisões, estratégias de sobrevivência e luta por seus ideais que precisam ser entendidas e interpretadas com a necessária ambivalência, que consegue enxergar as potencialidades positivas e negativas que todo evento carrega em si. Somente assim é possível construir uma história que valorize homens e não mitos.

Bibliografia
ALVES, Rael Lopes. Os Arquétipos dos Mitos Históricos Negros no Cinema Nacional: uma análise na filmografia de Cacá Diegues. Trabalho de Conclusão de Curso para a aquisição do título de Bacharel em Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2009. Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/22767/000740577.pdf?sequence=1

BOAL, Augusto e GUARNIERI, Gianfrancesco. Arena conta Zumbi. Disponível em http://pyndorama.com/wp-content/uploads/2009/01/arena-conta-zumbi.pdf

CAMPOS, Deivison Moacir Cezar de. O Grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. Porto Alegre, agosto de 2006.   Disponível em http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=319

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares – 1630 – 1695 São Paulo: Editora Brasiliense LTDA, 1947.

CASALDÁLIGA, Pedro. e TIERRA, Pedro. Missa dos Quilombos. Disponível em http://www.servicioskoinonia.org/Casaldaliga/poesia/quilombos.htm

DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos  in Tempo vol.12 nº.23 Niterói: 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-77042007000200007&script=sci_arttext&tlng=pt Acesso em 22/11/10

FILHO, Domício Proença. A trajetória do negro na literatura brasileira in Estudos Avançados vol.18 nº50. São Paulo: Jan/Abr 2004. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000100017&script=sci_arttext&tlng=en
_______.Dionísio Esfacelado (Quilombo dos Palmares). Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

FREITAS, Décio. Palmares- A Guerra dos Escravos. Rio de Janeiro: Graal, 1981. 3ª edição revista e ampliada.

NASCIMENTO, Milton. Missa dos Quilombos. Disco longplay: Philips Cassete: Ariola, São Paulo 1982. Compact Disc Digital Audio: PolyGram do Brasil Ltda.

REDE GLOBO DE TELEVISÃO Segredos guardados da Princesa Isabel Disponível em: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL695620-15605,00.html 30/04/2006

REIS, João José GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um fio – História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 1ª Reimpressão 1998.

SANTOS, João Felício dos.  Ganga-Zumba Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1962.

SENRA, Rafael. A Missa dos Quilombos: Produto Político, Religioso e Cultural. Disponível http://www.ufjf.br/darandina/files/2010/01/Rafael-Senra-.pdf

SILVA, Eduardo -As camélias do leblon e a Abolição da Escravatura. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_EduardoSilva_Camelias_Leblon_abolicao_escravatura.pdf


SILVEIRA, Oliveira. Origens do Vinte de Novembro Disponível em http://www.fasubra.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=237:20-de-novembro-dia-nacional-da-consciencia-negra-&catid=5:plenaria&Itemid=19 

sábado, 2 de agosto de 2014

Apontamentos sobre o Corpo e a Sexualidade no Mundo Burguês: entre Foucault e Bakhtin

(este texto foi escrito em 2010 e apresentado no 1º Seminário Michel Foucault e disponível
In MAGALHÃES, Bóris Ribeiro (org). SABATINE, Thiago Teixeira (org) SOUZA, 
Luís Antônio Fransciso (org) Corpo, sexualidade e direito: coletânea de textos do 1º Seminário 
Michel Foucault. Marília: Oficina Universitária Unesp, 2010. CD-ROM ISSN 2177-8728 )

MORAIS, Isabela
Ciências Sociais – Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Araraquara

Resumo:
O presente trabalho discute aspectos do corpo e da sexualidade no mundo contemporâneo, comparando-os às dimensões que estas noções recebiam em outros períodos da história. Pautamos nossas leituras através do diálogo entre as obras: O Freudismo e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin (1895-1975) e História da Sexualidade I, de Michel Foucault (1926-1984). Tal aproximação pode tanto ajudar na compreensão mútua das obras, quanto no próprio entendimento de cada pensador e suas leituras acerca da ideologia contemporânea. A ascensão da classe burguesa e sua hegemonização ao longo da história proporcionaram uma alteração na relação da sociedade – e dos indivíduos em particular – com o corpo, manifestando suas características em muitos campos da cultura bem como no quotidiano das pessoas. Esse trabalho discorre brevemente sobre o processo de unanimização dessa ideologia (dominante) e suas consequências, tendo como base a junção de duas leituras diferentes, porém complementares.

Palavras-chave: Bakhtin, Corpo, Foucault.

Introdução, metodologia e objetivos         
            Os nomes de Mikhail Bakhtin e Michel Foucault têm sido citados nas últimas décadas enquanto fonte de diversas críticas, principalmente as que tangem à perspectiva do discurso. Preocupação de ambos autores, a crítica e a análise do discurso são hoje as grandes condutoras das demandas epistemológicas pós-modernas, ainda que sejam feitas sem o menor respeito metodológico pelos autores nos quais dizem se inspirar. Um exemplo desse movimento é a crítica da antropologia pós-moderna americana.
            Entretanto, o tipo de abordagem comparativa que desejo fazer dos dois autores, ainda que tenha como ponto central a importância que ambos dão ao discurso, pretende aprofundar especificamente em suas obras, promovendo um diálogo entre o volume 1 da História da Sexualidade – A vontade de saber, do pensador francês e O freudismo e A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, do pensador russo.
            A análise defende que os dois autores estão descrevendo um mesmo processo histórico: a constituição do corpo burguês, a legitimação de uma ideologia burguesa dominante. Partindo desse princípio, tentaremos demonstrar os pontos em que as análises se complementam e as possíveis contribuições desse diálogo para o nosso entendimento deste movimento.
            Melhor dizendo, ainda que tenham enxergado um mesmo processo histórico, Bakhtin e Foucault guardam suas particularidades, tanto pelo seus métodos e pressupostos de análise, quanto pelos lugares distintos que ocuparam no tempo e no espaço. Defende-se aqui que estas particularidades possam tanto ajudar no entendimento mútuo das leituras dos autores, quanto do próprio entendimento da contemporaneidade e os questionamentos que nos circundam.

Da Idade Média à Idade Moderna: eis um novo corpo, um corpo burguês.
            No primeiro capítulo do livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimentoo contexto de François Rabelais, “A apresentação do problema”, Bakhtin afirma que o entendimento da obra do escritor francês do século XVI vai ficando cada vez mais deformado ao longo dos séculos. O pensador russo atribui essa incompreensão ao fato dos críticos, principalmente depois do século XVII, se afastarem do contexto de Rabelais e daquela que teria sido uma das suas principais fontes: a cultura popular. Daí então sua preocupação em trazer à luz os elementos da cultura popular cuja influência fazem da obra de Rabelais única em sintetizar o seu tempo.
            As obras de Rabelais retratam cenas escatológicas, marcadas pelo que Bakhtin chama de realismo grotesco. A valorização das extremidades do corpo, a boca e o ânus, entrada e saída do mundo, imagens de banquetes, fartura, vocabulário chulo, nascimento e morte, tidos como parte de um mesmo processo e visão de mundo, encontram seu ponto máximo no riso ambivalente que imperava nos ritos carnavalescos.
            Muitos críticos de Rabelais vão enxergar apenas o lado negativo destes elementos do grotesco. As cenas são consideradas de mau gosto; o livro é um puro objeto de divertimento, quando o é.
            Diante da descrição de Foucault da genealogia dos dispositivos de sexualidade, não seria possível afirmar que uma classe que está atuando sobre o seu próprio corpo, valorizando-o, intensificando-o, fechando todas as suas portas para a materialidade suja, criando um ambiente higiênico, examinável, inspecionável, uma classe que realiza esse movimento não seria de fato incapaz de perceber e legitimar um corpo completamente diferente?
            A falta de entendimento de Rabelais e desse corpo grotesco cresce conforme cresce também a hegemonia burguesa que, segundo Foucault, pode se perpetuar marcando e diferenciando seu próprio corpo, criando um corpo de classe. Os diversos dispositivos de sexualidade que Foucault descreve em sua obra agem diretamente em pequenos círculos, naqueles que tinham acesso ao médico, aos conselhos do pedagogo, ou seja, no corpo ocioso e não naqueles que trabalham, cuja relação com o corpo reflete e produz uma determinada cosmologia de mundo.

Os dispositivos de sexualidade e a incontrolabilidade do ato histórico.
            Os dispositivos de sexualidade vincularam-se desde a sua origem a “uma intensificação do corpo, à sua valorização como objeto de saber e como elemento nas relações de poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 102). Como uma forma de controle e diferenciação diante do corpo da aristocracia nobiliárquica, que tinha no sangue sua distinção de classe, o corpo burguês é altamente valorizado enquanto organismo vital saudável, forte, repleto de longevidade.
            É conhecida de obras anteriores à História da Sexualidade a preocupação de Foucault em enxergar o poder em termos relacionais, uma espécie de microfísica, afirmando, então, que não há um centro de onde emerja as ordens a serem repassadas de forma sistemática e repressora – dialogando muito provavelmente com a noção de estrutura de poder estatal althusseriana. Foucault é enfático ao afirmar que não há uma política de sexualidade, mas várias, marcadas por rupturas e continuidades, que variam conforme o lugar e as necessidades táticas.
            Assim podemos enxergar neste esforço de Foucault uma ideia que está em Marx – ainda que os marxistas se lembrem pouco dela – e da qual Bakhtin parece também partilhar: a incontrolabilidade do ato histórico. A singularidade da espécie humana diante dos outros animais, segundo a ontologia marxiana, é nossa capacidade de pôr teleológico, ou seja, de prévia ideação; uma objetivação que tem finalidades. As consequências deste ato histórico consciente, entretanto, escapam à sua intenção primeira, àquela finalidade e ideação do sujeito que o objetivara. Assim, quando o homem fez um machado, este não passou a pertencer somente ao seu criador, mas constituiu-se como domínio de todo o gênero humano, alterando as possibilidades de ação de todos os homens. Não há como controlar as consequências destes atos, delimitá-las.
            Este parece ser o caso dos próprios dispositivos de sexualidade. A confissão cristã é um processo que antecede a gênese burguesa, porém é um dos elementos fundamentais pelos quais serão disseminados tais dispositivos: a criação de uma vontade de saber; de prática unitária a confissão se dispersa por diferentes instituições, unidas por uma complexa rede.
            Outro exemplo desta incontrolabilidade é a situação paradoxal que a psicanálise reflete quanto aos dispositivos. A gênese da psicanálise está associada ao processo de generalização dos dispositivos de sexualidade, ou seja, após quase dois séculos de experiências em seu próprio corpo, a burguesia agora já devidamente sexualizada, por assim dizer, expande os dispositivos para as classes populares, sob o aspecto de sujeição e não mais de valorização do corpo, ao mesmo tempo em que começa a suscitar em sua própria classe a ideia de uma sexualidade reprimida. O sexo, constituído enquanto o segredo, o perigo constante, motivo e causa de toda a vigilância do corpo, agora traz as respostas de um inconsciente interpretado por um especialista.
            A crença de que se tem algo a confessar é introjetada de tal forma que agora temos aqueles que, nas palavras de Foucault, alugam suas orelhas.

O Freudismo: o homem abstrato e biológico, a sexualização das relações.
            Em 1927, Bakhtin e Volochínov (integrante de seu grupo de estudos e quem assina o livro de fato) publicam O Freudismo. Imerso no ambiente ideológico da incipiente URSS, Bakhtin assistia à incorporação da teoria freudiana, sem a menor crítica, entre os campos de estudos ditos marxistas. O estudo de Bakhtin é construído sobre as bases da sua nascente, e já muito perspicaz, filosofia da linguagem, como nos explica no prefácio da edição brasileira, Paulo Bezerra. Filosofia da linguagem esta que compartilha das preocupações de Foucault em situar o discurso no jogo das relações objetivas e concretas.
            As problematizações de Bakhtin acerca da teoria freudiana, então amplamente divulgada e assimilada em toda a Europa, antecipam em décadas as conclusões as quais Foucault, bem como Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, vão chegar quanto as limitações da teoria psicanalista (BAKHTIN, 2004, p. XVI).
            Em um contexto ideológico diferente de Foucault, Bakhtin defende uma leitura marxista bastante peculiar e trabalha com a noção de classe e ideologia de maneira mais incisiva que o pensador francês. É impressionante, ainda assim, que as questões essenciais que Bakhtin levanta sobre o freudismo estejam tão ligadas ao diagnóstico foucaultiano da história dos dispositivos de sexualidade.
            Bakhtin, tal qual Foucault, identifica a família como o alvo de maior sexualização e, mais que isso, como as relações no registro do sexual ficam cada vez mais a-sociais e a-históricas. Como se para a teoria freudiana bastasse o primeiro nascimento do homem, enquanto ser biológico e sexual, e isso fosse suficiente para o entendimento da sua totalidade: um homem abstrato, biologizado, e não, como sugere Bakhtin, um homem situado historicamente, em um chão social concreto e definido, considerando seu “segundo nascimento”, no seio das relações sociais.
            O raciocínio converge com a afirmação de Foucault de que é com o advento dos dispositivos de sexualidade que a vida entra na história – através da sistematização dos fenômenos inerentes à vida da espécie humana na ordem do poder e do saber. Bakhtin afirma que os pensadores de sua época (transição do século XIX para o século XX), ainda que divirjam entre si, têm em comum a vida biologicamente interpretada, ocupando o centro da filosofia, uma desconfiança da consciência e, sobretudo, a tentativa de substituir todas as categorias socioeconômicas por categorias psico-subjetivas ou biológicas.
            A psicanálise entendida muitas vezes como liberação, quebra de uma ideologia dominante é, na verdade, o paradoxo dos dispositivos de sexualidade. Bakhtin enxerga esse paradoxo em Freud, na aparência de sua teoria ser uma outra coisa, mas em si mesma, ser sintomática da ideologia pequeno-burguesa:
Todos os conflitos com que opera a psicanálise são sumamente característicos da atualidade pequeno-burguesa europeia. A “censura” freudiana exprime com muita precisão o ponto de vista da ideologia do cotidiano do pequeno-burguês, razão porque surge uma impressão cômica quando os freudianos a transferem para o psiquismo de um grego antigo ou de um camponês medieval. A enorme superestima do elemento sexual pelo freudismo é sumamente ilustrativa no clima da atual decomposição da família burguesa (BAKHTIN, 2004, p. 89-90).


Sexualidade e individualidade: a atomização e massificação de uma sociedade democratista.
            Quando o dispositivo de sexualidade muda de estratégia, como afirma Foucault, através de ideias do tipo: “como fomos reprimidos! Como nos libertar?” há também uma ampla disseminação deste dispositivo por todas as classes. Assim a sexualidade, ao criar um homem abstrato, biologizado e não historicamente situado, dando a impressão de que tanto a burguesia quanto as classes populares são vítimas desse dispositivo, está, em ultima instância, sugerindo uma certa democratização dos efeitos. Eis a capacidade dos dispositivos de sexualidade tanto na atomização da sociedade, na intensiva especificação dos indivíduos através de classificações minuciosas; quanto na massificação decorrente das políticas de massa.
            Hoje a exacerbação da noção de corpo burguesa é tão hegemônica que passa a ser  reproduzida pelos próprios críticos da ordem burguesa. O poder é produtivo. A capacidade de instaurar uma necessidade de vigilância, um olho do poder atento, faz com que o regime autoritário da aparência e perfectibilidade corporal soe como um senso comum partilhado pelas pessoas que se olham, se vigiam, se modelam. A sexualidade deve ser assumida, definida.
            Com uma noção universalista de saúde e higiene, a classe burguesa cria necessidades de vida que para serem reproduzidas passam pela necessidade do consumo: os remédios, a medicina, o sistema de saneamento, a escola, o hospital etc. Legitimamos um Estado para cuidar dos nossos corpos; o mesmo Estado que é extremamente necessário para a reprodução sócio-metabólica do capitalismo.
            O mesmo dispositivo de sexualidade usado para legitimar um poder de Estado que cuide e zele pela vida a partir de uma noção historicamente construída de corpo e de vida, é agora usado para reivindicar direitos frente a esse mesmo poder estatal para as inúmeras especificidades que este dispositivo criou de sexualidades e comportamentos. A luta passa pela esfera dos direitos, mas a necessidade de se ter que falar em direitos já não é em si o que legitima um Estado altamente controlador?
            Esta suposta democratização dos efeitos dos dispositivos é na verdade o nosso democratismo pobre de hoje em dia: a utopia liberal de que todos somos iguais, sem levar em consideração a criação ideológica deste igual; esse democratismo deve englobar todas as diferenças possíveis – sem percebê-las, entretanto, enquanto criadas pelas próprias necessidades dos dispositivos. E com todos esses “diferentes” querendo um quinhão de direitos, o seu “lugar ao sol”, a capacidade de se forjar uma demanda política que vá realmente contra o biopoder e a disseminação do Estado burguês encontra-se cada vez mais longínqua.
            Há que se questionar sobre esse poder que perpassa nossos corpos e não esperar uma liberdade advinda de fora, uma espécie de permissão para se libertar, mas sim acabar com a ideia de que entre o indivíduo e seu corpo há uma mediação desconhecida, uma licença a ser dada.
            Bakhtin afirma que o corpo, no realismo grotesco de Rabelais, está em consonância com a natureza, com um entendimento do mundo a partir do tempo produtivo, que entende processualidade e mutabilidade das coisas: o nascimento e a morte não são polos opostos, mas sim parte de um mesmo movimento. O corpo é aberto, tal como é aberta a transitoriedade da história. É por isso que a boca, o ânus, os excrementos são valorizados: comer e defecar são próprios de todo ser humano e da sua relação com o alimento que vem da terra: comer o resultado do trabalho e devolver para a terra os excrementos que irão fertilizá-la.
            Talvez uma maneira de reconhecermos em nós mesmos os dispositivos burgueses, para então deles nos livrarmos, é rever a maneira como lidamos com nosso corpo. Se todos comemos, defecamos, arrotamos, por que tanto pudor em falar sobre essas coisas? Por que temos uma relação tão ruim com a morte a ponto de ficarmos o tempo todo lapidando o nosso corpo com uma estética corporal tantas vezes agressiva, a fim de retardar um processo que é natural? Por que envelhecer é tão difícil?
            O corpo fechado da burguesia é mais do que um produto de sistemas de adestramento: ele reflete uma perspectiva histórica, um modo de entender o movimento do mundo ou de simplesmente não entender o movimento, negá-lo: a história acabou, o mundo é estático, tal qual nosso corpo, exaustivamente cuidado para parecer sempre igual. “A classe dominante não se olha no espelho do tempo”, já dizia Karl Marx. Talvez esse “olhar para o espelho do tempo”, essa reflexão sobre como nos reproduzimos materialmente e a partir de quais necessidades, nos liberte desse poder introjetado, muito mais do que lutar por direitos perante o Estado.

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