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sábado, 2 de agosto de 2014

Apontamentos sobre o Corpo e a Sexualidade no Mundo Burguês: entre Foucault e Bakhtin

(este texto foi escrito em 2010 e apresentado no 1º Seminário Michel Foucault e disponível
In MAGALHÃES, Bóris Ribeiro (org). SABATINE, Thiago Teixeira (org) SOUZA, 
Luís Antônio Fransciso (org) Corpo, sexualidade e direito: coletânea de textos do 1º Seminário 
Michel Foucault. Marília: Oficina Universitária Unesp, 2010. CD-ROM ISSN 2177-8728 )

MORAIS, Isabela
Ciências Sociais – Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Araraquara

Resumo:
O presente trabalho discute aspectos do corpo e da sexualidade no mundo contemporâneo, comparando-os às dimensões que estas noções recebiam em outros períodos da história. Pautamos nossas leituras através do diálogo entre as obras: O Freudismo e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin (1895-1975) e História da Sexualidade I, de Michel Foucault (1926-1984). Tal aproximação pode tanto ajudar na compreensão mútua das obras, quanto no próprio entendimento de cada pensador e suas leituras acerca da ideologia contemporânea. A ascensão da classe burguesa e sua hegemonização ao longo da história proporcionaram uma alteração na relação da sociedade – e dos indivíduos em particular – com o corpo, manifestando suas características em muitos campos da cultura bem como no quotidiano das pessoas. Esse trabalho discorre brevemente sobre o processo de unanimização dessa ideologia (dominante) e suas consequências, tendo como base a junção de duas leituras diferentes, porém complementares.

Palavras-chave: Bakhtin, Corpo, Foucault.

Introdução, metodologia e objetivos         
            Os nomes de Mikhail Bakhtin e Michel Foucault têm sido citados nas últimas décadas enquanto fonte de diversas críticas, principalmente as que tangem à perspectiva do discurso. Preocupação de ambos autores, a crítica e a análise do discurso são hoje as grandes condutoras das demandas epistemológicas pós-modernas, ainda que sejam feitas sem o menor respeito metodológico pelos autores nos quais dizem se inspirar. Um exemplo desse movimento é a crítica da antropologia pós-moderna americana.
            Entretanto, o tipo de abordagem comparativa que desejo fazer dos dois autores, ainda que tenha como ponto central a importância que ambos dão ao discurso, pretende aprofundar especificamente em suas obras, promovendo um diálogo entre o volume 1 da História da Sexualidade – A vontade de saber, do pensador francês e O freudismo e A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, do pensador russo.
            A análise defende que os dois autores estão descrevendo um mesmo processo histórico: a constituição do corpo burguês, a legitimação de uma ideologia burguesa dominante. Partindo desse princípio, tentaremos demonstrar os pontos em que as análises se complementam e as possíveis contribuições desse diálogo para o nosso entendimento deste movimento.
            Melhor dizendo, ainda que tenham enxergado um mesmo processo histórico, Bakhtin e Foucault guardam suas particularidades, tanto pelo seus métodos e pressupostos de análise, quanto pelos lugares distintos que ocuparam no tempo e no espaço. Defende-se aqui que estas particularidades possam tanto ajudar no entendimento mútuo das leituras dos autores, quanto do próprio entendimento da contemporaneidade e os questionamentos que nos circundam.

Da Idade Média à Idade Moderna: eis um novo corpo, um corpo burguês.
            No primeiro capítulo do livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimentoo contexto de François Rabelais, “A apresentação do problema”, Bakhtin afirma que o entendimento da obra do escritor francês do século XVI vai ficando cada vez mais deformado ao longo dos séculos. O pensador russo atribui essa incompreensão ao fato dos críticos, principalmente depois do século XVII, se afastarem do contexto de Rabelais e daquela que teria sido uma das suas principais fontes: a cultura popular. Daí então sua preocupação em trazer à luz os elementos da cultura popular cuja influência fazem da obra de Rabelais única em sintetizar o seu tempo.
            As obras de Rabelais retratam cenas escatológicas, marcadas pelo que Bakhtin chama de realismo grotesco. A valorização das extremidades do corpo, a boca e o ânus, entrada e saída do mundo, imagens de banquetes, fartura, vocabulário chulo, nascimento e morte, tidos como parte de um mesmo processo e visão de mundo, encontram seu ponto máximo no riso ambivalente que imperava nos ritos carnavalescos.
            Muitos críticos de Rabelais vão enxergar apenas o lado negativo destes elementos do grotesco. As cenas são consideradas de mau gosto; o livro é um puro objeto de divertimento, quando o é.
            Diante da descrição de Foucault da genealogia dos dispositivos de sexualidade, não seria possível afirmar que uma classe que está atuando sobre o seu próprio corpo, valorizando-o, intensificando-o, fechando todas as suas portas para a materialidade suja, criando um ambiente higiênico, examinável, inspecionável, uma classe que realiza esse movimento não seria de fato incapaz de perceber e legitimar um corpo completamente diferente?
            A falta de entendimento de Rabelais e desse corpo grotesco cresce conforme cresce também a hegemonia burguesa que, segundo Foucault, pode se perpetuar marcando e diferenciando seu próprio corpo, criando um corpo de classe. Os diversos dispositivos de sexualidade que Foucault descreve em sua obra agem diretamente em pequenos círculos, naqueles que tinham acesso ao médico, aos conselhos do pedagogo, ou seja, no corpo ocioso e não naqueles que trabalham, cuja relação com o corpo reflete e produz uma determinada cosmologia de mundo.

Os dispositivos de sexualidade e a incontrolabilidade do ato histórico.
            Os dispositivos de sexualidade vincularam-se desde a sua origem a “uma intensificação do corpo, à sua valorização como objeto de saber e como elemento nas relações de poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 102). Como uma forma de controle e diferenciação diante do corpo da aristocracia nobiliárquica, que tinha no sangue sua distinção de classe, o corpo burguês é altamente valorizado enquanto organismo vital saudável, forte, repleto de longevidade.
            É conhecida de obras anteriores à História da Sexualidade a preocupação de Foucault em enxergar o poder em termos relacionais, uma espécie de microfísica, afirmando, então, que não há um centro de onde emerja as ordens a serem repassadas de forma sistemática e repressora – dialogando muito provavelmente com a noção de estrutura de poder estatal althusseriana. Foucault é enfático ao afirmar que não há uma política de sexualidade, mas várias, marcadas por rupturas e continuidades, que variam conforme o lugar e as necessidades táticas.
            Assim podemos enxergar neste esforço de Foucault uma ideia que está em Marx – ainda que os marxistas se lembrem pouco dela – e da qual Bakhtin parece também partilhar: a incontrolabilidade do ato histórico. A singularidade da espécie humana diante dos outros animais, segundo a ontologia marxiana, é nossa capacidade de pôr teleológico, ou seja, de prévia ideação; uma objetivação que tem finalidades. As consequências deste ato histórico consciente, entretanto, escapam à sua intenção primeira, àquela finalidade e ideação do sujeito que o objetivara. Assim, quando o homem fez um machado, este não passou a pertencer somente ao seu criador, mas constituiu-se como domínio de todo o gênero humano, alterando as possibilidades de ação de todos os homens. Não há como controlar as consequências destes atos, delimitá-las.
            Este parece ser o caso dos próprios dispositivos de sexualidade. A confissão cristã é um processo que antecede a gênese burguesa, porém é um dos elementos fundamentais pelos quais serão disseminados tais dispositivos: a criação de uma vontade de saber; de prática unitária a confissão se dispersa por diferentes instituições, unidas por uma complexa rede.
            Outro exemplo desta incontrolabilidade é a situação paradoxal que a psicanálise reflete quanto aos dispositivos. A gênese da psicanálise está associada ao processo de generalização dos dispositivos de sexualidade, ou seja, após quase dois séculos de experiências em seu próprio corpo, a burguesia agora já devidamente sexualizada, por assim dizer, expande os dispositivos para as classes populares, sob o aspecto de sujeição e não mais de valorização do corpo, ao mesmo tempo em que começa a suscitar em sua própria classe a ideia de uma sexualidade reprimida. O sexo, constituído enquanto o segredo, o perigo constante, motivo e causa de toda a vigilância do corpo, agora traz as respostas de um inconsciente interpretado por um especialista.
            A crença de que se tem algo a confessar é introjetada de tal forma que agora temos aqueles que, nas palavras de Foucault, alugam suas orelhas.

O Freudismo: o homem abstrato e biológico, a sexualização das relações.
            Em 1927, Bakhtin e Volochínov (integrante de seu grupo de estudos e quem assina o livro de fato) publicam O Freudismo. Imerso no ambiente ideológico da incipiente URSS, Bakhtin assistia à incorporação da teoria freudiana, sem a menor crítica, entre os campos de estudos ditos marxistas. O estudo de Bakhtin é construído sobre as bases da sua nascente, e já muito perspicaz, filosofia da linguagem, como nos explica no prefácio da edição brasileira, Paulo Bezerra. Filosofia da linguagem esta que compartilha das preocupações de Foucault em situar o discurso no jogo das relações objetivas e concretas.
            As problematizações de Bakhtin acerca da teoria freudiana, então amplamente divulgada e assimilada em toda a Europa, antecipam em décadas as conclusões as quais Foucault, bem como Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, vão chegar quanto as limitações da teoria psicanalista (BAKHTIN, 2004, p. XVI).
            Em um contexto ideológico diferente de Foucault, Bakhtin defende uma leitura marxista bastante peculiar e trabalha com a noção de classe e ideologia de maneira mais incisiva que o pensador francês. É impressionante, ainda assim, que as questões essenciais que Bakhtin levanta sobre o freudismo estejam tão ligadas ao diagnóstico foucaultiano da história dos dispositivos de sexualidade.
            Bakhtin, tal qual Foucault, identifica a família como o alvo de maior sexualização e, mais que isso, como as relações no registro do sexual ficam cada vez mais a-sociais e a-históricas. Como se para a teoria freudiana bastasse o primeiro nascimento do homem, enquanto ser biológico e sexual, e isso fosse suficiente para o entendimento da sua totalidade: um homem abstrato, biologizado, e não, como sugere Bakhtin, um homem situado historicamente, em um chão social concreto e definido, considerando seu “segundo nascimento”, no seio das relações sociais.
            O raciocínio converge com a afirmação de Foucault de que é com o advento dos dispositivos de sexualidade que a vida entra na história – através da sistematização dos fenômenos inerentes à vida da espécie humana na ordem do poder e do saber. Bakhtin afirma que os pensadores de sua época (transição do século XIX para o século XX), ainda que divirjam entre si, têm em comum a vida biologicamente interpretada, ocupando o centro da filosofia, uma desconfiança da consciência e, sobretudo, a tentativa de substituir todas as categorias socioeconômicas por categorias psico-subjetivas ou biológicas.
            A psicanálise entendida muitas vezes como liberação, quebra de uma ideologia dominante é, na verdade, o paradoxo dos dispositivos de sexualidade. Bakhtin enxerga esse paradoxo em Freud, na aparência de sua teoria ser uma outra coisa, mas em si mesma, ser sintomática da ideologia pequeno-burguesa:
Todos os conflitos com que opera a psicanálise são sumamente característicos da atualidade pequeno-burguesa europeia. A “censura” freudiana exprime com muita precisão o ponto de vista da ideologia do cotidiano do pequeno-burguês, razão porque surge uma impressão cômica quando os freudianos a transferem para o psiquismo de um grego antigo ou de um camponês medieval. A enorme superestima do elemento sexual pelo freudismo é sumamente ilustrativa no clima da atual decomposição da família burguesa (BAKHTIN, 2004, p. 89-90).


Sexualidade e individualidade: a atomização e massificação de uma sociedade democratista.
            Quando o dispositivo de sexualidade muda de estratégia, como afirma Foucault, através de ideias do tipo: “como fomos reprimidos! Como nos libertar?” há também uma ampla disseminação deste dispositivo por todas as classes. Assim a sexualidade, ao criar um homem abstrato, biologizado e não historicamente situado, dando a impressão de que tanto a burguesia quanto as classes populares são vítimas desse dispositivo, está, em ultima instância, sugerindo uma certa democratização dos efeitos. Eis a capacidade dos dispositivos de sexualidade tanto na atomização da sociedade, na intensiva especificação dos indivíduos através de classificações minuciosas; quanto na massificação decorrente das políticas de massa.
            Hoje a exacerbação da noção de corpo burguesa é tão hegemônica que passa a ser  reproduzida pelos próprios críticos da ordem burguesa. O poder é produtivo. A capacidade de instaurar uma necessidade de vigilância, um olho do poder atento, faz com que o regime autoritário da aparência e perfectibilidade corporal soe como um senso comum partilhado pelas pessoas que se olham, se vigiam, se modelam. A sexualidade deve ser assumida, definida.
            Com uma noção universalista de saúde e higiene, a classe burguesa cria necessidades de vida que para serem reproduzidas passam pela necessidade do consumo: os remédios, a medicina, o sistema de saneamento, a escola, o hospital etc. Legitimamos um Estado para cuidar dos nossos corpos; o mesmo Estado que é extremamente necessário para a reprodução sócio-metabólica do capitalismo.
            O mesmo dispositivo de sexualidade usado para legitimar um poder de Estado que cuide e zele pela vida a partir de uma noção historicamente construída de corpo e de vida, é agora usado para reivindicar direitos frente a esse mesmo poder estatal para as inúmeras especificidades que este dispositivo criou de sexualidades e comportamentos. A luta passa pela esfera dos direitos, mas a necessidade de se ter que falar em direitos já não é em si o que legitima um Estado altamente controlador?
            Esta suposta democratização dos efeitos dos dispositivos é na verdade o nosso democratismo pobre de hoje em dia: a utopia liberal de que todos somos iguais, sem levar em consideração a criação ideológica deste igual; esse democratismo deve englobar todas as diferenças possíveis – sem percebê-las, entretanto, enquanto criadas pelas próprias necessidades dos dispositivos. E com todos esses “diferentes” querendo um quinhão de direitos, o seu “lugar ao sol”, a capacidade de se forjar uma demanda política que vá realmente contra o biopoder e a disseminação do Estado burguês encontra-se cada vez mais longínqua.
            Há que se questionar sobre esse poder que perpassa nossos corpos e não esperar uma liberdade advinda de fora, uma espécie de permissão para se libertar, mas sim acabar com a ideia de que entre o indivíduo e seu corpo há uma mediação desconhecida, uma licença a ser dada.
            Bakhtin afirma que o corpo, no realismo grotesco de Rabelais, está em consonância com a natureza, com um entendimento do mundo a partir do tempo produtivo, que entende processualidade e mutabilidade das coisas: o nascimento e a morte não são polos opostos, mas sim parte de um mesmo movimento. O corpo é aberto, tal como é aberta a transitoriedade da história. É por isso que a boca, o ânus, os excrementos são valorizados: comer e defecar são próprios de todo ser humano e da sua relação com o alimento que vem da terra: comer o resultado do trabalho e devolver para a terra os excrementos que irão fertilizá-la.
            Talvez uma maneira de reconhecermos em nós mesmos os dispositivos burgueses, para então deles nos livrarmos, é rever a maneira como lidamos com nosso corpo. Se todos comemos, defecamos, arrotamos, por que tanto pudor em falar sobre essas coisas? Por que temos uma relação tão ruim com a morte a ponto de ficarmos o tempo todo lapidando o nosso corpo com uma estética corporal tantas vezes agressiva, a fim de retardar um processo que é natural? Por que envelhecer é tão difícil?
            O corpo fechado da burguesia é mais do que um produto de sistemas de adestramento: ele reflete uma perspectiva histórica, um modo de entender o movimento do mundo ou de simplesmente não entender o movimento, negá-lo: a história acabou, o mundo é estático, tal qual nosso corpo, exaustivamente cuidado para parecer sempre igual. “A classe dominante não se olha no espelho do tempo”, já dizia Karl Marx. Talvez esse “olhar para o espelho do tempo”, essa reflexão sobre como nos reproduzimos materialmente e a partir de quais necessidades, nos liberte desse poder introjetado, muito mais do que lutar por direitos perante o Estado.

Referências Bibliográficas
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