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terça-feira, 26 de novembro de 2013

naufrágio

me afogo com as palavras
vou tropeçando pelas ladeiras
os pés encharcados
a água que corre, escorre
pelos cabelos, os pés, o ventre
me inunda.
imunda, engasgo e soluço
me embriaguei de poema
de vírgulas tortas
parágrafos inexistentes
paráfrases, parábolas
metáforas
de repente a espada, um punhal
nas mãos de um cavaleiro
desastrado.
o café virado de gole de três dias atrás
o papel entalado na garganta
o ar não passa.
antes a garrafa toda do bourbon
ou o saquê da festinha cool de uma terça qualquer
me afoguei nas palavras.
nenhum dicionário há de me salvar a vida.

domingo, 24 de novembro de 2013

são passos.



Foto Clandestina
A primeira vez que assisti ao show do Passo Torto foi lá na Casa de Francisca. Eu ainda morava em Araraquara e vim, única e exclusivamente, para assistir ao show. Há algum tempo encantada com os barulhos paridos pelos quatro moços de múltiplos projetos nessa cidade cinza, eu aproveitei a deixa de novos amigos e vim. É de fato uma casa. Pequena. Aconchegante. Mas que presa pelo espetáculo. Não se serve nada quando começa a apresentação. Fotos proibidas (eu vi uma moça fotografando e fiz duas clandestinas! rá). Silêncio total e absurdo. Mas o quarteto ali está literalmente em casa. Entre uma música e outra, alguma história. As piadas com a ausência dos discos pra venda e a divulgação do site Umquetenha para baixá-los e a alfinetada certeira nos "grandes da mpb" por Kiko "O Chico não disponibiliza lá...". Mas eis que eu ouço uma reclamação de que ninguém cantava junto as letras das canções... Poxa!! Eu até queria. Com todas as letras de cor, fiquei sussurrando ali... mas me senti totalmente constrangida pelo local e não saiu um risquinho de voz.

Já habitante da pauliceia, eu fui caminhando da (já) saudosa rua Clélia até a Serralheria ali na Guaicurus.  A Serralheria é um terreiro. Um terreiro numa sexta-feira a noite. O palco pequeno, o público entre sentado e em pé. Mas estávamos próximos, público e artistas. Com alguns meses de lançamento apenas, o show do álbum "Passo Elétrico" ainda tinha gosto de estreia. O disco se confundiu com junho, com as ruas cheias, em choque, em transe. O show em ciclo abria e fechava em barulho, dissonância. "Passarinho esquisito" abriu para "Um homem só" e sua bonita solidão, compartilhada com as mulheres, "Isaurinha", na crônica recheada de malícia nos sussurros de Rodrigo, entre Belém, Natal, Portugal, com vergonha do amor e "Helena", nas confissões da cidade que é um rádio por dentro, de prédios que têm varizes, bronquite e que também morrem. Na retomada do álbum anterior a música que de fato é uma linha de continuidade entre um álbum e outro: "A música da mulher morta" - com direito a piadinhas de música de sucesso... o show fluiu entre a belíssima "Tempestade" de Fróes e Cabral que, dessa vez, além de ter um encarte só pra si, dava o gosto de sua voz. Do disco antigo "Da vila guilherme até o imirim" tentamos puxar um coro, Rômulo até deu a deixa..., "Sem Título, Sem Amor", assim como "A música da mulher morta", era canção que ligava um álbum noutro, a proposta da ironia, da frieza, do escárnio, da frieza, da estranheza da existência torta e cinza, que atinge seu ápice no sambão de cavaco e violão, Bis do espetáculo, "Rá rá rá":
Desculpe a dignidade
De lhe dizer atrocidades
Mas essa é a minha maior qualidade
Deixa eu gozar
Enquanto eu morro
De tanto rir

Rá rá rá

e "Cidadão" (uma das canções mais bonitas, na minha humilde opinião.)




Foto de Alessandra Cabral
Ontem foi a terceira. E nada de casa, terreiro. Era palco. desses com cortina vermelha, paredes brancas com detalhes dourados. Mas com vontade de ser descolado, com as cadeiras de plástico brancas e uma luminária de led, em pleno contraste com a pompa do lugar. E no Centro. Um prédio construído dentro da ideologia - reacionária - do "Revitalizar o Centro de São Paulo". Prédio modernoso, pensado por diversos arquitetos e zás e zás e para ser um anexo ao Theatro Municipal  - para "fazer companhia" ao solitário centro de cultura do centro da cidade.
Escorrendo contradições, por suas paredes e vidros, o evento que ali acontecia era o Conexão SP (e acontece ainda enquanto escrevo), patrocinado por operadora de celular. O apresentador se gabava ao nos lembrar de que estávamos no Centro. E de fato, estávamos e tudo de graça. Mas os muros de Samuel são construídos dentro - é "Samuel" apareceu no teatro nas vozes de Kiko e Rodrigo. O evento divulgado na internet solicitava que imprimíssemos os ingressos - gratuitos. Seguranças imponentes  - simpáticos também, devo dizer que sorri muito pra linda negra que se chateava por ter que me revistar a cada entrada e saída - eram o aviso: aqui não entra qualquer um. "Diz Samuel, que que cê pensou?"

Atrasos. Eu pensei que não veria o quarteto, já que cheguei pralá do anunciado - mas, como sou besta! festival: atrasos. Mais de horas. Entramos no teatro e então a pergunta "Gente, já pode começar?"
A sala de concerto é invadida pelos barulhos de "Passarinho esquisito". E o show vai. Muita luz, pouca luz, luz que não dialogava. Diálogo em mímica com a mesa: festival, som nunca nos eixos de -cara "abaixa aumenta" dedo apontado pra Marcelo - de fato baixo, baixo. Ao longo do show, entre uma canção e outra, as falas diretas com a mesa.
- mas pro público, os dizeres das canções. apenas.

Há quem desqualifique por aí a chamada música barulhenta. Mas por mais que eu quisesse um show do Passo Torto em pé, dançante - eu não me aguentava nas cadeiras e liguei o foda-se cantando todas as letras que sabia! - faz sentido que aquele show aconteça ali, sentados, assistindo. São barulhos em texto e contexto, com sentido, com tempo e razão de ser, cada um dos detalhes. E quem conhece as canções - sim, CANÇÕES - espera por aquele riffie naquela hora e os cantarola junto. - Exige-se concentração. E estarem à vontade, com som, retorno e público.

Era o festival. Com shows acontecendo simultaneamente. A contradição do show e do lugar: as pessoas se movem. Levantam. Deixam o lugar, o show: "Não pode sair durante o show pessoal", Marcelo disse antes de começarem justamente "Samuel". Aplaudidos logo na introdução e ovacionados no fim. "Viu? Quem saiu perdeu", dizia Kiko.

Mas eu, euzinha aqui, senti falta do estarem em casa como no terreiro da francisca ou da serralheria. Pra gente não teve nenhum mísero "boa noite" - tudo bem, vai. o clima do show. mas um boa-noitezinho?

Foto de Alessandra Cabral
Foi longe de ser o melhor show deles e eles sabem disso: a falta do cavaquinho no retorno e a letra que se erra, o menino que não entra na estrofe certa pra fazer o dueto. Mas ainda assim, um arrebatamento, imenso. Gente que nunca os tinha visto ao vivo, saiu dali embasbacado. Feliz eu fiquei por ver uma menina de sei lá eu, 3 anos, sendo chacoalhada pelos pais enquanto a guitarra do Kiko abraçava em microfonia o retorno.

eta menina de sorte de ouvir essas coisa assim novinha.

passo torto ao deus dará dos Cidadão Esquizofrênico ali bem perto, no Centro. tão perto e tão longe da música enformada da dor encarnada de existir na contraditória são paulo. são palcos. são passos.

ps.: e é claro que eu sambei "Rarará", de pé e sem pudor em pleno teatro. que agora não regulo mais mixaria.

transa

primeiro o corpo comprimido
sabia do risco 
o tempo já anunciava água
e mesmo assim teimava
em sair desprotegida
mas do que nos protege um guarda-chuva?
então aceitou as lágrimas
que lhe caíam do céu
soltou os cabelos
e deixou que eles se enamorassem
abriu os braços
e rememorou a maré.




sexta-feira, 22 de novembro de 2013

transita entre pessoas
desapercebida a mente
e tece contorno das palavras com gosto
tropeça nas peças
do quebra cabeça
dá por si e quando vai ver
é amiga de um poeta morto.




com Sônia Pinheiro, amiga das travessuras da afinidade
 - que desrespeita tempespaço
e Wilson Caritta, quem descubro viva palavra
depois de póstumo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

terça-feira, 19 de novembro de 2013

da maior importância

vá embora, vá.

sentamos então nas banquetas das memórias. enquanto falava dos rancores que nos perseguem, havia o interdito de estarmos ali - fantasmas de um mundo que não veio, numa festa de um futuro tosco, que nos amedronta.
me mostrava os prédios antigos como quem quisesse tocar um rosto, se ver novamente no papel, nos pequenos e certeiros traços que a academia aprisionou e condenou ao esquecimento.
Ressentidos: um vendendo os pecados, o outro comercializando sua descrença.
Depois das viagens astrais, aurais, resta o estar condensados, tateando sentidos.

na calada da noite fria, houve o momento do silêncio que grita. o álibi das mãos eram o olhos que encantados distribuíam levezas.


Foram atropelados no meio da rua deserta. cada qual com uma versão diferente:
 - foi a pressa do teu passo
 - foi o balanço das tuas mãos, das tuas ancas
 - foram as luzes do caminhão.

Acordados, de olhos fechados. hipnotizados de olhos abertos. nada do que se dissesse poria fim à agonia. nem remediaria os hematomas dos tombos.

num só golpe, foi feita então a oferenda: borramos o mapa com percalço, procuras, com guache, com suor. ríamos. e entre nós a distância incontida do retorno. a lógica eram os borrões de tinta num quadro de cores primárias meio pollock, meio jazz.

me cansei do abstrato concreto e engoli você, então. sua confusão, mastiguei sua falta de sentido pras coisas. engolia a sua letra maiúscula de Moça, seu adeus-até logo, sua ironia, acidez - sua carência inconfessável e infame.

Afinal de conta éramos os mesmos ali. enfeitiçados e enlaçados por pontos distantes das mãos. um, morto de certeza. outro, doente de dúvida.

- engulo eu. vomita você.
zonzo, enauseado, você se aproxima. vomita minha desconfiança, minha insatisfação, meu ciúme, meu ego. vomita minha cara de tacho, minha farsa, meus trocados.

Fagocitados pelo vazio, nos despedimos em silêncio. Num encruzilhada, como havia de ser. 
misturados. atônitos. comovidos de indiferença.

baixada a poeira escondida/arrastada pelo vento, debaixo do tapete do tempo
reafirmo meus passos e minha fé
ao responder as perguntas
que você não me fez.


Quem ouve sua voz
Diante dessa voz
Parada entre nós
Reconhece
O som
Permanece
Som
Afogado
Antes de virar
Felicidade
Prende todo o ar
Quem pega sua mão
Nos dedos dessa mão
Mergulha o coração
Condenado
Ao céu
Mais nublado
Põe
Assombrado
Frente ao azul
O mais azul
Azul de um céu imenso
Cadê você
Pra me levar
Cadê você
Pra mergulhar
Na areia, na manhã
Os pés e as mãos
No lado escuro
Do meu coração
E quando meu cansaço
Cair de cansaço
Daí vou saber
Se era mesmo
Você
Se era tarde
Ou
Tempestade
Que passou sem ver
Sem nem dizer
Se ainda vai voltar
(Tempestade, Passo Torto)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

.arquivo.

[porque quando a prosa trava
ela imbirra, emburra
se destaca
improvisa.
quando a prosa trava
ela brisa.]

***
de quando em quando
o corpo congela
a mente em cólicas
as articulações teimando
o som é a maior de todas as drogas
postas ao redor da roda
fogaréu picadeiro
o ar é uma enchente.
o riso-artigo cult
xadrez, estampa
arrogância alternativa
microcosmo e sua canção
passárgada distópica
siglas em combustão
canil, prainha
carro de patrão.
lampiões de laterna
caixotes modernosos
lustres e imposições coletivas.
nodulos. e o corpo entorpecido
das filas, das iscas., dos riscos.
alternância térmica
cores com poder.
a lama sob sol
posta em dia de feriado.
se exibem os sorrisos em black
riem da independencia.
debocham da fé alheia.
paripasso-suscinto
em foco-síntese
lUcidDream
sente-se o corp'acordar.




***



os amigos virando livros
ela com batom vermelho
espera o passado
ouve harpa no jardim
espirra em diminutos




***



olha a risca, arisca
- arrisca.




***



deletes
metros de metrôs
aperto, acento.
sol com brisa
frente fria.
e vinha mesmo. uma fria. enorme.
no poisé do pai
cafundózona-sul
clarence-dias-joão
bongôs de iemanjá
jangada.
volta arisca.
= a culpa é da lua.
nem é da sua conta.
vinte quatro - nem um segundo a mais.
sem busão
sem noção
cu-na-mão
anj'andré
consolação-raposo
rodovia
fria
companhia

são paulo é fria
é fria, maluco
é fria.




terça-feira, 5 de novembro de 2013

só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão.

cada vez que estamos à beira do fogo, transformando a matéria com a força de seu calor. Ver o talo virar caldo, remédio que cura. Ver o cru virar cozido. O caldo virar doce. A folha virar xarope.

cada vez em que nos encontramos e falamos da vida, partilhamos nosso suor e sentimentos.

cada vez que o vermelho nos escorre. seja em dor. seja em negação. seja em aprendizado. seja em dúvida.

o arquétipo de mulheres que se sabiam parte do mundo. da natureza. que com sua colher de pau curavam e operavam milagres.

cada vez que uma segura a mão da outra pra hora do parto.

cada vez que o sexto sentido grita e acerta.

 - mas  dizem que a gente não pode.
dizem que a gente que é louca.
dizem que a gente nasceu pra cuidar. que a gente não é dona da gente.

[estão no mesmo meridiano do corpo o ponto da sexualidade e da esquizofrenia.]

estamos dentro. fora. adiante. e aqui é dentro. é fecundo. é fundo.
é água.

mas também é fora, é ação, é sol. é leve.

e infinitas. como o grande tempo. no grande espaço de sermos todos um conectados.

ressuscitai o espírito do poder do feminino e celebrai seu vermelho.
ou ao menos, o mínimo, que não percamos a dignidade nesse mundo cheio de dor, preconceitos, medos, injustiças.




segunda-feira, 4 de novembro de 2013

AfroSampa - ou as travessuras de Exu.

Mesmo porque Exu é capaz de,
atirando uma pedra hoje,
acertar um pássaro ontem.
(Antônio Risério,
citando um oriqui de Exu)
Foto de Divulgação:Leco de Souza




Nesta quarta e quinta-feira acontecem as apresentações do show "Afrosampa", onde o ponto de partida é uma releitura urbana(?) dos afro-sambas de Vinicius e Baden Powell e paralém do álbum. Não é forçar o argumento dizer que o show contempla a estrutura de sentimento na qual o disco está inserido, já que estarão presentes ali também Moacir Santos, Edu Lobo e mais outros compositores e suas canções contemporâneas aos afro-sambas.



Dois lugares distintos no tempo e no espaço. Duas propostas sonoras, projetos e ideologias diferentes vão estar dividindo o mesmo palco nesses dias. E é com muita alegria que vou testemunhar o encontro.

Confesso que dos nomes citados, eu conheço mais os trabalhos de Kiko, Juçara, Criolo e Marcelo Cabral. Mais que conhecer, o acontecer desse show contempla desdobramentos da minha pesquisa sobre os afro-sambas de mais de quatro anos, que virou a dissertação "É, NÃO SOU: ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço". 

Ano passado durante um congresso de Hip Hop aqui em São Paulo apresentei a comunicação: "A vez do rap no morro: os rappers relendo as canções de Vinicius de Moraes", publicada nos anais do congresso e também neste blog.  Neste eu comento a intervenção de Criolo (à época ainda Doido), Terra Preta e Rael da Rima no programa Som Brasil, procurando desvelar os novos sentidos dados às canções "Samba da Bênção", "O morro não tem vez" e "Canto de Ossanha" e perceber o parentesco da marginalidade da obra "afro" de Vinicius e a marginalidade do rap.

Ainda no ano passado apresentei a comunicação "Ressonâncias: dos afro-sambas ao Metá-metá", no 2º Congresso Internacional do Samba, no Rio de Janeiro. Lá eu fora alertada por meu colega citado no artigo, Rafael Galante, de que os Metás não apreciavam muito a aproximação que eu estava fazendo. Eu já o sabia. Desde a descoberta do álbum, que aconteceu durante a pesquisa dos afro-sambas, eu o ouvi com muita paixão e entusiasmo e pesquisei muito as entrevistas e resenhas espalhadas por aí sobre o trabalho de Juçara, Dinucci e França. - Não fora apenas eu quem percebera um diálogo que atravessava tempos e gerações. O artigo, também publicado aqui no blog, procura aproximar, mas também, e sobretudo, justamente apontar as diferenças entre não apenas as sonoridades, as propostas, mas também dos tempos históricos distintos. Essas diferentes estruturas de sentimento.

Grande parte da sua argumentação, compõe o ensaio sobre "Lamento de Exu" presente na dissertação e também publicado aqui no blog. Ali, a brisa no entanto é maior e mais ampla já que o ponto de partida é a última faixa do álbum - que duvido muito que vá aparecer no repertório dos shows dessa semana justamente porque é onde o choque entre as concepções ficam mais evidentes: enquanto Kiko e Juçara lançam seu primeiro disco juntos com o nome Padê - em clara referência a Exu, Baden Powell relega a ele um lamento, sem letra, no final do álbum.
(isso porque à época da defesa eu ainda não comentara o Metal Metal em que Exu é louvado em iorubá na abertura do disco!).

Aliás, se intencionalmente ou não, Metal Metal é quase um anti-os-afro-sambas. Explico: além de abrir com Exu, que não se lamenta, o disco dá continuidade à proposta do primeiro álbum de ultrapassar as narrativas dos orixás mais conhecidos, como Baden e Vina fazem entoando Iemanjá e Xangô, explorando sonoridades que extrapolam o samba. Se em "Tristeza e Solidão" o babalaô  - figura já extinta no Brasil - é citado para curar um coração partido, a canção "Orunmilá" traz a própria divindade da profecia, em cuja letra há o empoderando o sujeito "Se o/presente já morreu/Um segundo atrás/Quem matou fui eu", assim como em "Obá Iná", de Douglas Germano, presente no primeiro disco dos Metá, já tínhamos um devoto de Xangô que sorri em "vez de se curvar"
E fecham emblematicamente com "Tristeza Não", de Itamar Assumpção. Túlio Villaça mesmo já disse que os afro-sambas poderiam se chamar "amor e dor", visto as inúmeras vezes que o par dialético aparece na lírica das canções. Metá Metá canta como quem resiste dizendo que tristeza não.
Se eu disser que discordo de Vinicius e sua dialética do "amor e dor", vou estar mentindo (e haja dissertação pra contar por quê). Mas consigo ler esse "Tristeza não" ecoando, por exemplo, nas justas e criativas intervenções que aconteceram em Belo Horizonte no mês do centenário do coletivo "obscena agrupamento independente de pesquisa cênica"  que dentre muitos projetos fizeram o "remexendo vinicius", conversando-atualizando-crítica com/a obra do poeta. Numa das intervenções na Praça da Liberdade elas pedem "Sem Sofrer".

Mas são as travessuras do menino Exu. 

De tanto marcar território, Juçara e Kiko estão aí nesse show que por mais que não seja só Vinicius e Baden, os contempla como centro da órbita.
Eu concordo com um crítico musical contemporâneo dos afro-sambas, Juvenal Portella, que discordava de Vinicius de Moraes quando dizia que os afro-sambas era um ponto final, mas sim um ponto de partida, um começo fecundo. Se ele assim o era, Exu está ali, ao final, abrindo caminhos. "A intenção do autor é atropelada pela força da obra." para me citar, a partir do texto da conclusão da dissertação, cujo excerto segue:

"O próprio conceito criado por Vinicius de Moraes, aparentemente, de modo espontâneo e sem grandes pretensões ao gritar para Baden: “Poxa, Badinho, esses são os afro-sambas!”, se visto a partir de onde olhamos, extrapola as intenções do letrista. A cisão do hífen e a sua aparente redundância: Afro e o Samba. Uma cisão que é inclusiva. Ao separar, amplia-se o movimento. O hífen aponta para o destaque do samba – o gênero debatido, defendido, autêntico, mas também para fora dele. O samba pode ser mais que os orixás. Afro pode ser mais que o samba.

Por um lado há o destacamento do samba do afro. Salientar que o samba é “mais” do que a influências africanas, o papel da classe média (branca) urbana na construção do samba como um representante legítimo da brasilidade mestiça. Do samba que vira samba-canção, bossa nova.

Mas há que destacar que o afro do samba é também uma possibilidade de libertar o afro da ideologia de conciliação de classes que foi construída concomitantemente à afirmação do samba como símbolo nacional de um país mestiço.

Desta forma, destacar o afro é um movimento que ultrapassa a própria intenção da criação do conceito, fazendo eco com os processos de reafricanização e valorização das narrativas afrodescendentes. É o anúncio de que um afro começa a questionar a ideologia da mestiçagem.

Um afro que fala a partir de sua própria voz, uma voz que quer fazer ecoar as vozes de seus ancestrais míticos. A música é um dos elementos mais fortes de laços entre essa imensa nação filha da diáspora negra. As sonoridades da diáspora africana costurando uma forma de identidade pan-americana.

São os orixás cantados hoje não apenas ao som do samba, mas do rap e do afrobeat. É como ouvir Criolo e Kiko Dinucci cantando “Mariô” - um rap sampleado, com atabaque, cuíca e cavaquinho. O refrão é cantado em iorubá, como o título, “mariô” – folha nova da palmeira de dendê, presente na mitologia do orixá homenageado, Ogum, que constrói e destrói, mas preserva os lugares marcados com mariô. O rap de Criolo vai da roda viva de Chico Buarque à louvação deste movimento afro, que é mais que samba, e mais que Brasil: “Atitudes de amor devemos samplear/ Mulatu Astake e Fela Kuti escutar”.


O descompasso de tempos, com temporalidades em contraponto, Vinicius de Moraes quis que os afro-sambas fossem a resposta definitiva e, entretanto, construiu um álbum ensaístico, muito mais do que ponto final, um ponto de abertura às mais diversas (e inimaginadas) possibilidades.

A ética e a estética dos afro-sambas expressos na lírica dilacerada de Vinicius de Moraes e no trastejo violonístico de Baden Powell, reverberam-ressoando formas e sentidos em aberto e coam no tempo que insiste, porque existe um tempo que há devir."  (MORAIS, Isabela. 2013, p. 234-235. mimeo.)



E que venha o show. 
Afro-Sampa. Justo Sampa, de São Paulo, que um dia, mesmo arrependido depois, Vinicius de Moraes jurou que fosse o túmulo do samba...


A vez do rap no morro: os rappers relendo as canções de Vinicius de Moraes.




Isabela Morais[1]



Resumo:
A presente comunicação pretende fazer uma leitura crítica da versão feita pelos rappers Criolo Doido, Rael da Rima e Terra Preta das canções de Vinicius de Moraes, apresentadas no programa exibido pela Rede Globo, Som Brasil : “O morro não tem vez”, “Samba da Bênção” e “Canto de Ossanha”. Amparados pela arquitetônica teórica de Mikhail Bakhtin, além das reflexões de Luiz Tatit sobre a semiótica da canção, procura-se compreender de que forma as releituras suscitam novos sentidos, fazendo aflorar novos valores investidos naquelas canções, através da mudança de gênero musical, entoação, além das próprias rimas e intervenções dos rappers cujas falas trazem as músicas para o contexto sócio-histórico presente, resignificando as canções compostas há quase 50 anos atrás.

Palavras Chave: Vinicius de Moraes, Criolo Doido, Canção Popular, Rap, versões.

Abstract:
The purpose of this communication is to make a critical reading of the version made by rappers Criolo Doido, Rael Rima and Terra Preta of the songs of Vinicius de Moraes, presented in the programme aired by Rede Globo, Som Brasil: "O morro não tem vez", "Samba da Bênção" and "Canto de Ossanha". Sustained by the theorical architectural of Mikhail Bakhtin, in addition to theoretical reflections of Luiz Tatit on the semiotics of song, seeks to understand how the reinterpretations of new senses, making touch new values invested in those songs, through the change of musical genre, intonation, in addition to the own rhymes and interventions of rappers whose lines bring the songs to the socio-historical present, giving new senses to the songs composed for almost 50 years ago.

Keywords: Vinicius de Moraes, Criolo Doido, Popular Song, Rap, versions.


Pra começo de conversa:
            Em abril de 2007, a Rede Globo de Televisão levou ao ar uma nova versão do programa Som Brasil, cuja proposta é basicamente fazer uma homenagem a grandes nomes da música popular brasileira, convidando músicos, bandas, grupos e intérpretes contemporâneos para fazerem releituras de suas canções. O primeiro homenageado foi Vinicius de Moraes, cujo extenso cancioneiro foi erigido ao lado dos mais diversos parceiros. A história oficial, por sua vez, enfatiza sempre a célebre parceria com Tom Jobim, muitas vezes destacando apenas este período da produção de Vinicius, como um compositor de Bossa Nova. Se por um lado a importância deste movimento não pode e nem deve ser negada, por outro a amplitude da obra de Vinicius de Moraes não deve ser restringida a este movimento (nem mesmo a obra de Tom Jobim permitiria tal restrição a um movimento apenas).
            Tal afirmação se justifica pela própria escolha do repertório que compôs o programa Som Brasil: das quinze canções, oito delas são em parceria com Tom Jobim; apenas uma contempla o seu parceiro mais duradouro e também derradeiro, Toquinho, “Tarde em Itapoã”; também é apenas uma canção composta ao lado de Carlos Lyra considerado por Vinicius de Moraes um de seus principais parceiros, “Coisa Mais Linda”, canção que também evoca ao que conceito mais “clássico” de Bossa Nova, diferentemente de outras canções da dupla, principalmente as consideradas músicas de protesto, como “Maria Moita”, por exemplo; “Lamento”, música de Pixinguinha pra qual Vinicius de Moraes escreveu a letra posteriormente e, por fim duas canções compostas com Baden Powell, “Samba da Benção” e “Canto de Ossanha”, que integram uma safra específica de composições da dupla, os Afro Sambas.
            Os artistas convidados para as releituras das canções de Vinicius foram a consagrada intérprete Gal Costa, cantando “A Felicidade”, “Insensatez”, “O Amor em Paz” e “Se todos fossem iguais a você”; o grupo BossaCucaNova, que faz releituras de canções Bossa Nova misturando-as com a sonoridade da música eletrônica contemporânea, apresentou as canções “Água de Beber” e “Tarde em Itapuã”, com a interpretação de Cris Delano e “Garota de Ipanema”, com a participação também de Ed Motta; o músico Chico Pinheiro que cantou ao lado de Tatiana Parra e Luciana Alves em leituras mais próximas das originais “Chega de Saudade”, “Lamento” e “Coisa Mais Linda”; e, por fim, as releituras que nos interessam aqui dos rappers Criolo Doido, Rael da Rima e Terra Preta junto com o violonista Marcel Powell de “O morro não tem vez”, “Samba da Bênção” e “Canto de Ossanha”.
           
A perspectiva da conversa:
            A proposta deste artigo é fazer uma leitura crítica das releituras dos rappers. Algumas ideias permeiam nossa leitura, nosso olhar para tais releituras. Uma das ferramentas teóricas utilizadas nesse exercício é a arquitetônica teórica de Mikhail Bakhtin, a começar pelo seu conceito de eventicidade: o sentido do enunciado é construído a partir do seu contexto, um mesmo enunciado proferido em duas circunstâncias diferentes já não é o mesmo, pois possui um novo sentido.
Outra dimensão da arquitetônica bakhtiniana é o tom volitivo emocional que permite entender a singularidade de cada enunciado, ou seja, a sua entoação. No caso da canção popular, uma mesma música pode ser interpretada por diferentes maneiras, seja modificando os arranjos, seja alterando a entoação, seja, conforme os conceitos trabalhados por Luiz Tatit, alterando as formas de concentração e expansão, aceleração e desaceleração. Segundo Tatit, dos diversos valores investidos numa obra no momento de sua composição, apenas alguns se manifestam no momento da execução. Logo, as diferentes interpretações e releituras de uma mesma canção são capazes de fazer aflorar tais valores. É partir dessa perspectiva que pretendemos analisar a releitura das canções “O morro não tem vez”, “Samba da Bênção” e “Canto de Ossanha”.
            A arquitetônica bakhtiniana preocupa-se em dar conta da singularidade de cada enunciado, entendendo-o não de forma absoluta, mas num diálogo ininterrupto com o contexto sócio-histórico que o circunda, seja enquanto resposta imediata a uma determinada circunstância, seja dentro de uma compreensão de uma grande temporalidade, onde os sentidos remetem a experiências e enunciações passadas, e cujo a possibilidade de leitura não se esgota diante do devir, uma vez que todo o enunciado é aberto e inconcluso, respondendo a compreensão ativa daquele com o qual dialoga. Entender esta singularidade demanda entender a arquitetônica específica do enunciado, onde, como, por que, por quem, pra quem, o que, quando foi dito.

Calçada pra favela, avenida pra carro, céu pra avião, e pro morro, descaso[2].
A única canção interpretada pelos rappers em parceria com Tom Jobim é “O morro não tem vez”.  O próprio título da canção anuncia que não é uma canção marcada pela leveza da lírica apaixonada e tantas vezes rotulada como alienada da Bossa Nova, ela está muito mais próxima daquilo que se convencionou chamar de Bossa Nova nacionalista, canção engajada, ou ainda, simplesmente, música de protesto. Composta em meio à efervescência política dos anos 1960, “O morro não tem vez” reflete na sua letra preocupações caras aos debates estéticos e engajados da época. Desde meados dos anos 1950, alguns tipos e lugares sociais passaram a se destacar nas narrativas artísticas comprometidas com a crítica social brasileira: sertão, morro, malandros, operário, camponeses.
            Cabe aqui prestar atenção no eu lírico da canção: o sujeito não se confunde com o morro, não é um habitante de lá e nem se dirige aos próprios habitantes, mas sim a uma outra classe, com a qual também não se confunde. “O morro não tem vez e o que ele fez já foi demais. Mas olhem bem vocês, quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”. Esta passagem reflete a postura do intelectual engajado, a juventude de classe média, aliada aos interesses ideológicos de esquerda – e não nos esqueçamos da influência do PCB na cultura engajada desde os anos 1950, na qual tal intelectualidade procura forjar com a arte uma consciência dos problemas sociais do país. Entretanto, o eu lírico aqui não fala “ao povo”, mas “sobre o povo”, senão para a sua própria classe, para as classes dominantes.
             O verso “quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar” traz à tona a importância da música nos discursos sobre o morro. Os debates historiográficos sobre o samba constituíram ao longo das décadas de 1930-1960 a ideia de que o morro seria o lugar social do verdadeiro samba. O livro organizado por Alba Maria Zaluar e Marcos Alvito Pereira de Souza “Um Século de Favela” (2004) demonstra como ao longo do século XX gradativamente vai se constituindo nas letras das canções populares uma identificação entre morro, favela, samba e escola de samba, no qual a música e a dança muitas vezes aparecem como reforço dos laços de pertencimento, solidariedade e amizade entre os moradores.
            Não à toa os últimos versos da canção fazem referência ao Carnaval “abram alas ao morro”, “é mil a batucar”, “tamborim vai falar”. O carnaval é apresentado como um ritual de inversão, no qual o morro reina na cidade. O eu lírico a partir dessa imagem propõe então que seja dada vez ao morro não só neste tempo, o que traria para a cidade uma nova sociabilidade “toda a cidade vai cantar” – entendendo aqui o canto não apenas como o carnaval, mas como o próprio meio de vida, idealizado, evidentemente, que o morro poderia apresentar à cidade.
            A música composta em 1963 é então reapresentada 44 anos depois. O ritmo não é mais o samba, mas sim a batida do rap, o que já provoca uma outra entoação na canção. Menos melódica e mais falada, citada. Por sua vez, a harmonia e os arranjos deixam a canção com uma atmosfera mais tensa e séria. Se pensarmos na conhecida versão de Elis Regina no álbum “Dois na Bossa”, gravado com Jair Rodrigues, a diferença é gritante. Elis Regina canta a primeira estrofe destacando o desenho melódico do fraseado, cantando-o de forma desacelerada, cuja entoação cria um sentido de lamento para o verso, como um canto triste.
            Vejamos então a versão dos rappers. Rael da Rima introduz a música anunciando:
“Criolo Doido,
Rael da Rima,
Terra Preta,
Marcel Powell,
 Iporanga,
 Grajaú,
Time do Loko
Vem cá, meu brow”

            Os três rappers cantam em uníssono a primeira estrofe da canção: “O morro não tem vez/ E o que ele fez/ Já foi demais/ Mas olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ toda a cidade vai cantar”
             E então Rael inicia a sua rima:
Se derem vez ao morro
e não deixá pá nós só a polícia e os cachorro
Sem emprego, tá difícil, mas nós vai virá o jogo
Com a arte que liberta e traz um raciocínio novo
Um raciocínio novo
E tanto faz se for favela, o morro vem com nós
Do Iporanga ao Grajaú nós vai soltá a voz
Pra libertar e resgatar o que há de valor
E pra mostrar que na favela também tem amor
           
            Na fala de Rael da Rima podemos notar uma nova perspectiva discursiva inserida na canção: aqui não é alguém falando de fora do morro, mas sim alguém está inserido naquela realidade. A aura de idealização da realidade do morro vai abaixo já nos primeiros versos recitados por Rael, mencionando a violência policial vivenciada no cotidiano. O discurso, entretanto, não é pessimista. O rapper acredita que é possível mudar a situação “virar o jogo”. 
            No discurso de Rael é reafirmado, ainda que noutra perspectiva, a noção de que a arte promove uma transformação. Novamente foram citados os locais Iporanga e Grajaú, evidenciando o orgulho do pertencimento a um lugar, à periferia, aqui identificada com o morro. O mesmo orgulho cantado pelos sambistas do morro, aqui reiterado. “Morro” aqui simboliza não apenas os morros cariocas, mas há uma identificação com a favela e a periferia em geral. Criolo Doido nasceu e cresceu no Grajaú, distrito paulistano. Recentemente o rapper lançou a música “Grajauex”, no seu álbum mais Nó na orelha, reiterando o orgulho de vir da periferia.
Segundo Criolo, a arte na periferia das grandes cidades brasileiras está ganhando força e visibilidade devido à “necessidade [das pessoas] de viver coisas boas e fazer parte de coisas boas. Necessidade de contribuir com a nossa comunidade e com o mundo” (CRIOLO apud VERGUEIRO, 2011). E ele é enfático ao lembrar que “as artes sempre existiram na periferia, mas só estão enxergando agora. O pessoal está atrasado. O preconceito deixou as pessoas cegas”. (grifos da autora)
            Ou seja, dar vez ao morro é deixar de ser cego e ouvir o som que vem de lá, ouvindo a voz dos rappers que gritam que na favela “também tem amor”.
            Depois da rima de Rael os rappers retomam: “Morro pede passagem/ Morro quer se mostrar/ Abram alas pro morro/ Tamborim vai falar”
            A entoação desta parte é bem diferente do canto melódico da versão original. Os rappers entoam cada sílaba de forma marcada e destacada “Mo-rro-pe-de-passagem”, “Mo-rro-quer-semostrar” “A-bram-a-las-promorro” e no verso “Tam-bo-rim-vaifalar”, os tons da bateria são batidos no tempo da enunciação, deixando bastante enfática e imperativa a estrofe. E continuam em coro uníssono: “É um, é dois, é três, é cem/ é mil a batuca/ O morro não tem vez/ Mas se derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”
            Criolo Doido começa então a sua rima:
Plantaram indiferença
Regaram com a arrogância
E a gente assim
Dança uma dança
Entre o fogo da arma
E a brisa da ganância
Como uma criança
Disso vai manter distância?
Em cada rua dez buteco, cinco igreja,
três biquera e uma esperança
A mãe vê o filho com abundância
Aprendi que só se colhe o que se planta
Compreensão pros louco      
E escola pras criança
            Criolo Doido também enfatiza a atmosfera pesada e não idealizada do morro, cuja indiferença, que Vinicius de Moraes já anunciara, ao pedir que se dê vez ao morro há quatro décadas, foi responsável pela situação difícil na qual as crianças são obrigadas a crescer e testemunhar. Criolo Doido percebe a situação do morro como sintomática e reversível, já que se “colhe o que se planta”: se deixarmos de plantar indiferença e regar com arrogância, mas sim plantarmos compreensão e educação, oportunidade, possivelmente a situação pode se transformar, no colher nos frutos.
            Por fim, Terra Preta encerra a música com a sua rima:
Eu vou além
Mais do que um compromisso
Do Rap, Bossa Nova, os sambas de Vinicius
Acontece isso
sei que é inevitável
Juntou Tom Jobim, cancioneiro implacável
Ei, pensando bem
a vibração faz um desenho
As notas do amor são como música um prêmio
O que me faz dar valor a minha arte
O som que vem do morro se espalha por toda parte:
Morro!
            Os três rappers cantam juntos “Morro!”, demonstrando muito orgulho de cantarem o morro. A rima de Terra Preta menciona a tão falada e consagrada parceria de Vinicius e Tom Jobim, mencionando o diálogo entre os sambas e o rap, mostrando a possibilidade de diálogo entre eles ao cantarem as notas do amor. Este diálogo que permitiu aos próprios rappers estarem ali espalhando o som do morro por toda a parte. Estar ali, em um palco da Rede Globo, sendo televisionados para o país todo, como representantes do morro, levando as rimas do rap. Criolo Doido tem clareza do que significa isso e deixa bem claro na próxima música.

Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê[3]
            “Samba da Bênção” é a primeira canção de Vinicius de Moraes em parceria com Baden Powell a ser apresentada no programa. Composta em 1962, ano do encontro dos parceiros, ela faz parte da primeira leva de canções da dupla e antecipa alguns elementos de uma safra de canções que eles viriam a compor e denominar Afro Sambas.
            “Samba da Bênção” é uma homenagem a Vinicius ao samba. Não é incomum encontrar sambas que falem do próprio samba. Entretanto, Vinicius de Moraes aqui mescla a lírica da canção com a sua poesia e entre um verso e outro cantado, ele recita algumas rimas, características de sua produção, como a receita da mulher amada, o desejo de aproveitar a vida e por fim a louvação e pedido de bênção aos sambistas desde a geração de Sinhô, os sambistas do Estácio, a geração de 1930, chegando aos seus parceiros contemporâneos, como Tom Jobim e o próprio Baden Powell.  Tal reza tem uma estrutura de base, mas se transforma ao longo da carreira de Vinicius, que vez ou outra adiciona alguns versos, transforma outros.
            Na primeira estrofe ele enfatiza o caráter ambivalente do samba, que não deve ser feito apenas da matéria da alegria, mas também é necessário um “bocado de tristeza” pra se fazer um samba. Na estrofe seguinte ele reitera a ideia de que o samba é “tristeza que balança” condenando aquele que faz samba apenas com a alegria, como se ele fosse piada. Na última estrofe, Vinicius de Moraes clama por amor – característica de sua criação poética – e responde a uma querela que permeava os debates historiográficos da época sobre o samba: o lugar de seu nascimento.
            A versão apresentada no Som Brasil começa com um o violão de Marcel Powell homenageando o pai, Baden. Em seguida, Criolo Doido começa a cantar. Ao final da primeira estrofe, Criolo Doido levanta o dedo indicador, indicando a entrada do DJ e do restante da banda e então começa seu rap:
Cê quer saber,
Então, vou te falar,
Porque as pessoas sadias adoecem,
Bem alimentadas, ou não,
Porque perecem.
Tudo está guardado na mente,
O que você quer nem sempre condiz com o que outro sente.
Eu tô falando é de atenção,
Que dá cola ao coração.
E faz marmanjo chorar,
Se faltar um simples sorriso, às vezes um olhar.
E que se vem da pessoa errada, não conta,
Amizade é importante, mas o amor escancara tanto.
E o que te faz feliz,
Também provoca dor,
A cadência do surdo no colo que se forjou.
E aliás, cá pra nós, até o mais desandado,
Dá um tempo na função, quando percebe que é amado.
E as pessoas se olham e não se falam,
Se esbarram na rua e se maltratam.
Usam a desculpa de que nem Cristo agradou.
Falô! Cê vai querer mesmo se comparar com o Senhor?
            Rael da Rima então completa:
As pessoas não são más, mano
Só estão perdidas
Ainda há tempo irmão
           
            Tal rap é a primeira parte da música “Ainda há tempo”, lançada por Criolo Doido, em 2006, no álbum homônimo, primeiro CD do artista, depois de 17 anos atuando como rapper. Percebemos aqui que o enfoque do rap de Criolo evoca um novo sentido ao samba de Vinicius, contemplando um tema que fora mais explorado pelo poeta em outra canção, “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”, falando sobre a falta de atenção entre as pessoas. Criolo Doido parece atender ao pedido do verso “ponha um pouco de amor numa cadência” e faz seu rap falando da importância do amor. A centralidade passa a ser justamente do primeiro verso: “é melhor ser alegre que ser triste”.
             O rap de Criolo está voltado para a indiferença entre as pessoas nas grandes cidades, tema recorrente no trabalho do rapper em suas narrativas sobre São Paulo e sua periferia. Aliás, uma canção que dialoga muito bem com esse tema é “Não existe amor em SP”, lançada no álbum de 2011 Nó na Orelha.
            O rap enfatiza que as pessoas não sofrem apenas por falta de recursos materiais, mas também por falta de amor e de atenção. E o rapper aqui não faz distinção da importância destes afetos para as pessoas ao dizer que “até o mais danado dá um tempo na função quando percebe que é amado”. Ou seja, o amor tem o poder, ainda mais que a amizade, de transformar e regenerar as pessoas. Tal ideia fica clara na fala de Rael da Rima ao afirmar que “as pessoas não são más” e “que ainda há tempo”.
            Se pensarmos então no cotidiano das grandes cidades, nas pessoas que se cruzam e não se olham, pequenas atitudes como “um simples sorriso” ou então “um olhar” podem transformar as relações frias e reificadas, já que fica evidente no discurso dos rappers até aqui a crença na possibilidade de transformação das relações e das pessoas. Tal transformação por sua vez demanda exercício e Criolo critica aqueles que se acomodam com a desculpa de que nem Cristo agradou.
            Criolo Doido dialoga com Vinicius ao falar sobre o caráter ambivalente do amor que ao mesmo tempo cura e provoca a dor, contemplando o tema de outra canção do poeta “Tempo de Amor”.
            Intencionalmente ou não, a segunda estrofe cantada de Samba da Bênção não foi cantada na versão dos rappers. Após a rima de Rael, Criolo Doido retoma a canção já no último verso, que dialoga com a rima que ele havia feito: “ponha um pouco de amor numa cadência...”.
            Após a estrofe final da canção, Criolo improvisa:
É melhor ser alegre que ser triste
Pena que tem gente que insiste
A tristeza fermentar
A morada desse samba
É o coração de quem ama
E o meu verso veio de lá
Só mesmo a arte pra trazer a gente pra cá
E se hoje eu to na tela
A tela se torna um pouco favela
Aonde existe uma gente tão bela
Que dá gosto de representar

            Destaco aqui a fala de Criolo: “só mesmo a arte pra trazer a gente pra cá”. Somente a arte para poder levar os três moradores e cantadores da periferia para a tela da Globo. A presença dos rappers é a própria presença da favela, mais uma fez reiterada, lembrada e cujo orgulho novamente se renova. O rapper que demorou quase duas décadas para gravar seu primeiro disco tem plena noção do que é ocupar um lócus representante da cultura e poder hegemônicos e faz questão de deixar registrado isso.
            Dois anos depois da exibição do programa, a Globo Marcas e a Som Livre lançaram o programa em DVD. A capa do DVD é bastante sintomática: em destaque a imagem de Vinicius de Moraes com microfone a punho, seu nome grafado no centro da imagem e logo abaixo duas fotos de Gal Costa, uma delas registro da gravação do programa – o que percebemos pela roupa – e a outra um close dela em outro contexto, o que percebemos pelo microfone e pelo seu penteado. Do lado da foto a logo do programa e abaixo, em letras miúdas o nome de Gal grafado em negrito e abaixo os outros convidados.
            Achamos aqui sintomático que Gal Costa seja o grande destaque da capa. Além de consagrada, Gal reafirma nas canções que interpretou e da forma como interpretou o Vinicius de Moraes da Bossa Nova, das aberturas da novela de Manoel Carlos. Gal goza de status e respeito, não desmerecidos, ao contrário. Mas por que não colocar na capa do DVD a cara dos outros artistas? As músicas que tocam no menu do DVD também são as versões de Gal Costa, ela é então a grande estrela?
            Desta forma fica evidente que ainda que tenha sido dado um espaço para as outras leituras possíveis de Vinicius, a leitura que Gal representa é a hegemônica, é a que vende.
            A aparição dos rappers é uma brecha e eles sabem disso, e deixam bastante claro. Estão estrategicamente ocupando um lugar.


Coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor
            Das três músicas gravadas, esta é sem dúvida a que mais foi regravada, recebendo as mais diversas leituras: “Canto de Ossanha”, a primeira faixa do antológico álbum lançado em 1966 da dupla Vinicius de Moraes e Baden Powell, “Os Afro Sambas”.  A letra ambígua da canção sugere movimento. Não há a coincidência do eu: a perspectiva de constante devir e transformação está presente em toda a primeira parte da letra.  
Uma das características mais marcantes da versão de Vinicius e Baden no álbum de 1966 é o caráter coletivo da canção, que mantém um diálogo com as formas populares, se utilizando do recurso da responsividade: uma voz puxa um verso e o coro responde. Tal característica é mantida na versão dos rappers. A primeira parte da canção, em que há o canto responsivo, tem uma entoação mais próxima da fala, que pode ser potencializada pelos rappers.
            Terra Preta puxa o canto, que os outros dois rappers respondem. Nesta versão a segunda estrofe, tal como em “Samba da Bênção”, também não foi cantada.
            Após o primeiro refrão, cantado em solo por Rael da Rima, ele e Terra Preta iniciam um diálogo:
Terra: E a fita do terreiro lá, djou?
Rael: Não sei!
Terra: Mas Ossanha não te falou, tru?
Rael: O quê?
Terra: Aquilo que tinha que dar, “vá”!
Rael: Não dei!
Terra: Por isso isso ficou só, sem amor.
Rael: Quando se fala de Ossanha,
respeito na manha.
Fez nada e num cumpriu,
se pá, até apanha
 da vida corrida, bonita, estranha.
No jogo do amor, é sério,
você perde ou ganha, vai...

            O diálogo dos dois remete ao ambiente do terreiro e ao orixá. Ossanha é o orixá responsável pelo domínio e conhecimento das ervas e folhas e seus encantamentos e poderes. Todo e qualquer trabalho no Candomblé só acontece mediado pela ação de Ossanha, devido a tal poder. O diálogo dos dois se refere à “mandinga de amor” que só pode ser feita por intermédio de Ossanha. Rael não levou o que o orixá pediu e por isso ficou sem amor.
            A “mandinga de amor” nos remete a uma atitude bastante comum entre uma parcela dos brasileiros que, mesmo devotos de outras religiões, por vezes procuram terreiros de candomblé, umbanda, jogadores de búzios, benzedeiras em busca de soluções para os problemas imediatos. Herança do cristianismo popular e a possibilidade de sincretismo com as outras influências religiosas, que acabou constituindo um povo que ao mesmo tempo que devota sua fé aos rituais católicas e monoteísta, acredita em mandingas, feitiçarias, má sorte, e a mais diversa sorte de santos, espíritos e, porque não, orixás. Tal panorama tem se transformado nas últimas décadas em decorrência do aumento vertiginoso das evangélicas, mas não no sentido de negar a multiplicidade espiritual, mas ao contrário, relegando toda a diversidade ao maniqueísmo de “manifestação” do diabo.
            Rael da Rima canta um rap relatando a dificuldade do sujeito em se relacionar seriamente e sem saber o que fazer diante de mais uma oportunidade de se envolver:
Escolhi carreira solo, porque eu me complico
Mas mi-na até descoloco, mas com nenhuma fico
Elas me chamam de locão, de putão, canastrão
Mas eu faço que não, o que o problema é de coração
E me aparece você, querendo agora transmitir seu
Calor
Não vou mentir que curti te beijar ontem a noite
Tocar de monte e curtir com ontem
Eu já conheço o começo e o final
O problema é em mim
Tá comigo, eu já sei do esquema
Eu perdi a pretinha, a loirinha, a pequena
E agora o que eu faço contigo na cena, (vai!)

            O rap é trecho da música “Já não sei”, que seria lançada no ano seguinte no álbum Natural, do grupo Pentágono, formado, por mais quatro rappers além de Rael da Rima: Apolo, Massao, M Sário e DJ Kiko. Natural é o segundo álbum do grupo, formado em 2001. Em 2004 se destacou na MTV ao concorrer na categoria de melhor clipe de rap com “Na Moral”, faixa que integrou o primeiro disco do grupo Microfonicamente Dizendo lançado naquele ano. Aliás, na introdução de “O Morro não tem vez”, Rael da Rima se refere à gravadora, independente, destes dois álbuns, a Time do Loko.
            A linguagem utilizada pelos rappers se distingue claramente do tipo de linguagem cunhada por Vinicius de Moraes. Os motivos são evidentes: há uma distância de tempo e espaço entre eles, mas não uma distância qualquer. Ainda que Vinicius de Moraes fora ao longo da sua carreira de compositor popular aderindo a uma linguagem cada vez mais despojada e próxima do cotidiano, como podemos perceber nos versos de “Samba da Bênção”, sua linguagem ainda é bastante próxima do que se entende como língua dominante e normal culta do português. Entendemos aqui a relação cronotópica enraizada socialmente e não como categorias a priori. A distância entre Vinicius e os rappers é uma distância de classes e de pertencimento a lugares sociais, e trânsito por diferentes lugares sociais, muito distintos e singulares.
            Dentro de uma mesma língua há muitas linguagens possíveis. É o que Bakhtin (1998) entende por plurilinguismo. Cada ambiente social dispõe de seus códigos, gírias, entoações próprias. Uma característica marcante do discurso dos rappers é de não abrir mão da linguagem corrente do ambiente no qual convivem, do qual vêm. O plurilinguismo é evidente no rap, que traduz as vivências em diversos ambientes para a linguagem da periferia, as conjugações verbais e atropelos de concordância característicos da fala cotidiana. Não é sinal aqui de falta de domínio de uma norma culta, seja lá por quais motivos forem. Trata-se de entender a adoção dessa linguagem em si como uma forma de transgressão, de determinar um território, marcar uma singularidade, amplificar uma voz. O berro de uma classe.
            Desta forma os sentidos suscitados pela lírica viciniana são traduzidos pelos rappers não apenas para a sua percepção contemporânea das relações, mas também para a sua linguagem. Algum purista poderia alegar que os rappers sujaram a música viciniana, mas a despeito do que possam pensar por aí, muito provavelmente o poetinha teria gostado das novas leituras de suas canções.
            Na publicação da sua peça “Orfeu da Conceição”, de 1954, Vinicius de Moraes faz duas ressalvas quanto à atualização da peça: que sejam mantidas as canções que compõe a trilha, compostas ao lado de Tom Jobim e que as gírias presentes no texto são só fossem mantidas, mas também atualizadas. Vale lembrar o profundo desejo que Vinicius tinha que sua peça fosse assistida pelo povo, comunicasse com ele, pois fora feita em homenagem a ele. A peça que levou pela primeira vez ao palco do Theatro Municipal um elenco totalmente negro foi também apresentada no Teatro República, em 1956, ano de sua montagem, na esperança de que o povo pudesse assisti-la num ambiente em que o deixasse mais à vontade que o pomposo Theatro Municipal.
Logo, se era desejo de Vinicius que sua arte comunicasse amplamente com os mais diversos estratos da sociedade; se fora parte da sua história, marcando a sua própria introdução no campo da música popular a homenagem ao morro carioca, seus sambistas, seu povo e seus sons; se era desejo de Vinicius que sua peça atualizasse a linguagem do morro, não há como não concluir que as leituras do rappers contemplassem o poeta.
            Além do mais, o discurso sobre a importância dos afetos, sobre a crença na transformação, tão caros a Vinicius estão ali, presentes nas falas dos rappers.

A vida é a arte do encontro[4]
Um ano antes da gravação do Som Brasil, a apresentadora Regina Casé, o antropólogo Hermano Vianna e o diretor e produtor Guel Arraes criaram o programa Central da Periferia: um programa de auditório ao ar livre e itinerante, que tinha como proposta explorar diferentes sonoridades das periferias brasileiras. O programa viajou por Recife, Salvador, Belém e é claro, São Paulo.  É muito provável que esta tenha sido a ponte dos rappers para o especial em homenagem a Vinicius de Moraes.
            Segundo Hermano Vianna, a ideia do programa não é descobrir novos talentos, mas ao contrário, mostrar para a grande mídia as músicas que circulam nas periferias, na boca do povo, e que fazem sucesso à margem da indústria fonográfica. Uma cultura produzida na periferia para a periferia que está longe de ser homogênea:
A grande maioria das atrações musicais do programa é formada por ídolos de massa, já consagrados pelas multidões das periferias. Ou são projetos sociais que já influenciam decisivamente a vida de suas favelas, e contam com apoios internacionais. Mas que em sua maioria nunca apareceram na TV em rede nacional. (VIANNA, s/d).

            O programa feito em São Paulo, na Favela de Heliópolis, levou ao palco vários artistas e dentre eles o rapper Criolo Doido, que convidou Rael da Rima e Terra Preta para apresentarem com ele o rap “Ainda há Tempo”, mesmo rap que um ano depois ele iria cantar na sua versão de “Samba da Bênção”. Regina Casé ficou encantada com Criolo Doido e profetizara ali que nós ainda iríamos ouvir falar muito sobre ele.
            Quem se acostumou a ver Criolo de 2011 pra cá, quando seu disco Nó na Orelha atingiu um grande sucesso de crítica, quase não reconhece o menino Cléber Gomes, magricelo e de óculos apresentando o Grajaú com muito orgulho no programa de Regina Casé. Questionado sobre seu apelido, Criolo, ele explica que é filho de pai preto e mãe mais clara, e que usa o apelido como provocação mesmo, para quebrar o paradigma do que se espera de um Criolo (nas palavras dele “um armário da zaga da seleção brasileira”) e reitera que não há como pensar em um nascido no Brasil que não seja afrodescendente.
            Tal qual Vinicius de Moraes que deu a si o epíteto de branco mais preto do Brasil, Cléber Gomes se orgulha de sua origem afro e escolhe ser chamado de Criolo. “Pronto pra rimar um doido, criolo mestiço. Eu não sou preto, eu não sou branco, eu sou do rap, eu sou bem isso!”, diz o rap “Ainda há tempo”.
           
À espera de outras conversas
            No seu texto sobre o programa Central da Periferia, Hermano Vianna afirma categoricamente:
Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país. A periferia se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de fora, do centro. A periferia não precisa mais de intermediários (aqueles que sempre falavam em seu nome) para estabelecer conexões com o resto do Brasil e com o resto do mundo. Antes, os políticos diziam: "vamos levar cultura para a favela." Agora é diferente: a favela responde: "Qualé, mané! O que não falta aqui é cultura! Olha só o que o mundo tem a aprender com a gente!” (VIANNA, s/d)

A própria periferia fala de si por si, produz um universo cultural muito rico, que passa ao largo do centro hegemônico. Rompe-se aqui com a ideia de que o centro deveria incluir a periferia, como se ela fosse apenas um lugar de miséria, sem cultura. A periferia não só tem cultura, como produz para si, muitas vezes renovando a própria forma de se pensar produção, reprodução e distribuição nos paradigmas dados pela grande indústria fonográfica.
             A grande transformação do sentido das canções de Vinicius foi essa: o próprio morro fala de si, por si e para si. Não há a mediação da classe média esclarecida que compreende a necessidade de ir ao povo.
            Além do morro agora falar com a sua própria voz, ele carrega através da voz dos rappers a esperança e mensagem de possibilidade de transformação. E só pode crer e anunciar a transformação aquele que realmente vivenciou uma: nos discursos dos raps entoados não apenas no Som Brasil, mas em outros trabalhos dos três, fica claro como o hip hop aparece como agente transformador da vida dos jovens nas periferias assoladas pela violência e pelo descaso. Como na letra do rap “Na Moral”, do Grupo Pentágono: “Não foi por nada que hip-hop apareceu na minha casa e me falou que vai chegar na sua casa, que é pra deixar o clima namoral...(...)Sei que vai me mudar, sei que vai te mudar, sei que vai libertar, sei que vai.”
            Não podemos ainda de deixar de pensar na ligação presente entre os rappers e as canções escolhidas para serem interpretadas: o rappers estão na periferia e entoaram aquilo que está mais periférico na memória oficial sobre Vinicius, sua negritude. Uma negritude que foi escolhida pelo poeta e mais que apenas cantada, foi vivida por ele. O máximo que se menciona por alto são Os Afro Sambas, esquecendo-se de tantas outras obras nas quais Vinicius de Moraes mostrou ser um homem engajado com a vida e por isso engajado na arte, como as canções ao lado de Carlos Lyra, na época da chamada Bossa Nova nacionalista, em que compôs sambas como “Maria Moita”: “vou pedir a meu babalorixá, pra fazer uma oração pra Xangô, pra por pra trabalhar gente que nunca trabalhou”. Ou ainda o Vinicius de Moraes que viveu na Bahia, frequentando o terreiro de Mãe Menininha do Gantois, colhendo matéria para canções que compôs ao lado de Toquinho como “Maria vai com as outras”, “Tatamirô”, “Canto de Oxum”.
            Há aqui um duplo movimento de visibilidade e respeito bastante necessário: a visibilidade do rap e das culturas de periferia e a visibilidade de Vinicius de Moraes como um artista que foi muito mais do que o parceiro de Tom Jobim, “criador da Bossa Nova”.
            Relembrando aqui nossa arquitetônica teórica, para Bakhtin o ato estético é (deve ser) um ato responsável. Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem se influenciar mutuamente. É com a matéria da vida que o homem faz sua arte; e é através da fruição estética que o homem ressignifica sua vida e seus valores. Não devemos ser impostores na vida, mas sim ocupar nosso lugar único e singular, vivendo eticamente.
            Vinicius de Moraes viveu esta relação entre arte e vida, assim como os rappers e destacamos aqui em especial a figura aqui tão mencionada de Criolo Doido.
            Esperamos então o dia em que as músicas mais cantadas e comentadas de Vinicius forem as esquecidas, engajadas e negras. Assim como esperamos que na capa dos próximos DVDs estejam estampados de igual para igual as fotos dos rappers e dos “monstros sagrados da MPB”, com seus nomes escritos em letras garrafais...

Referências bibliográficas
              
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Ed.HUCITEC - Ed. UNB, 2008.
_______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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SOM BRASIL Vinicius de Moraes. Direção: Mário Meirelles, Luiz Gleiser. Apresentação: Patrícia Pillar. Roteiro: Rafael Dragraud e David Peoples. Música: Vangelis. Estúdio: Som Livre. São Paulo: Globo Marcas/Som Livre, 2009. 1 DVD (43 min aprox.)




[1] Isabela Martins de Morais e Silva. Mestranda em Sociologia/Ciências Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara. Bolsista CAPES. Orientador: Prof. Dagoberto José Fonseca. Av. São José 474A, São José, Araraquara – SP. CEP 14 800 410. isabelamoraistp@gmail.com
[2] Primeiros versos do rap “Sucrilhos”, de Criolo Doido, em Nó na Orelha (2011).
[3] Verso da canção “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra (1963).
[4] Verso entoado por Vinicius de Moraes em Samba da Benção