(este ensaio compõe da minha dissertação "É, NÃO SOU: ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço" defendida em fevereiro de 2013.
Exu tem a qualidade de seus defeitos.
Pierre Verger
A última faixa do álbum não é uma canção. Não há letra. É um lamento. O violão de Baden Powell inicia a música, que é também, a menor de todo o álbum. A construção da música é feita com os cantos instrumentais ora do violão solo, ora com a voz de Dulce Nunes dobrando a melodia, ou seja, cantando a mesma frase melódica junto a Baden; é composta também por efeitos percussivos e as intervenções do atabaque.
A música está em tom menor e vários de seus elementos ajudam a construir a semântica do lamento: “o andamento é rastejante e possui algo místico, melancólico, com trechos em rubato e com efeitos percussivos que reforçam o caráter lamentoso” (KUEHN, 2012, p. 15). A respeito da “chamada introdutória”, Frank Kuehn a caracteriza como “árida e solitária”, cuja melodia pentatônica ora lembra uma modinha, ora uma toada.
O ponto de partida das análises feitas das sete canções anteriores foram suas letras. A partir do texto, da sua forma entoativa, suas inflexões melódicas, vinculando-a a maneira como foi executada, sua instrumentação, velocidade, à harmonia, depreendemos sentido, partindo dos elementos sugeridos nessa leitura para o contato com aquilo que lhe é externo. Procuramos entender os elementos a que remetem as letras, numa temporalidade que as ultrapassa, mas que elas evocam. Evocam a partir de um lugar no tempo e no espaço. Tal como o nosso olhar, situado no tempo e no espaço.
Em “Lamento de Exu” não temos uma letra de onde partir. Além do que a sonoridade nos sugere – como salientamos há pouco, propriamente um lamento, um canto misterioso e profundamente melancólico e misterioso; temos o título. Esta forma instrumental foi nomeada e seu nome, por mais ocasional que possa ter sido a escolha desse título, ele se insere à música no momento em que nos debruçamos sobre os seus sentidos possíveis.
“Lamento de Exu”.
No Dicionário de Termos e Expressões da Música (2008), encontramos o verbete “Lamento”: “Genericamente, refere-se a uma infinidade de formas musicais simples, direta ou indiretamente associadas a certo tipo de celebrações fúnebres” (p. 180). O lamento, portanto, não teria necessariamente uma “forma”, uma “estrutura” preestabelecida, mas de alguma forma está vinculado às celebrações de lamentação, de tristeza, de melancolia.
Alex Ross no artigo “Chacona, lamento, walking blues: linhas de baixo da história da música”, no seu instigante livro Escuta só: do clássico ao pop (2011), diz o seguinte ao refletir sobre o que chama de “lamento folclórico”:
A música de abatimento e tristeza, em especial, é difícil de não ser identificada. Quando alguém chora, em geral faz um ruído que desliza para baixo, depois salta para um tom ainda mais alto, para em seguida descer novamente. Não surpreende que algo semelhante aconteça nos lamentos musicais de todo o mundo. Aquelas figuras em queda gradual sugerem não somente os sons que emitimos quando sofremos, mas também o descaimento compassivo de nosso rosto e ombros. Num sentido mais amplo, elas implicam uma descida espiritual, até mesmo uma viagem ao mundo subterrâneo. (ROSS, 2011, p.44)
Como o próprio subtítulo do artigo anuncia, o aspecto formal de análise para comparar e entender os três gêneros musicais, chacona, lamento e walking blues, são as linhas de baixo. Em determinado momento, ao falar da chacona87, Alex Ross menciona o basso lamento:
Trata-se de uma linha de baixo repetitiva que desce o intervalo de quarta, às vezes seguindo os intervalos do modo menor (pense no riff do piano de Ray Charles em “Hit the Road Jack”) e outras vezes descendo lentamente a escala cromática (pense no “Crucifixus” da Missa em Sol Menor de Bach, ou, se preferir, em “Simple twist of fate”, de Bob Dylan) (ROSS, 2011, p.43 – grifos nossos).
Ou ainda se preferirmos, o baixo de “Canto de Xangô”, durante o refrão, como demonstramos na análise da canção. Salientamos aqui em outras canções como o “baixo cantante” é um procedimento formal importante, tanto na composição dos afro-sambas, quanto no conjunto da obra de Baden Powell.
Do ponto de vista da escolha formal, o lamento contempla o que para Baden Powell tem de mais africano e está presente, como percebemos, não apenas em “Lamento de Exu”, mas perpassa todo o álbum. Vejamos o seu depoimento no documentário “O universo musical de Baden Powell”:
Os afro-brasileiros quem começou a criar foi até eu que dei uma levantada num tipo de samba... que tem um samba, ele tem um... é um samba mais escuro, mais negro, entendeu? Que tem raízes mais negras. Tem um tipo de Chacona ou chaconne [verbete do Dicionário de Termos e Expressões da Música]: dança barroca em compasso ternário lento. Peça instrumental semelhante à passacaglia italiana, consiste em variações sobre uma linha de baixo ou sobre uma progressão harmônica definida. É muito conhecida a Chaconne para Violino Solo, de Bach, peça de extrema dificuldade para o instrumento. (p. 75).
samba que é um samba-lamento, tem um lamento muito profundo. Esse samba que tem as raízes mais próximas ao afro por causa do estilo do cântico que é... que vem dos cantos gregorianos. Os cantos gregorianos, quem trouxe para o Brasil, foram os jesuítas, quando vieram catequizar os índios aqui. Então isso tudo tem uma ligação muito grande. (O universo musical de Baden Powell, 2003 – grifos nossos)
Sem entrarmos no mérito do que Baden Powell chama de “raízes”, a partir do conceito que o violonista cria do que seja o “africano”, o lamento é que mais caracterizaria esta africanidade. O basso lamento é um procedimento que perpassa as mais diversas formas musicais que Baden Powell praticou durante a sua formação musical. Está presente, por exemplo, nas composições de Bach, cujas peças Baden Powell já executava com primor desde a adolescência. São as diversas influências musicais na formação dialógica de Baden Powell se refletindo na construção dos afro-sambas.
O lamento está inserido naquilo que de mais “afro” havia para Baden Powell. Não à toa, há um lamento no álbum. Lamento de negro que nos remete ao banzo, saudade do negro de sua terra. Banzo e lamentos estes que geram o blues no hemisfério norte.
Lamento pode nos sugerir a forma do instrumental, mas, tal como em alguns outros momentos, o termo “canto” nos sugeria não apenas o “canto” de louvor a/para determinada entidade, mas também o próprio canto daquela entidade, como em “Canto de Iemanjá”, o lamento aqui, mais do que o título da forma meramente instrumental, pode nos remeter ao próprio lamento de Exu, Exu se lamentando.
Exceto em “Tempo de Amor”, que não há menção a nenhuma entidade, e “Tristeza e Solidão”, que mencionam o nome de um determinado culto e uma de suas funções sacerdotais, todas as outras faixas entoam, versam, falam sobre outros orixás. Xangô e Iemanjá são os orixás mais populares do panteão iorubano no Brasil. Ossanha, que teve sua pronúncia e grafia alteradas, não é tão popular. Ademais, se nos lembrarmos da letra, o orixá a quem é dada a razão é Xangô e não o senhor das folhas e do axé.
Caboclo Pedra Preta pode hoje em dia não gozar de tanta popularidade mais. Entretanto, em Salvador, nas capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo, durante os anos 1960, quando foram compostas e gravadas as canções que compõem o álbum, Joãozinho da Goméia era extremamente conhecido, não apenas pelo público devoto. A sua aparição constante na imprensa da época tornou seu Caboclo Pedra Preta muito conhecido.
De alguma maneira, os afro-sambas mobilizaram elementos já conhecidos e presentes no horizonte de parte da sociedade brasileira de sua época que não necessariamente era devota e/ou simpatizava com a religiosidade de matriz africana. E de alguma maneira a menção a Exu também integra esse quadro.
Propositalmente ou não, a ele na versão de 1966, não coube a palavra. Apenas o lamento.
***
Exu é o orixá mais próximo dos homens, segundo narram os pesquisadores e praticantes das narrativas oriundas do panteão iorubano. Por isso talvez, a história de sua apreensão, apropriação, ressignificação desde que se integra ao ambiente de “conquista” e “construção” do “Novo Mundo” nos elucide as conjunturas e lutas político-ideológicas que envolvem a história da escravidão no Brasil e o como a herança da matriz africana é (re)trabalhada constantemente.
A atual conjuntura de Exu é tão paradoxal como sempre fora, mas a singularidade é a seguinte: há um aumento expressivo de estudos acadêmicos, publicações e criações estéticas que trabalham no intuito de “dessincretizar” Exu, associando e evidenciando suas características ao que eram “de fato” em solo iorubano. Movimento que pode (e deve) ser relacionado aos frequentes, e cada vez mais violentos, ataques das igrejas neopentecostais às religiosidades de matriz africana. As formas de ser dessas igrejas lidam de forma ainda mais radical com a concepção do demônio como causadora de todas as infelicidades humanas e as religiosidades de matriz africana, para elas, encarnam quase como um tipo ideal o modo de manifestar-se e ser do demônio.
Exu está mais uma vez na encruzilhada. Ele, que ao ter contato com a ideologia judaico-cristã fora sincretizado ao demônio, é novamente atacado, com ainda mais fôlego. E se a reação de outrora fora uma certa política do mito, aliada aos limites das relações coloniais e de escravidão, agora é de uma defesa que tem como principal arma a descoberta de um “verdadeiro Exu”.
Antônio Risério (1996 e 2007), nos estudos sobre o panteão iorubano, tem o costume de traçar paralelos e aproximações entre ele e o panteão da mitologia grega, como inclusive já falamos aqui. Interessante pensar na forma análoga com que tanto Exu quanto Pan, deus grego, foram apropriados e ressignificados dentro da cosmogonia judaico-cristã.
Segundo a mitologia (SHARMAN-BURKE e GREENE, 2011, p. 83-86), Pan era filho de Hermes e da ninfa Dríope e nascera muito feio, com chifres, barba, cauda e patas de bode. Desde cedo seu pai o levou para entreter os deuses, salientando seu caráter brincalhão que se divertia, por exemplo, assustando viajantes solitários. Não à toa a palavra pânico deriva de seu nome. Pan personificava o espírito fértil e fálico da natureza selvagem e indomada e estava sempre próximo tanto dos deuses como dos homens.
Com o advento da Era Cristã, o deus Pan “foi estabelecido como a figura do Diabo, completo com seus chifres e trejeito irônico”, segundo Sharman-Burke e Greene (2011). Ele passou a ser desprezado
pelas pessoas “espirituais”, como Apolo o desprezou, na Mitologia Grega. Plutarco conta que, durante o domínio do imperador Tibério, um marinheiro que passava perto das Ilhas Equinades, no Mar Egeu, ouviu uma voz misteriosa chamando-o três vezes, dizendo: “Quando chegar a Palodes, proclame que o deus Pan está morto”. Isso ocorria no exato momento em que o Cristianismo nascia na Judeia. (SHARMAN-BURKE e GREENE, 2011, p. 84).
Não é a toa que a figura do diabo cristão incorpora, muitas vezes, as características físicas de Pan, associando-o ao bode.
Após muitos séculos dessa apropriação do deus grego ao imaginário cristão, europeus católicos e ocidentais desembarcam na costa africana e se defrontam com uma figura mitológica de características muito semelhantes a Pan, no caso então, ao que se havia convencionado entender por diabo e encarnação do mal. Essa figura era Exu:
Exu: É o grande trickster do imaginário iorubá, para usar a gíria antropológica. Seu lugar é a encruzilhada, o ponto de passagem, a abertura, o umbral. Sua figura é o paradoxo. Exu é jovem e velho, alto e baixo, alegre e raivoso. Personificação da luxúria, da contradição, do jogo, da oralidade insaciável. Sabe, como ninguém, semear a confusão e a discórdia – assim como é incomparável em sua habilidade para recompor a harmonia que ele mesmo fraturou. Tem a inocência da criança e a licença do ancião em suas rupturas da norma estabelecida. Induz ao erro e à maravilha. Sua representação visual é duplamente fálica: os cabelos arrumados sobre a cabeça como um ícone do pênis; o pau – enorme e duro. (...) Margem, zona de fronteira, interstícios. E seu movimento é sempre duplo: mensageiro que leva aos mortais signos dos deuses, e aos deuses, signos dos mortais. Rei da Astúcia, Soberano dos Ardis, Senhor das Armadilhas. Larioê! (RISÉRIO, 1996, p. 111-112).
Essa descrição entusiasmada de Antônio Risério é próxima do que o imaginário europeu encontrou de Exu na África à época do comércio de escravos. Exu então é imediatamente associado ao diabo.
Interessante salientar a proximidade entre as características de Pan e Exu, criaturas que simbolizavam a fertilidade e o caráter fálico da natureza, sempre em movimento e trânsito entre homens e deuses, brincalhões e causadores de confusões.
É conhecida e inquestionável a violência tanto física quanto simbólica que os negros que foram escravizados durante o período colonial sofreram no Brasil. Os negros trazem consigo seus símbolos e religiosidade. Diante das condições inóspitas, as formas encontradas pelos negros de manifestação de suas crenças serão, principalmente, nas brechas entre o sincretismo das manifestações católicas. Sincretismo esse que relega à figura de Exu sua associação ao diabo.
No etnodocumentário “A boca do Mundo” (2010, dir. Eliane Coster), Adailton Moreira – Baba Egbe do Ilê Axé Omi Ogu Arô, faz o seguinte comentário que nos chama bastante atenção:
Mas em dado momento foi preciso que nós disséssemos que Exu também simbolizava o mal, ou o próprio demônio, que era uma forma da gente, de nos preservarmos contra os abusos, né? Da senzala, do chicote. Pudesse fazer com que feitor tivesse medo da magia de Exu e do poder de Exu. Então se em dado momento Exu era o mal, Exu devia nos proteger contra o mal do outro. (A Boca do Mundo, 2010).
A partir da fala de Adailton, podemos perceber que o processo de associação de Exu ao mal, ainda que tenha partido do contato com a cosmogonia judaico-cristã, passa a ser apropriado pelos próprios negros escravizados como forma de luta e resistência: tornara-se uma arma.
Sob perspectivas e interesses diferentes, a (re)significação de Exu no Brasil vai levando-o a uma certa obscuridade e controvérsia, análoga ao processo por que passa Pan, cujo aspecto animalesco, material, sexual e sátiro vai sendo relegado no imaginário cristão ao subconsciente da formação humana, algo a ser reprimido, escondido e recalcado.
Mais que um recalque, no caso da formação das religiosidades brasileiras no período já entre a abolição e o advento da República, Exu é marginalizado. É bastante interessante refletir como o escritor Eduardo Galeano fala da figura de Exu no livro “O Século do Vento”, volume 3 da obra “Memória do Fogo”, no qual registra passagens importantes das história das Américas. Eduardo Galeano fala sobre Exu depois do texto sobre as mulheres baianas e sua religiosidade, a partir da visita de Ruth e situa os textos no livro no ano de 1939:
O terremoto de tambores perturba o sono do Rio de Janeiro. Dos matagais, à luz das fogueiras, Exu despreza os ricos e contra eles lança seus malefícios mortais. Pérfido vingador dos sem-nada, ele ilumina a noite e escurece o dia. Se joga uma pedra na floresta, a floresta sangra.
O deus dos pobres é também diabo. Tem duas cabeças: uma de Jesus de Nazaré, a outra de Satanás dos Infernos. Na Bahia é tido por malandro mensageiro de outro mundo, deuzinho de segunda, mas nas favelas do Rio é o poderoso dono da meia-noite. Exu, capaz de carícia e de crime, pode salvar e pode matar.
Ele vem do fundo da terra. Entre, violento, arrebentador, pelas solas dos pés descalços. Emprestam a ele corpo e voz os homens e mulheres que vivem com os ratos, entre quatro tapumes dependurados nos morros, e que em Exu se redimem e se divertem até rolar de rir. (GALEANO, 2010, p. 168-169).
A descrição literária e exotópica do escritor uruguaio enfatiza a proximidade de Exu como um deus dos excluídos e dos marginalizados. Nos ajuda a compreender a forma como essa relegação de Exu a um campo mal-quisto e marginal na própria cosmologia judaico-cristã torna-se uma arma àqueles que são marginalizados na sociedade baseada nesta cosmologia, um jogo dialético de relações e significações. Jogo este nada estático, como é próprio de Exu, senhor do movimento.
Pierre Verger salienta nos seus estudos sobre os orixás no “Novo Mundo” como o sincretismo com o Diabo acabou por influenciar nos processos religiosos do candomblé, no fato de que “poucas pessoas lhe são abertamente consagradas” (VERGER, 1981, p. 79). Se pensarmos que Galeano está partindo em seu texto principalmente dos estudos feitos na Bahia em candomblé iorubanos - vide a citação a Ruth Landes no texto sobre as mulheres baianas – ditos mais puros, Exu seria um “deuzinho de segunda” devido ao fato de não ter muitos filhos com a cabeça consagrada, ainda que nenhuma cerimônia e nenhum trabalho possa ser feito sem que se louve o orixá mensageiro.
O Rio de Janeiro é um dos berços da gênese da religião sincrética umbanda. Trabalhando com os elementos da matriz africana, a partir da noção de evolução dos espíritos codificada pela doutrina de Alan Kardec, dialogando, também por isso, com uma moralidade cristã, a umbanda também ressignifica Exu.
De orixá, entidade ligada às forças da natureza, Exu torna-se sinônimo de um espírito cuja vida terrena fora ligada a vícios e corrupções. Exu se aproxima ainda mais do mundo dos homens sendo ele mesmo o espírito de um homem. Parafraseando o sociólogo Reginaldo
Prandi, no documentário “Dança das Cabeças” (2007/2008), na umbanda Exu torna-se uma espécie de diabo domesticado, amigo. A partir das noções de evolução do espírito e de caridade, os Exus são “trabalhados” e “ajudados” como forma de auxílio na sua evolução.
Por outro lado existem cultos específicos “ditos” de esquerda, no qual não apenas a figura masculina de Exu, mas seu “arquétipo” feminino, conhecido como Pombagira, dentre outras denominações, são recebidos em trabalhos, nos quais bebem, se divertem, gargalham, fazendo eco com a descrição de Eduardo Galeano dos exus “cariocas”.
***
Entre trânsitos tão conturbados e diversos, indo de força fálica da natureza, deus mensageiro e brincalhão, a Diabo e espírito obsessor, Exu se transforma no imaginário brasileiro. Seria toda essa leitura motivo para um lamento?
A Iya Sandra Medeiros Epega, do Ilé Leuiwyato, em Guararema-SP, dá o seguinte depoimento, no documentário “Dança das Cabaças” (2007/2008):
Aqui no Brasil convencionou-se de dar uma figura demoníaca. Ele é cultuado numa imagem de metal, que tem um imenso pênis. Ele é cultuado com um garfo simbolizando, é..., o lado demoníaco dele. Mas Exu não se importa com isso. Desde que ele seja cultuado... Aonde que vão cultuar e como vão cultuar, não se importa. (Dança das Cabaças, 2007/2008).
Visto a partir de onde olha Sandra Epega, mesmo com todos esses “motivos”, Exu não se lamentaria.
Se na versão de 1966 d’os afro-sambas, Exu se lamenta sem palavras, na faixa de encerramento do álbum, no início do século XXI ele tem, literalmente, aberto trabalhos, em canções que se distanciam muito de qualquer lamento.
Entre 2007-2008 é lançado o primeiro trabalho em parceria da cantora Juçara Marçal e do compositor e violonista Kiko Dinucci, o álbum “Padê”. O título do trabalho remete diretamente – para iniciados – a Exu. Padê, que significa em iorubá “encontro”, é o rito que abre os trabalhos, no qual Exu é:
chamado, saudado, cumprimentado e enviado ao além com uma dupla intenção: convocar os outros deuses para a festa e, ao mesmo tempo, afastá-lo para que não perturbe a boa ordem da cerimônia com seus golpes de mau gosto (VERGER, 1981, p. 79).
Padê não é apenas o nome do álbum, mas é também a abertura do trabalho, é a evocação de Exu, é nome da faixa de abertura na qual Juçara Marçal canta:
Abre o caminho
Sentinela está na porta!
Abre o caminho
Pro mensageiro passar!
O álbum assinado pela dupla Marçal & Dinucci dialoga com o samba e os demais ritmos populares brasileiros que descendem do legado africano, como o jongo. Não há menção a nenhum orixá, especificamente, o nome de Exu não chega a ser dito, mas a segunda faixa é dedicada a “São Jorge”, com o qual o orixá Ogum foi sincretizado, ou ainda a canção que versa sobre o mito da Cabocla Jurema.
Em 2011, os dois parceiros mais o saxofonista Thiago França lançam o álbum “Metá Metá”. Lançado primeiramente na internet foi lá mesmo que o disco foi distribuído e divulgado, até ganhar os palcos e então a venda física do CD. Ele foi aclamado pela crítica como um dos melhores discos daquele ano, e a menção aos afro-sambas era recorrente na maior parte das críticas e das resenhas.
A lembrança não é de todo descabida. Os elementos são muitos: a agressividade precisa do violão que não é só afro; a menção ao universo dos orixás; os metais costurando casamento das frases melódicas da voz com o violão imponente e a força dos batuques.
Mas se num primeiro momento a semelhança se mostra, as diferenças são também evidentes, a começar pelo óbvio, a própria conjuntura sócio-histórica de ambos. Certamente um projeto como Metá Metá é herdeiro do movimento iniciado pelos afro-sambas, mas seu chão histórico é outro, que não a indústria fonográfica carioca e o prestígio do letrista, poeta consagrado e então diplomata, mas sim o cenário, também fértil, da música independente paulistana. Mais que Baden Powell, Kiko Dinucci afirma ter ouvido muito mais Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. A lírica de Dinucci está mais próxima da crônica da vida paulistana do que do samba carioca. Rafael Galante (2011) chega a situar Dinucci na tradição de Cornélio Pires e seu trabalho como cronista:
Entendo que a diferença do tipo de música que aqui chamamos de crônica urbana para as outras seja justamente o fato dela surgir a partir dos conflitos provocados pela modernidade, suas contradições, angústias, traumas, a violência do progresso, ainda que o eu-lírico não seja necessariamente urbano, como no caso das composições de Cornélio. [...] É impressionante pensar como a música de São Paulo é marcada pela crônica da modernidade, isso nos diferencia muito da música do Rio de Janeiro, ainda que essas questões também tenham tido eco por lá. Basta pensar, por exemplo, no nosso símbolo maior: João Rubinato, mais conhecido pelo pseudônimo Adoniran Barbosa. Quase todo o cancioneiro de Adoniran é cortado transversalmente por uma crônica da cidade e do progresso. O humor e a ironia sublimados pela sagacidade de Adoniran já eram a tônica de boa parte da obra de Cornélio Pires, assim como foi de todos os sucessores discípulos de Adoniran, como Paulo Vanzolini, Carlinhos Vergueiro, Eduardo Gudin e, mais recentemente, Itamar Assunção e as músicas do Premeditando o Breque, com “São Paulo São Paulo” e o irresistivelmente irônico verso “É sempre lindo andar na cidade de São Paulo”. Quando Kiko Dinucci constrói seu cancioneiro a partir de um vasto repertório aprendido das culturas tradicionais de São Paulo e o transforma em belas crônicas para nos dar mostras de suas angústias que surgem na megalópole paulistana, ele não está apenas demonstrando a criatividade da nova geração e sua capacidade de ler os dilemas contemporâneos, ele está se conectando diretamente a uma vastíssima tradição crítica formada por Cornélio Pires, Adoniran Barbosa (...). (GALANTE, 2011).
Em Metá Metá, o cronista Kiko Dinucci aparece na primeira canção de sua autoria, com Rodrigo Campos, “Samuel”89. Ironicamente, esta é uma música a que os críticos sempre remetem aos afro-sambas. Os orixás aí não figuram, logo podemos já compreender tal “conceito” num sentido mais amplo, muito possivelmente relacionado à batida do violão de Baden. A canção mais próxima das composições conceituais de Vinicius e Baden é, indiscutivelmente, “Obá Iná”90, de Douglas Germano. Ali estão concentrados todos os elementos: desde a narrativa sobre Xangô, os metais, os tambores. A narrativa desta canção preza por enfatizar os temas presentes na narrativa mitológica de Xangô, orixá da justiça, do fogo e do trovão, mas ao mesmo tempo num tom de desafiar e questionar uma submissão cega à autoridade do orixá.
Fato novo que “Metá Metá” traz é a presença de narrativas de orixás não tão populares e/ou cantados nas canções de “Metá Metá”, como a canção “Oranian” (Kiko Dinucci e Douglas Germano), menção ao pai de Xangô, e o instrumental “Obatalá”,uma das denominações de Oxalá (Kiko Dinucci).
Douglas Germano autor de “Obá Iná” lançou neste mesmo ano o álbum “Orí” que significa cabeça em iorubá. Com maiores influências do samba e suas sonoridades do que propriamente o “Metá Metá”, o disco também foi em muitas resenhas associado aos afro-sambas de Baden e Vinicius.
É interessante notar nesses trabalhos de Dinucci, Germano, Marçal e França o uso de expressões em iorubá: Metá Metá tem dois significados correntes, um é usado para designar as divindades “metade-metade”, como é o caso de Ogum Xoroquê, ou ainda orixás que misturam parte masculina e feminina, ou ainda são metade divindade e metade humanos. Entretanto, e é este o sentido do título do álbum, cuja autoria é de fato dos três:
o termo metá metá, na língua Iorubá, falada pelo grupo étnico africano que habita a Nigéria, faz referência à ideia da tríade. De acordo com o pesquisador Nei Lopes, no livro “Logunedé: Santo menino que velho respeita”, a palavra metá significa três. Assim, metá-metá pode ser traduzido, em um sentido mais próximo à tradição africana, como a síntese de três elementos em um. (DESMONTA, 2011, s/p)
Uma das explicações possíveis para as distinções entre estas obras recentes e os afro-sambas seria o fato de que tanto Kiko Dinucci quanto Douglas Germano tem uma relação de devoção, são praticantes e conhecedores das religiões dos orixás.
O documentário citado há pouco “Dança das Cabaças – Exu no Brasil” foi idealizado e dirigido pro Kiko Dinucci. O filme é fruto das inquietações do compositor em relação a uma compreensão confusa e difusa do(e) que(m) seria e significaria Exu durante as pesquisas musicais que o violonista realizava nos terreiros de São Paulo.
O documentário é, segundo seu diretor, uma investigação poética, de caráter autoral, feita com recursos escassos. A alcunha “Exu no Brasil” é um tanto exagerada, e é o próprio Kiko Dinucci quem admite isso no blog oficial do projeto, já que todo o material foi recolhido no estado de São Paulo, principalmente na Grande São Paulo. Entre os entrevistados estão membros de “diversas vertentes das religiões afro-descendentes, dos candomblés (de tradição Nagô, Gege, Bantu), Tambor de Mina, passando pela Umbanda e Quimbanda” (DINUCCI, 2008, s/p), além da participação de dois estudiosos.
O filme começa com as paisagens urbanas da Grande São Paulo e com o áudio de depoimentos que falavam e/ou se recusavam a dizer o que elas entendiam por Exu. As respostas eram as mais diversas, mas em sua maioria associando-o ao “coisa ruim”.
Ao longo do documentário as características de Exu, tal como foram sintetizadas acima por Antônio Risério (1996), vão sendo confirmadas, tal como contexto histórico no qual seus “atributos originais” passam a ser “ocultados”, indo de princípio da vida à personificação do mal.
A diferença da perspectiva de tratamento de Exu em “Padê” em “Lamento de Exu” pode ser explicada, aparentemente, por um maior conhecimento de Dinucci sobre o orixá do que de Baden Powell (e Vinicius de Moraes). Olhemos, entretanto, mais de perto a questão.
Durante a década de 1960 vivia-se um momento específico da história da sociedade brasileira e sua relação com as religiosidades afro-brasileiras: o candomblé, se deslocando gradativamente da sua Bahia mitologicamente fundadora para ganhar, principalmente a partir dos anos 1960, a metrópole paulistana (ver PRANDI, 1996, p. 15 64), mas com seus símbolos sendo ainda “positivados” (justificados) perante a sociedade, dentro da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária sobre a qual já nos demoramos aqui. Essa perspectiva de busca e ida ao povo (e aos elementos que constituíssem as “raízes brasileiras”), muitas vezes idealizado, visto de fora, tem os seus limites e marcam suas canções. Pudemos vislumbrar como isso aparece na própria poética de “Canto de Xangô”.
Reginaldo Prandi (2005) discorrendo sobre a relação entre música ritual e a música popular menciona a importância da divulgação através da música popular na inserção do candomblé em São Paulo e em demais regiões do país em que era pouco (ou nada) conhecido (PRANDI, 2005, p. 214). E neste sentido, lamentando-se ou não, a obra de Baden Powell e Vinicius de Moraes contribui para tal processo.
No espaço de tempo entre os afro-sambas e os trabalhos de Dinucci, ocorre uma série de acontecimentos que fazem com que os lugares no tempo e no espaço de produção sejam muito distintos. Entre as décadas de 1970 e 1980 é gestado o Movimento Negro Unificado, principalmente por uma juventude negra escolarizada, com uma perspectiva combativa, colocando em questão o mito da democracia racial, a ideologia da mestiçagem e, sobretudo, do embranquecimento. Antônio Risério (2007) pontua que para o MNU “a emergência de um Brasil Negro deveria estar assentada em dois supersignos da história e da cultura negras em nosso país: o quilombo e o candomblé. Zumbi e Xangô.” (RISÉRIO, 2007, p. 60). Zumbi era o sinônimo da resistência, do combate e Xangô reforçando a imagem combativa do orixá guerreiro e um dos mais populares do imaginário brasileiro, ao lado de Iemanjá.
Para se ter uma noção do impacto dessa nova perspectiva do movimento negro na virada dos anos 1970 para os anos 1980, é neste contexto que nascem as primeiras comemorações do Dia da Consciência Negra, comemorado no dia 20 de novembro, aniversário de morte de Zumbi, rei dos Palmares. A data da abolição da escravatura, o 13 de maio, passava a ser questionada, visto que a liberdade concedida não havia de fato livrado a população negra das injustiças sociais causadas pela escravidão. A questão era combater a perspectiva da concessão e salientar a capacidade de luta, organização e resistência da população negra, que o Quilombo dos Palmares representava.
Data também dos anos 1970 os ecos, reverberações e manifestações do movimento Black no Brasil. O Black Power91 impactava a juventude negra brasileira, assim como as palavras de Luther King. Ocorreram nesse momento também as independências dos países africanos de língua portuguesa: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Na zona norte do Rio de Janeiro aconteciam os bailes à base de soul music. Os bailes que também estarão presentes em São Paulo e na Bahia.
Salvador nesse período passava por um “criativo processo de reafricanização carnavalesca, com o renascimento dos afoxés e o surgimento de um novo elemento estético-cultural na folia, o chamado ‘bloco afro’” (RISÉRIO, 2007, p. 373), cujos exemplos são o Ilê Ayê e o Olodum. Tal reafricanização ultrapassa o plano puramente musical, ganhando os corpos dos jovens, transformando seus cabelos, vestimentas, suas danças, sua atitude.
É também no começo dos anos 1980 que acontece o “Manifesto das ialorixás baianas contra o sincretismo”, publicizado logo após a II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura (Controc). O candomblé sempre teve uma estreita ligação com o catolicismo e o movimento, que envolvia principalmente as nações jeje-nagô, sinalizava um processo de reafricanização do candomblé que ultrapassaria as questões baianas, cujo sincretismo católico estava por demais arraigado na trajetória das mais famosas e prestigiadas ialorixás, indo ecoar em São Paulo, cidade que, como já apontamos anteriormente, teve um crescimento vertiginoso da religião durante os anos 1960. Segundo Josildeth Gomes Consorte (2010), que problematiza essa questão: o “antissincretismo permanece como um signo de luta do negro contra a exclusão e, sem dúvida, tem contribuído muito para a sua auto-estima, para a afirmação de uma identidade mais fortemente alicerçada em raízes africanas” (CONSORTE, 2010, p. 233). Vale lembrar que com a expansão do candomblé para o sul e o sudeste, a religião deixa de ter um caráter de resistência étnica, mas vai tornando-se cada vez mais universal.
De alguma forma, esse processo de reafricanização do candomblé vai ecoar no próprio meio acadêmico. Se por um lado temos a partir da década de 1970 uma crescente investigação das contribuições religiosas centro-africanas, por outro lado tem-se um aprofundamento das pesquisas do panteão iorubano.
Um exemplo claro desse movimento que atrela conhecimento acadêmico e a própria prática religiosa é a coletânea publicada pela EDUSP em 2010, “Dos Yorùbá ao Candomblé Kétu: origens, tradições e continuidades”, organizada por Aula Barreti Filho. Os vocábulos iorubanos são todos escritos com a grafia iorubá (yorùbá) e não em português, tais como Òsóòsì (Oxóssi), Èşù (Exu), Òrìşà (Orixá). Há uma nota introdutória explicando o caráter tonal da língua “sendo necessário ‘cantar’ suas palavras corretamente para se expressar por meio dela” (VERGER apud BARRETI, 2010, p. 21). Uma mesma palavra entoada de formas diferentes tem significados completamente distintos entre si.
O artigo de Luiz L. Martins, que abre a coletânea, trata justamente sobre Exu, ou melhor dizendo, Èşù. Na nota de rodapé do nome de cada um dos autores dos artigos da coletânea é informado não apenas a formação acadêmica, mas também se ele é um iniciado e em qual casa. Na caso, Luiz L. Martins se apresenta como “pesquisador da religião dos Orixás e da afro-brasileira; iniciado no rito do batuque Rio Grande do Sul. O título do artigo é: “Èşù Òta Òrìşà: Um estudo de Oríkì” (MARTINS, 2010, p. 25-74). Sua proposta, tal qual o nome indica, é problematizar as traduções e interpretações do polêmico oriki sobre Exu, traduzido do iorubá para o inglês e daí para o português como “Exu, o inimigo dos Orixás”. Tal oriki teria servido como base para o livro de Peter Ade Dopamu “Exu, o Inimigo Invisível do Homem” (1990).
A partir das análises cuidadosas das traduções e a observância entre a semelhança aparente entre os vocábulos ota (pedra), òta (um campeão do jogo de ayó) e òtá (inimigo), Martins propõe a interpretação do oriki não como inimigo, mas sim como “Orixá Vencedor”.
A postura do livro de assumir o cuidado com os vocábulos iorubanos, de identificação dos autores não apenas como intelectuais, mas sobretudo como praticantes (lembrando que o texto de contracapa é de Mãe Stella de Òsóòsì, Sacerdotisa do Ilé Àse Òpó Àfònjá) é uma postura de engajamento e uma clara postura política salientada por um dos trechos da conclusão do artigo de Martins:
Quero sugerir nesta conclusão que a dessincretização de Èşù da figura mitológica do diabo deve começar pelos sacerdotes das religiões afrobrasileiras, eliminando de seus templos toda representação visual e instrumentos de culto que lembrem sua figura, passando pelos editores que devem evitar editar livros que falem de Èşù quando nessas obras ele estiver associado ao demônio cristão. (MARTINS, 2010, p. 70).
A obra de Kiko Dinucci está inserida nesse momento histórico e é herdeira de uma postura mais combativa tanto do movimento negro em geral, quanto do candomblé. Sua obra não está dialogando com o clima nacional-popular da década de 1960, no qual são gestados os afro-sambas.
A estrutura de sentimento na qual estava envolto Vinicius de Moraes pensava-agia-sentia em termos de grandes projetos de Brasil, era futuro de um momento no qual havia a perspectiva de uma iminente revolução brasileira, que sofre suas derrotas com a ditadura militar. Pensar em termos de obras autenticamente brasileiras, representativas de uma brasilidade como princípio era algo comum a uma determinada camada de intelectuais e artistas à época. Não à toa Vinicius de Moraes na própria confecção do álbum faz suas afirmações grandiloquentes, considerando-o um marco não só na música brasileira, mas da música popular mundial.
Essa estrutura de sentimento sofre seu esgotamento na década de 1970 e projetos de nação, as perspectivas de criações estéticas que dessem conta de um sentido de brasilidade, de um projeto de futuro para o Brasil passa a ficar cada vez mais escassa.
De fato não está no horizonte da música independente paulistana essa perspectiva de nação. É um movimento ainda em processo, o que de fato perpassa essa geração de músicos no qual estão inclusos Dinucci, Douglas Germano, Juçara Marçal e Thiago França é uma estrutura de sentimento diversa e que não conseguimos nesse momento ainda de vivência e sentir-pensar captar e fixar em algum tipo de generalidade.
Dinucci e Douglas Germano tiveram sua formação musical vinculada à pesquisa e à prática da música na periferia paulista. Não à toa, mesmo que sem um grande projeto de revolução social no horizonte, as canções dessa geração, no qual podemos inserir nomes como Rodrigo Campos, como o próprio rapper Criolo, que tem uma parceria com Dinucci num dos álbuns mais bem criticados de 2011, o “Nó na orelha”, estão sintonizadas com as narrativas da periferia paulistana, o abismo da diferença social que perpassa a vivência dos espaços na metrópole.
Há dentro dessa geração diferentes posturas em relação aos nomes da MPB dos anos 1960. Muitos deles os reivindicam como referências importantes. Outros traçaram percursos outros, atravessando a chamada geração dos malditos e da vanguarda paulistana e chegam a ter uma certa postura de “combate” ao endeusamento da geração dos anos 1960. O próprio trio “Metá Metá” se esforça todo o tempo nas entrevistas sobre o álbum de 2011 para diferenciar-se dos afro-sambas e muitas vezes afastar-se dos afro-sambas.
O fato é que por mais que não tenha bebido diretamente dos afro-sambas, o álbum de Baden Powell e Vinicius de Moraes foi um dos primeiros e de maior impacto da época de um trabalho que desse centralidade à influência das religiosidades de matriz africana. Com um ambiente de sentir-pensar propício a essa confluência entre canção popular e busca de materiais “populares” na construção de algo “autenticamente brasileiro”, fazendo a ponte do “passado” a uma construção de modernidade genuinamente brasileira, a partir de interesses não apenas de conteúdo, mas de forma, de trabalho e recriação estética, principalmente por parte de Baden Powell, os afro-sambas deram um primeiro passo. Em meio à tentativa e ao erro, a intensidade da experiência de seus compositores no cotejo com o que chamaram de afro criou um álbum ensaístico, mais do que um tratado sistêmico, quase-científico, inquestionável sobre o universo com que conversaram.
O álbum que lidou todo o tempo com o paradoxo de ser e não ser ao mesmo tempo, o “é, não sou”, de “Canto de Ossanha”, completa o ciclo deixando-o em aberto. Como antevira muito sabiamente o crítico Juvenal Portella92. Enquanto Vinicius de Moraes bradava entusiasmado na contracapa do disco que o álbum era a “última resposta avassaladora à mediocridade musical que assolava o mundo”, o crítico do Caderno B do Jornal do Brasil, concordava com o gosto de novidade do álbum, mas advertia que aquele era na verdade “o ponto inicial”.
De alguma maneira, a visão de Portella apontava para o caráter ambivalente que havia no próprio paradoxo de Exu encerrar aquele álbum: ele não era propriamente um fim, mas a abertura de um caminho...
92 PORTELLA, Juvenal. Os caminhos do Afro-Samba. In Jornal do Brasil, Caderno B, 30 de setembro de 1966, página 2.