Páginas

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

AfroSampa - ou as travessuras de Exu.

Mesmo porque Exu é capaz de,
atirando uma pedra hoje,
acertar um pássaro ontem.
(Antônio Risério,
citando um oriqui de Exu)
Foto de Divulgação:Leco de Souza




Nesta quarta e quinta-feira acontecem as apresentações do show "Afrosampa", onde o ponto de partida é uma releitura urbana(?) dos afro-sambas de Vinicius e Baden Powell e paralém do álbum. Não é forçar o argumento dizer que o show contempla a estrutura de sentimento na qual o disco está inserido, já que estarão presentes ali também Moacir Santos, Edu Lobo e mais outros compositores e suas canções contemporâneas aos afro-sambas.



Dois lugares distintos no tempo e no espaço. Duas propostas sonoras, projetos e ideologias diferentes vão estar dividindo o mesmo palco nesses dias. E é com muita alegria que vou testemunhar o encontro.

Confesso que dos nomes citados, eu conheço mais os trabalhos de Kiko, Juçara, Criolo e Marcelo Cabral. Mais que conhecer, o acontecer desse show contempla desdobramentos da minha pesquisa sobre os afro-sambas de mais de quatro anos, que virou a dissertação "É, NÃO SOU: ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço". 

Ano passado durante um congresso de Hip Hop aqui em São Paulo apresentei a comunicação: "A vez do rap no morro: os rappers relendo as canções de Vinicius de Moraes", publicada nos anais do congresso e também neste blog.  Neste eu comento a intervenção de Criolo (à época ainda Doido), Terra Preta e Rael da Rima no programa Som Brasil, procurando desvelar os novos sentidos dados às canções "Samba da Bênção", "O morro não tem vez" e "Canto de Ossanha" e perceber o parentesco da marginalidade da obra "afro" de Vinicius e a marginalidade do rap.

Ainda no ano passado apresentei a comunicação "Ressonâncias: dos afro-sambas ao Metá-metá", no 2º Congresso Internacional do Samba, no Rio de Janeiro. Lá eu fora alertada por meu colega citado no artigo, Rafael Galante, de que os Metás não apreciavam muito a aproximação que eu estava fazendo. Eu já o sabia. Desde a descoberta do álbum, que aconteceu durante a pesquisa dos afro-sambas, eu o ouvi com muita paixão e entusiasmo e pesquisei muito as entrevistas e resenhas espalhadas por aí sobre o trabalho de Juçara, Dinucci e França. - Não fora apenas eu quem percebera um diálogo que atravessava tempos e gerações. O artigo, também publicado aqui no blog, procura aproximar, mas também, e sobretudo, justamente apontar as diferenças entre não apenas as sonoridades, as propostas, mas também dos tempos históricos distintos. Essas diferentes estruturas de sentimento.

Grande parte da sua argumentação, compõe o ensaio sobre "Lamento de Exu" presente na dissertação e também publicado aqui no blog. Ali, a brisa no entanto é maior e mais ampla já que o ponto de partida é a última faixa do álbum - que duvido muito que vá aparecer no repertório dos shows dessa semana justamente porque é onde o choque entre as concepções ficam mais evidentes: enquanto Kiko e Juçara lançam seu primeiro disco juntos com o nome Padê - em clara referência a Exu, Baden Powell relega a ele um lamento, sem letra, no final do álbum.
(isso porque à época da defesa eu ainda não comentara o Metal Metal em que Exu é louvado em iorubá na abertura do disco!).

Aliás, se intencionalmente ou não, Metal Metal é quase um anti-os-afro-sambas. Explico: além de abrir com Exu, que não se lamenta, o disco dá continuidade à proposta do primeiro álbum de ultrapassar as narrativas dos orixás mais conhecidos, como Baden e Vina fazem entoando Iemanjá e Xangô, explorando sonoridades que extrapolam o samba. Se em "Tristeza e Solidão" o babalaô  - figura já extinta no Brasil - é citado para curar um coração partido, a canção "Orunmilá" traz a própria divindade da profecia, em cuja letra há o empoderando o sujeito "Se o/presente já morreu/Um segundo atrás/Quem matou fui eu", assim como em "Obá Iná", de Douglas Germano, presente no primeiro disco dos Metá, já tínhamos um devoto de Xangô que sorri em "vez de se curvar"
E fecham emblematicamente com "Tristeza Não", de Itamar Assumpção. Túlio Villaça mesmo já disse que os afro-sambas poderiam se chamar "amor e dor", visto as inúmeras vezes que o par dialético aparece na lírica das canções. Metá Metá canta como quem resiste dizendo que tristeza não.
Se eu disser que discordo de Vinicius e sua dialética do "amor e dor", vou estar mentindo (e haja dissertação pra contar por quê). Mas consigo ler esse "Tristeza não" ecoando, por exemplo, nas justas e criativas intervenções que aconteceram em Belo Horizonte no mês do centenário do coletivo "obscena agrupamento independente de pesquisa cênica"  que dentre muitos projetos fizeram o "remexendo vinicius", conversando-atualizando-crítica com/a obra do poeta. Numa das intervenções na Praça da Liberdade elas pedem "Sem Sofrer".

Mas são as travessuras do menino Exu. 

De tanto marcar território, Juçara e Kiko estão aí nesse show que por mais que não seja só Vinicius e Baden, os contempla como centro da órbita.
Eu concordo com um crítico musical contemporâneo dos afro-sambas, Juvenal Portella, que discordava de Vinicius de Moraes quando dizia que os afro-sambas era um ponto final, mas sim um ponto de partida, um começo fecundo. Se ele assim o era, Exu está ali, ao final, abrindo caminhos. "A intenção do autor é atropelada pela força da obra." para me citar, a partir do texto da conclusão da dissertação, cujo excerto segue:

"O próprio conceito criado por Vinicius de Moraes, aparentemente, de modo espontâneo e sem grandes pretensões ao gritar para Baden: “Poxa, Badinho, esses são os afro-sambas!”, se visto a partir de onde olhamos, extrapola as intenções do letrista. A cisão do hífen e a sua aparente redundância: Afro e o Samba. Uma cisão que é inclusiva. Ao separar, amplia-se o movimento. O hífen aponta para o destaque do samba – o gênero debatido, defendido, autêntico, mas também para fora dele. O samba pode ser mais que os orixás. Afro pode ser mais que o samba.

Por um lado há o destacamento do samba do afro. Salientar que o samba é “mais” do que a influências africanas, o papel da classe média (branca) urbana na construção do samba como um representante legítimo da brasilidade mestiça. Do samba que vira samba-canção, bossa nova.

Mas há que destacar que o afro do samba é também uma possibilidade de libertar o afro da ideologia de conciliação de classes que foi construída concomitantemente à afirmação do samba como símbolo nacional de um país mestiço.

Desta forma, destacar o afro é um movimento que ultrapassa a própria intenção da criação do conceito, fazendo eco com os processos de reafricanização e valorização das narrativas afrodescendentes. É o anúncio de que um afro começa a questionar a ideologia da mestiçagem.

Um afro que fala a partir de sua própria voz, uma voz que quer fazer ecoar as vozes de seus ancestrais míticos. A música é um dos elementos mais fortes de laços entre essa imensa nação filha da diáspora negra. As sonoridades da diáspora africana costurando uma forma de identidade pan-americana.

São os orixás cantados hoje não apenas ao som do samba, mas do rap e do afrobeat. É como ouvir Criolo e Kiko Dinucci cantando “Mariô” - um rap sampleado, com atabaque, cuíca e cavaquinho. O refrão é cantado em iorubá, como o título, “mariô” – folha nova da palmeira de dendê, presente na mitologia do orixá homenageado, Ogum, que constrói e destrói, mas preserva os lugares marcados com mariô. O rap de Criolo vai da roda viva de Chico Buarque à louvação deste movimento afro, que é mais que samba, e mais que Brasil: “Atitudes de amor devemos samplear/ Mulatu Astake e Fela Kuti escutar”.


O descompasso de tempos, com temporalidades em contraponto, Vinicius de Moraes quis que os afro-sambas fossem a resposta definitiva e, entretanto, construiu um álbum ensaístico, muito mais do que ponto final, um ponto de abertura às mais diversas (e inimaginadas) possibilidades.

A ética e a estética dos afro-sambas expressos na lírica dilacerada de Vinicius de Moraes e no trastejo violonístico de Baden Powell, reverberam-ressoando formas e sentidos em aberto e coam no tempo que insiste, porque existe um tempo que há devir."  (MORAIS, Isabela. 2013, p. 234-235. mimeo.)



E que venha o show. 
Afro-Sampa. Justo Sampa, de São Paulo, que um dia, mesmo arrependido depois, Vinicius de Moraes jurou que fosse o túmulo do samba...