Páginas

domingo, 24 de novembro de 2013

são passos.



Foto Clandestina
A primeira vez que assisti ao show do Passo Torto foi lá na Casa de Francisca. Eu ainda morava em Araraquara e vim, única e exclusivamente, para assistir ao show. Há algum tempo encantada com os barulhos paridos pelos quatro moços de múltiplos projetos nessa cidade cinza, eu aproveitei a deixa de novos amigos e vim. É de fato uma casa. Pequena. Aconchegante. Mas que presa pelo espetáculo. Não se serve nada quando começa a apresentação. Fotos proibidas (eu vi uma moça fotografando e fiz duas clandestinas! rá). Silêncio total e absurdo. Mas o quarteto ali está literalmente em casa. Entre uma música e outra, alguma história. As piadas com a ausência dos discos pra venda e a divulgação do site Umquetenha para baixá-los e a alfinetada certeira nos "grandes da mpb" por Kiko "O Chico não disponibiliza lá...". Mas eis que eu ouço uma reclamação de que ninguém cantava junto as letras das canções... Poxa!! Eu até queria. Com todas as letras de cor, fiquei sussurrando ali... mas me senti totalmente constrangida pelo local e não saiu um risquinho de voz.

Já habitante da pauliceia, eu fui caminhando da (já) saudosa rua Clélia até a Serralheria ali na Guaicurus.  A Serralheria é um terreiro. Um terreiro numa sexta-feira a noite. O palco pequeno, o público entre sentado e em pé. Mas estávamos próximos, público e artistas. Com alguns meses de lançamento apenas, o show do álbum "Passo Elétrico" ainda tinha gosto de estreia. O disco se confundiu com junho, com as ruas cheias, em choque, em transe. O show em ciclo abria e fechava em barulho, dissonância. "Passarinho esquisito" abriu para "Um homem só" e sua bonita solidão, compartilhada com as mulheres, "Isaurinha", na crônica recheada de malícia nos sussurros de Rodrigo, entre Belém, Natal, Portugal, com vergonha do amor e "Helena", nas confissões da cidade que é um rádio por dentro, de prédios que têm varizes, bronquite e que também morrem. Na retomada do álbum anterior a música que de fato é uma linha de continuidade entre um álbum e outro: "A música da mulher morta" - com direito a piadinhas de música de sucesso... o show fluiu entre a belíssima "Tempestade" de Fróes e Cabral que, dessa vez, além de ter um encarte só pra si, dava o gosto de sua voz. Do disco antigo "Da vila guilherme até o imirim" tentamos puxar um coro, Rômulo até deu a deixa..., "Sem Título, Sem Amor", assim como "A música da mulher morta", era canção que ligava um álbum noutro, a proposta da ironia, da frieza, do escárnio, da frieza, da estranheza da existência torta e cinza, que atinge seu ápice no sambão de cavaco e violão, Bis do espetáculo, "Rá rá rá":
Desculpe a dignidade
De lhe dizer atrocidades
Mas essa é a minha maior qualidade
Deixa eu gozar
Enquanto eu morro
De tanto rir

Rá rá rá

e "Cidadão" (uma das canções mais bonitas, na minha humilde opinião.)




Foto de Alessandra Cabral
Ontem foi a terceira. E nada de casa, terreiro. Era palco. desses com cortina vermelha, paredes brancas com detalhes dourados. Mas com vontade de ser descolado, com as cadeiras de plástico brancas e uma luminária de led, em pleno contraste com a pompa do lugar. E no Centro. Um prédio construído dentro da ideologia - reacionária - do "Revitalizar o Centro de São Paulo". Prédio modernoso, pensado por diversos arquitetos e zás e zás e para ser um anexo ao Theatro Municipal  - para "fazer companhia" ao solitário centro de cultura do centro da cidade.
Escorrendo contradições, por suas paredes e vidros, o evento que ali acontecia era o Conexão SP (e acontece ainda enquanto escrevo), patrocinado por operadora de celular. O apresentador se gabava ao nos lembrar de que estávamos no Centro. E de fato, estávamos e tudo de graça. Mas os muros de Samuel são construídos dentro - é "Samuel" apareceu no teatro nas vozes de Kiko e Rodrigo. O evento divulgado na internet solicitava que imprimíssemos os ingressos - gratuitos. Seguranças imponentes  - simpáticos também, devo dizer que sorri muito pra linda negra que se chateava por ter que me revistar a cada entrada e saída - eram o aviso: aqui não entra qualquer um. "Diz Samuel, que que cê pensou?"

Atrasos. Eu pensei que não veria o quarteto, já que cheguei pralá do anunciado - mas, como sou besta! festival: atrasos. Mais de horas. Entramos no teatro e então a pergunta "Gente, já pode começar?"
A sala de concerto é invadida pelos barulhos de "Passarinho esquisito". E o show vai. Muita luz, pouca luz, luz que não dialogava. Diálogo em mímica com a mesa: festival, som nunca nos eixos de -cara "abaixa aumenta" dedo apontado pra Marcelo - de fato baixo, baixo. Ao longo do show, entre uma canção e outra, as falas diretas com a mesa.
- mas pro público, os dizeres das canções. apenas.

Há quem desqualifique por aí a chamada música barulhenta. Mas por mais que eu quisesse um show do Passo Torto em pé, dançante - eu não me aguentava nas cadeiras e liguei o foda-se cantando todas as letras que sabia! - faz sentido que aquele show aconteça ali, sentados, assistindo. São barulhos em texto e contexto, com sentido, com tempo e razão de ser, cada um dos detalhes. E quem conhece as canções - sim, CANÇÕES - espera por aquele riffie naquela hora e os cantarola junto. - Exige-se concentração. E estarem à vontade, com som, retorno e público.

Era o festival. Com shows acontecendo simultaneamente. A contradição do show e do lugar: as pessoas se movem. Levantam. Deixam o lugar, o show: "Não pode sair durante o show pessoal", Marcelo disse antes de começarem justamente "Samuel". Aplaudidos logo na introdução e ovacionados no fim. "Viu? Quem saiu perdeu", dizia Kiko.

Mas eu, euzinha aqui, senti falta do estarem em casa como no terreiro da francisca ou da serralheria. Pra gente não teve nenhum mísero "boa noite" - tudo bem, vai. o clima do show. mas um boa-noitezinho?

Foto de Alessandra Cabral
Foi longe de ser o melhor show deles e eles sabem disso: a falta do cavaquinho no retorno e a letra que se erra, o menino que não entra na estrofe certa pra fazer o dueto. Mas ainda assim, um arrebatamento, imenso. Gente que nunca os tinha visto ao vivo, saiu dali embasbacado. Feliz eu fiquei por ver uma menina de sei lá eu, 3 anos, sendo chacoalhada pelos pais enquanto a guitarra do Kiko abraçava em microfonia o retorno.

eta menina de sorte de ouvir essas coisa assim novinha.

passo torto ao deus dará dos Cidadão Esquizofrênico ali bem perto, no Centro. tão perto e tão longe da música enformada da dor encarnada de existir na contraditória são paulo. são palcos. são passos.

ps.: e é claro que eu sambei "Rarará", de pé e sem pudor em pleno teatro. que agora não regulo mais mixaria.