RESSONÂNCIAS: DOS AFRO-SAMBAS AO METÁ-METÁ*
Isabela Morais[1]
RESUMO:
Este ensaio reflete a respeito de dois álbuns distantes no tempo e no espaço e
que buscam mesclar em suas canções as heranças do samba com as narrativas
oriundas das religiões de matriz afro-brasileira. Um é de 1966 "Os afro-sambas
de Baden e Vinicius", considerado pela crítica especializada como um
divisor de águas da Música Brasileira. O segundo é o recente disco da safra de
música paulistana independente "Metá-metá" (2011), de Kiko Dinucci,
Thiago França e Juçara Marçal. Busca-se aproximar os álbuns e ao mesmo tempo
revelar suas peculiaridades, levando em conta a importância da matriz
afro-brasileira na constituição da história canção popular brasileira.
PALAVRAS-CHAVE:
afro-sambas, Metá-metá, religiões afro-brasileiras, canção popular brasileira
ABSTRACT: This essay
reflects on two albums distant in time and space and that seek to merge into
their inheritances samba songs with narratives arising from the religions of
african-Brazilian. One is the 1966 "Os afro-sambas Baden e Vinicius,"
considered by critics a mark in Brazilian music. The second disc is the latest
generation of São Paulo independent music "Meta Meta" (2011), Kiko
Dinucci, Thiago França and Juçara Marcal. Seek to approximate the albums while
revealing its peculiarities, taking into account the importance of the matrix
african-Brazilian constitution in the history of Brazilian popular song.
KEYWORDS:
afro-sambas, Metá-metá, afro-brazilian religions, brazilian popular song.
[ressonância: (lat. Ressonantia; ing., fr. Resonance) Capacidade acústica de transmissão de
vibrações sonoras por afinidade de um objeto a outro. A ressonância é um efeito indesejável quando
determinada nota musical faz vibrar um objeto, móvel ou janela, criando ruído.
Ver também SIMPATIA]
OS AFRO-SAMBAS EXISTEM?
Em janeiro de 1966 entravam no
estúdio da pequena e ousada gravadora Forma
– do produtor Roberto Quartin – o violonista Baden Powell, o poeta e compositor
Vinicius de Moraes, acompanhados pelo iniciante grupo de vozes femininas, Quarteto em Cy, além do renomado
maestro, Guerra-Peixe, que regeu diversos instrumentistas, além de alguns
amigos – e as respectivas namoradas – da dupla de compositores. O estúdio
estava ainda alagado pelas fortes chuvas que castigaram o Rio de Janeiro
naquele mês, como nos recontam as manchetes do Jornal do Brasil. Dali a oito
meses seria lançado um longplay (LP),
intitulado qual “Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius”.
O álbum “Os Afro-Sambas de Baden
e Vinicius” (1966) é considerado pela bibliografia sobre a história da música
popular brasileira como um “divisor de águas” desta. O sociólogo Reginaldo
Prandi (2005) fez um importante levantamento sobre a presença dos orixás na
canção popular ao longo do século XX, que conta com aproximadamente mil
canções, registradas em gravações. Desde “o primeiro samba” gravado, o polêmico
“Pelo Telefone”, no qual aparece menção ao “Feitiço” até as gravações mais
recentes, o sociólogo toma como referência os afro-sambas para afirmar que ainda
hoje os orixás estão presentes na nossa música, ao passo que as próprias
religiões se beneficiam dessa presença na canção popular, desfrutando da sua
visibilidade e positivação.
Rita Amaral e Vagner Gonçalves da
Silva (2006) no artigo “Foi conta para todo canto: as religiões
afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro” também
destacam a presença dos afro-sambas de Vinicius de Moraes e Baden Powell como
um marco e o álbum como importante divulgador da religião dos orixás. Amaral e
Silva destacam ainda como o contato de Vinicius de Moraes com a religiosidade
afro-brasileira é sintomática da própria conversão de uma classe média-alta
escolarizada e branca a uma religião marginalizada, tida como de negros e
pobres.
José Ramos Tinhorão (1998)
afirmou, entretanto, que Baden Powell figura como “criador de uma coisa que não
existe: o chamado ‘samba-afro’”, no mesmo parágrafo em que conta que o
violonista teria sido acusado (não diz por quem...) de apropriação de termos
folclóricos, que divulgou em seu nome. O importante estudioso da história da
música popular brasileira não entra em detalhes sobre por que o tal
“samba-afro” não existe. Tinhorão tem uma obra vasta e é referência para
qualquer pesquisador que queira se debruçar sobre a canção popular no Brasil.
Entretanto, a sua percepção do movimento é bastante sectária. O pesquisador não
concebe enquanto “natural” ou possível/passível de apropriação às manifestações
culturais de um determinado grupo social (por outro). Ela é sempre indevida
e/ou demonstração da alienação de um grupo ou tentativa de usurpar de outro.
Quiçá o tirocínio de Tinhorão, em dizer que não existe “samba afro”, venha da
ideia de que o samba já é “afro” por natureza e seria impensável criar algo que
já existe.
É incontestável a origem
afro-brasileira do samba. Há toda uma bibliografia que já se debruçou e ainda o
faz a esse respeito. O samba é um gênero elástico, fruto de muitos encontros –
apropriações/objetivações – não apenas das contribuições europeias, ameríndias
ou africanas, mas um processo de síntese multideterminada das diferentes
matrizes culturais africanas que aqui desembarcaram. Ele é gestado em mutação –
e segue em mutação –, a despeito das preocupações com sua inserção nos meios de
comunicação de massa e/ou seu trânsito entre as diversas classes e grupos
sociais, dialogando criativamente com os mais diversos gêneros, linguagens e
formas musicais.
O ponto de partida de José Ramos
Tinhorão não nos contempla. Seu argumento está atrelado a um tirocínio, que perpassa
toda a sua produção, calcado em conceitos como “autenticidade”, “legitimidade”,
“aura”. Não se trata aqui de questionar se Vinicius de Moraes e Baden Powell
“podiam” ter feito aquelas canções e, mais ainda, tê-las batizado de
afro-sambas, construindo um álbum conceitual com elas. Eles o fizeram. E tal
produção ainda hoje é discutida, executada nas mais diversas versões.
“Existindo ou não”, o fato é que os afro-sambas são uma referência para a
crítica musical ainda hoje. Se non è vero – o afro-samba – è bene trovatto. Mais do que o argumento de autoridade nos interessa a
autoridade do argumento.
AFRO-SAMBAS E SEU TEMPO HISTÓRICO.
Segundo
Marcelo Ridenti (2010), o ambiente sócio-histórico em que é lançado e produzido
“Os afro-sambas de Baden e Vinicius” é gestado no período pré-ditadura militar,
antes de 1964. Ele está ligado a uma busca de valorização do povo, ligado às “raízes populares
nacionais”, para criar utopias anticapitalistas progressistas, na construção de
um futuro pautado na “revolução nacional modernizante”. O golpe de 1964 e o
AI-5 em 1968 representam quebras de expectativas e derrotas históricas para
essa estrutura de sentimento que começa a declinar ao longo das décadas de 1970
e 1980. “Compartilhavam-se ideias e sentimentos de que estava em curso a
revolução brasileira, na qual artistas e intelectuais deveriam engajar-se”
(RIDENTI, 2010, p. 87).
É essa estrutura de
sentimento de brasilidade revolucionária que perpassa as produções artísticas
de 1960, como, por exemplo, os filmes do Cinema Novo, os espetáculos do Teatro
de Arena, a canção engajada, o CPC (Centro Popular de Cultura) ligado à UNE
(União Nacional dos Estudantes).
O diálogo da parceria Vinicius de Moraes e Carlos Lyra
com a cultura afro-brasileira está imersa no engajamento político da década de
1960 (assim como algumas parcerias com Edu lobo). Muitas vezes os elementos que
remetem a tal cultura figuram apenas como secundários diante do cerne do
conteúdo da música que é a crítica à exploração capitalista, as mazelas
sociais. Um exemplo é a canção “Maria Moita[2]”
(1962), composta para o musical Pobre
Menina Rica. Reginaldo Prandi resume a música da seguinte forma:
fala
da exploração do pobre pelo rico e da mulher pelo homem. Uma canção feminista
bem antes dos movimentos pelos direitos da mulher. Gravada por Nara Leão e
depois por Elis Regina e outros, “Maria Moita” recorre a Xangô, através do
babalorixá, o pai-de-santo, para resolver as injustiças sociais, eliminando as
diferenças entre rico e pobre e entre homem e mulher, uma vez que homem e rico
não trabalham. A protagonista da letra é uma mulata, pois se diz filha de
escrava com feitor, o capataz branco. Xangô é orixá do trovão e da justiça.
(PRANDI, 2005, p. 200)
Como já fora dito, a
centralidade temática da canção não é o orixá. Xangô é evocado enquanto rei e
orixá da justiça, para intervir por aqueles que sofrem a injustiça social, no
caso dessa canção, a exploração e opressão da condição tríplice de mulher,
trabalhadora e negra.
Ainda que os afro-sambas
figurem ainda dentro do contexto ideopolítico do nacional e popular, da arte
engajada frente à ditadura civil-militar, partindo de uma perspectiva
materialista mesclada aos valores ou simplesmente fazendo menção aos
símbolos-alegorias populares, a centralidade dada à linguagem afro é de fato
algo inovador, seja na pegada do violão de Baden, seja no lirismo viniciano,
inédito à sua própria obra, até então, seja pela proposta em si de criar um
álbum conceitual dentro dessa perspectiva. Mais que conteúdo, uma forma.
Basta pensarmos na
diferença temática de “Maria Moita” (1962) e o afro-samba “Canto de Xangô[3]”.
Nesta segunda, Xangô é de fato o senhor do seu canto. A canção é uma louvação
ao orixá ainda que marcada pela singularidade do discurso de Vinicius sobre o
amor e a dor – a dialética viniciana – e a uma projeção perspectiva
sócio-histórica do negro brasileiro. A maior diferença entre as canções,
entretanto, está na própria batida. A percussão de “Canto de Xangô” está
inscrita no compasso composto de 6/16, numa síntese do compasso binário 2/4 e o
terciário 3/4, em que cada tempo do 2/4, cabe um compasso do 3/4, numa batida
que se avizinha ao jongo.
O ÁLBUM
Como álbum
conceitual é possível pensar tanto na dinâmica entre os lados, que começam
ambos com músicas agitadas e terminam com músicas mais lentas e melancólicas. O
Lado A traz uma influência marcadamente baiana: o canto aos orixás do panteão
nagô-iorubá, que, como também já vimos aqui, tiveram presença marcante na
Bahia, além da própria menção a Salvador em “Canto de Iemanjá”: “se você quiser amar, se você quiser amor,
vem comigo a Salvador para ouvir Iemanjá”.
Além da
menção explícita à Bahia, temos a influência temática importante das Canções
Praieiras do baiano Dorival Caymmi em “Bocochê”, canção responsiva, cuja estrutura
formal das frases melódicas nos remete ao balanço das ondas no seu vai e vem
“nhem nhem nhem/é a onda que vai/nhem nhem nhem/é a onda que vem...”. Ali
trata-se da “menina bonita” que quer ir para o mar procurar “seu lindo amor”.
Podemos pensar na loucura de Rosinha de Chica, personagem de Caymmi, em “O Mar”
(1954), que enlouquece na beira da praia depois que Pedro, seu marido, morre no
mar. A música introduz o tema de Iemanjá, um dos orixás mais importantes e
conhecidos do Brasil, conhecida por seu domínio do mar, mas que é também,
segundo alguns mitos, a orixá que cuida das cabeças e da loucura. O Lado A se
encerra justamente no clima sombrio e misterioso do “Canto de Iemanjá”, da
deusa-mãe dos orixás, mas também amante mortal dos pescadores, possessiva e
solitária, tanto no fundo do mar quanto no seu brilho, de Lua cheia, no céu de
estrelas.
O Lado B
é, digamos assim, mais carioca. A primeira canção “Tempo de Amor”, marcada pela
dialética viniciana (ou seja, a relação ambivalente entre amor e dor) tão
explorada seja em “Canto de Ossanha”, seja em “Canto de Xangô”, é também
conhecida como “Samba do Veloso”, pois fora composta, conforme nos conta
Vinicius na contracapa “no famoso “Bar
Montenegro”, também chamado o “Veloso”, ali na esquina da Prudente de Moraes e
Montenegro [hoje rua Vinicius de Moraes], em Ipanema”. (MORAES, 1966, s/p).
Além da
menção ao importante reduto da boemia carioca, temos também o Rio de Janeiro
presente na figura do polêmico pai-de-santo Joãozinho da Goméia, o homenageado
do “Canto do Caboclo Pedra Preta”, nome da entidade que o Joãozinho recebia.
Ainda que baiano, Joãozinho da Goméia muda-se para o Rio de Janeiro onde amplia
a sua visibilidade na imprensa brasileira nos desfiles de escola de samba,
aparições públicas e festas de gala. O samba dialoga com a própria música do
terreiro, no contraponto entre viola e pandeiro, o que nos leva à importância
da música e da dança nesses rituais, mas também na própria trajetória de
Joãozinho, como veremos com mais cuidado posteriormente.
“Tristeza e Solidão”, a última
canção do álbum, faz menção à “linha de Umbanda”, que pode ser tanto uma das
linhas do candomblé de Angola, no Rio de Janeiro, como a própria religião,
Umbanda. A temática da música nos remete a um procedimento recorrente no universo
das religiões de matriz afro que oferece serviços aos não-iniciados: a procura
da religião para a resolução de problemas amorosos. A canção cita a figura do
babalaô, que aqui também pode ser a abreviação de “babalorixá” ou à
propriamente “babalaô”, sacerdote responsável pelo oráculo de Ifá e o jogo de
Búzios.
O disco então termina com o
“Lamento de Exu” com instrumental e vocalização para o orixá mais
controverso das entidades de matriz afro no Brasil. Se na versão de 1966 d’os afro-sambas, Exu se lamenta sem palavras,
na faixa de encerramento do álbum, no início do século XXI ele tem,
literalmente, aberto trabalhos, em canções que se distanciam muito de qualquer
lamento.
LAMENTO DE EXU VERSUS PADÊ: NOVOS AFRO-SAMBAS?
Entre 2007-2008 é lançado o
primeiro trabalho em parceria da cantora Juçara Marçal e do compositor e
violonista Kiko Dinucci, o álbum “Padê”. O título do trabalho remete
diretamente – para iniciados – a Exu. Padê, que significa em iorubá “encontro”,
é o rito que abre os trabalhos, no qual Exu é:
chamado, saudado,
cumprimentado e enviado ao além com uma dupla intenção: convocar os outros
deuses para a festa e, ao mesmo tempo, afastá-lo para que não perturbe a boa
ordem da cerimônia com seus golpes de mau gosto (VERGER, 1981, p. 79).
Padê não é apenas o nome do
álbum, mas é também a abertura do trabalho, é a evocação de Exu, é nome da
faixa de abertura na qual Juçara Marçal canta: Abre o caminho/Sentinela está na porta!/Abre o caminho/Pro mensageiro
passar!
O álbum assinado pela dupla Marçal &
Dinucci dialoga com o samba e os demais ritmos populares brasileiros que
descendem do legado africano, como o jongo. Não há menção a nenhum orixá,
especificamente, o nome de Exu não chega a ser dito, mas a segunda faixa é
dedicada a “São Jorge”, com o qual o orixá Ogum foi sincretizado, ou ainda a
canção que versa sobre o mito da Cabocla Jurema.
Em
2011, os dois parceiros mais o saxofonista Thiago França lançam o álbum “Metá-metá”.
Lançado primeiramente na internet foi lá mesmo que o disco foi distribuído e
divulgado, até ganhar os palcos e então a venda física do CD. Ele foi aclamado
pela crítica como um dos melhores discos daquele ano, e a menção aos
afro-sambas era recorrente na maior parte das críticas e das resenhas.
A
lembrança não é de todo descabida. Os elementos são muitos: a agressividade
precisa do violão que não é só afro; a menção ao universo dos orixás; os metais
costurando casamento das frases melódicas da voz com o violão imponente e a
força dos batuques.
Mas
se num primeiro momento a semelhança se mostra, as diferenças são também
evidentes, a começar pelo óbvio, a própria conjuntura sócio-histórica de ambos.
Certamente um projeto como Metá-metá é
herdeiro do movimento iniciado pelos afro-sambas, mas seu chão histórico é
outro, que não a indústria fonográfica carioca e o prestígio do letrista, poeta
consagrado e então diplomata, mas sim o cenário, também fértil, da música
independente paulistana. Mais que Baden Powell, Kiko Dinucci afirma ter ouvido
muito mais Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. A lírica de Dinucci está mais
próxima da crônica da vida paulistana do que do samba carioca. Rafael Galante
(2011) chega a situar Dinucci na tradição de Cornélio Pires e seu trabalho como
cronista:
Entendo que a
diferença do tipo de música que aqui chamamos de crônica urbana para as outras
seja justamente o fato dela surgir a partir dos conflitos provocados pela
modernidade, suas contradições, angústias, traumas, a violência do progresso,
ainda que o eu-lírico não seja necessariamente urbano, como no caso das
composições de Cornélio. [...] É impressionante pensar como a música de São
Paulo é marcada pela crônica da modernidade, isso nos diferencia muito da
música do Rio de Janeiro, ainda que essas questões também tenham tido eco por
lá. Basta pensar, por exemplo, no nosso símbolo maior: João Rubinato, mais
conhecido pelo pseudônimo Adoniran Barbosa. Quase todo o cancioneiro de
Adoniran é cortado transversalmente por uma crônica da cidade e do progresso. O
humor e a ironia sublimados pela sagacidade de Adoniran já eram a tônica de boa
parte da obra de Cornélio Pires, assim como foi de todos os sucessores
discípulos de Adoniran, como Paulo Vanzolini, Carlinhos Vergueiro, Eduardo
Gudin e, mais recentemente, Itamar Assunção e as músicas do Premeditando o
Breque, com “São Paulo São Paulo” e o irresistivelmente irônico verso “É sempre
lindo andar na cidade de São Paulo”. Quando Kiko Dinucci constrói seu
cancioneiro a partir de um vasto repertório aprendido das culturas tradicionais
de São Paulo e o transforma em belas crônicas para nos dar mostras de suas
angústias que surgem na megalópole paulistana, ele não está apenas demonstrando
a criatividade da nova geração e sua capacidade de ler os dilemas
contemporâneos, ele está se conectando diretamente a uma vastíssima tradição
crítica formada por Cornélio Pires, Adoniran Barbosa (...). (GALANTE, 2011).
Em
Metá-metá, o cronista Kiko Dinucci
aparece na primeira canção de sua autoria, com Rodrigo Campos, “Samuel”[4]. Ironicamente, esta é uma
música a que os críticos sempre remetem aos afro-sambas. Os orixás aí não
figuram, logo podemos já compreender tal “conceito” num sentido mais amplo,
muito possivelmente relacionado à batida do violão de Baden. A canção mais
próxima das composições conceituais de Vinicius e Baden é, indiscutivelmente,
“Obá Iná”[5], de Douglas Germano. Ali
estão concentrados todos os elementos: desde a narrativa sobre Xangô, os
metais, os tambores. A narrativa desta canção preza por enfatizar os temas
presentes na narrativa mitológica de Xangô, orixá da justiça, do fogo e do
trovão, mas ao mesmo tempo num tom de desafiar e questionar uma submissão cega
à autoridade do orixá.
Fato novo que “Metá-metá”
traz é a presença de narrativas de orixás não tão populares e/ou cantados nas
canções de “Metá-metá”, como a canção “Oranian” (Kiko Dinucci e Douglas
Germano), menção ao pai de Xangô, e o instrumental “Obatalá”,uma das
denominações de Oxalá (Kiko Dinucci). Oranian pai de Xangô, fundador do
reino de Oió, filho de dois pais, Ogum e Oduadua e por isso mesmo nascido com o
corpo metade branco e metade preto. As características guerreiras de Xangô
foram herdadas de Oranian[6]:
A primeira estrofe da letra faz
menção à narrativa mitológica de Oranian como criador da Terra. Os filhos de
Olodumare ganharam de seu pai uma cidade para governar e um alguns artefatos. A
Oranian coube o governo de Oió, uma galinha, sete barras de ferro e “o embrulho
de pano preto”[7]. O verso “Okê navega sobre
o véu de Olocum” remete a outra narrativa compilada com Reginaldo Prandi, em Mitologia dos Orixás, “Oraniã traz Oquê,
a Montanha, do fundo do mar”[8]:
Douglas
Germano autor de “Obá Iná” lançou neste mesmo ano o álbum “Orí” que significa
cabeça em iorubá. Com maiores influências do samba e suas sonoridades do que
propriamente o “Metá-metá”, o disco também foi em muitas resenhas associado aos
afro-sambas de Baden e Vinicius.
É interessante notar nesses
trabalhos de Dinucci, Germano, Marçal e França o uso de expressões em iorubá: Metá-metá tem dois significados
correntes, um é usado para designar as divindades “metade-metade”, como é o
caso de Ogum Xoroquê, ou ainda orixás que misturam parte masculina e feminina,
ou ainda são metade divindade e metade humanos. Entretanto, e é este o sentido
do título do álbum, cuja autoria é de fato dos três:
o termo metá-metá, na
língua Iorubá, falada pelo grupo étnico africano que habita a Nigéria, faz
referência à ideia da tríade. De acordo com o pesquisador Nei Lopes, no livro “Logunedé: Santo menino que velho respeita”,
a palavra metá significa três. Assim, metá-metá pode ser traduzido, em um
sentido mais próximo à tradição africana, como a síntese de três elementos em
um. (DESMONTA, 2011, s/p)
Uma das explicações
possíveis para as distinções entre estas obras recentes e os afro-sambas seria
o fato de que tanto Kiko Dinucci quanto Douglas Germano tem uma relação de
devoção, são praticantes e conhecedores das religiões dos orixás.
Apesar de tantas diferenças
entre as produções dos anos 1960 e das primeiras décadas do século XXI, é
possível fazer um outro paralelo. A produção da chamada estrutura de sentimento
romântico-revolucionária integrava as diversas formas de arte do período. Basta
pensar nas canções compostas para os filmes e peças de teatro, como “Upa
Neguinho” (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), “Zambi” (Edu Lobo e Vinicius de
Moraes) para a peça “Arena conta Zumbi” (Gianfrancesco Guarnieri e Augusto
Boal), ou mesmo “Maria Moita”, feita para o musical “Pobre Menina Rica” de
Vinicius e Lyra.
Em
entrevista[9],
Douglas Germano contou que o álbum Orí é uma coletânea de trabalhos compostos
desde 1987, dentre eles, muitas canções compostas para peças de teatro da
Companhia Teatro X, como “Zumbi”, “A Falha Trágica”,”Prometeu Enjaulado”, “Bando de
Maria”, “Caligula” (indicação pro Shell de 2003 melhor música) “O Cobrado” de
Ruben Fonseca, “Jejum”, “A Mãe D´Ele”, “Lavadeiras da Memória” e “Garden Now”,
cujos autores são Gerson Esteves, Celso Cruz e Adriana Azenha e os diretores
são Paulo Fabiano e Adriana Azenha.
Há também o caso do documentário citado há
pouco “Dança das Cabaças – Exu no Brasil” que foi idealizado e dirigido pro
Kiko Dinucci. O filme é fruto das inquietações do compositor em relação a uma
compreensão confusa e difusa do(e) que(m) seria e significaria Exu durante as
pesquisas musicais que o violonista realizava nos terreiros de São Paulo.
O documentário é, segundo
seu diretor, uma investigação poética, de caráter autoral, feita com recursos
escassos. A alcunha “Exu no Brasil” é um tanto exagerada, e é o próprio Kiko
Dinucci quem admite isso no blog oficial do projeto, já que todo o material foi
recolhido no estado de São Paulo, principalmente na Grande São Paulo. Entre os
entrevistados estão membros de “diversas vertentes das religiões
afro-descendentes, dos candomblés (de tradição Nagô, Gege, Bantu), Tambor de
Mina, passando pela Umbanda e Quimbanda” (DINUCCI, 2006, s/p), além da
participação de dois estudiosos.
O filme começa com as
paisagens urbanas da Grande São Paulo e com o áudio de depoimentos que falavam
e/ou se recusavam a dizer o que elas entendiam por Exu. As respostas eram as
mais diversas, mas em sua maioria associando-o ao “coisa ruim”. Ao longo do documentário as características de Exu, tal como foram
sintetizadas acima por Antônio Risério (1996), vão sendo confirmadas, tal como
contexto histórico no qual seus “atributos originais” passam a ser “ocultados”,
indo de princípio da vida à personificação do mal.
OUTRAS COORDENADAS HISTÓRICAS
A diferença da perspectiva
de tratamento de Exu em “Padê” em “Lamento de Exu” pode ser explicada,
aparentemente, por um maior conhecimento de Dinucci sobre o orixá do que de
Baden Powell (e Vinicius de Moraes). Olhemos, entretanto, mais de perto a
questão.
Durante a década de 1960
vivia-se um momento específico da história da sociedade brasileira e sua
relação com as religiosidades afro-brasileiras: o candomblé, se deslocando
gradativamente da sua Bahia mitologicamente fundadora para ganhar,
principalmente a partir dos anos 1960, a metrópole paulistana (ver PRANDI,
1996, p. 15 64), mas com seus símbolos sendo ainda “positivados” (justificados)
perante a sociedade, dentro da estrutura de sentimento da brasilidade
revolucionária sobre a qual já nos demoramos aqui. Essa perspectiva de busca e
ida ao povo (e aos elementos que
constituíssem as “raízes brasileiras”), muitas vezes idealizado, visto de fora,
tem os seus limites e marcam suas canções[10].
Reginaldo Prandi (2005)
discorrendo sobre a relação entre música ritual e a música popular menciona a
importância da divulgação através da música popular na inserção do candomblé em
São Paulo e em demais regiões do país em que era pouco (ou nada) conhecido
(PRANDI, 2005, p. 214). E neste sentido, lamentando-se ou não, a obra de Baden
Powell e Vinicius de Moraes contribui para tal processo.
No espaço de tempo entre os
afro-sambas e os trabalhos de Dinucci, ocorre uma série de acontecimentos que
fazem com que os lugares no tempo e no espaço de produção sejam muito
distintos. Entre as décadas de 1970 e 1980 é gestado o Movimento Negro
Unificado, principalmente por uma juventude negra escolarizada, com uma
perspectiva combativa, colocando em questão o mito da democracia racial, a
ideologia da mestiçagem e, sobretudo, do embranquecimento. Antônio Risério
(2007) pontua que para o MNU “a emergência de um Brasil Negro deveria estar
assentada em dois supersignos da história e da cultura negras em nosso país: o
quilombo e o candomblé. Zumbi e Xangô.” (RISÉRIO, 2007, p. 60). Zumbi era o
sinônimo da resistência, do combate e Xangô reforçando a imagem combativa do
orixá guerreiro e um dos mais populares do imaginário brasileiro, ao lado de
Iemanjá.
Para se ter uma noção do
impacto dessa nova perspectiva do movimento negro na virada dos anos 1970 para
os anos 1980, é neste contexto que nascem as primeiras comemorações do Dia da
Consciência Negra, comemorado no dia 20 de novembro, aniversário de morte de
Zumbi, rei dos Palmares. A data da abolição da escravatura, o 13 de maio,
passava a ser questionada, visto que a liberdade concedida não havia de fato
livrado a população negra das injustiças sociais causadas pela escravidão. A
questão era combater a perspectiva da concessão e salientar a capacidade de
luta, organização e resistência da população negra, que o Quilombo dos Palmares
representava.
Data também dos anos 1970
os ecos, reverberações e manifestações do movimento Black no Brasil. O Black
Power impactava a juventude negra brasileira, assim como as palavras de
Luther King. Ocorreram nesse momento também as independências dos países
africanos de língua portuguesa: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Na zona
norte do Rio de Janeiro aconteciam os bailes à base de soul music. Os bailes que também estarão presentes em São Paulo e
na Bahia.
Salvador nesse período
passava por um “criativo processo de reafricanização carnavalesca, com o
renascimento dos afoxés e o surgimento de um novo elemento estético-cultural na
folia, o chamado ‘bloco afro’” (RISÉRIO, 2007, p. 373), cujos exemplos são o
Ilê Ayê e o Olodum. Tal reafricanização ultrapassa o plano puramente musical,
ganhando os corpos dos jovens, transformando seus cabelos, vestimentas, suas
danças, sua atitude.
É também no começo dos anos
1980 que acontece o “Manifesto das ialorixás baianas contra o sincretismo”,
publicizado logo após a II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura
(Controc). O candomblé sempre teve uma estreita ligação com o catolicismo e o
movimento, que envolvia principalmente as nações jeje-nagô, sinalizava um
processo de reafricanização do candomblé que ultrapassaria as questões baianas,
cujo sincretismo católico estava por demais arraigado na trajetória das mais
famosas e prestigiadas ialorixás, indo ecoar em São Paulo, cidade que, como já
apontamos anteriormente, teve um crescimento vertiginoso da religião durante os
anos 1960. Segundo Josildeth Gomes Consorte (2010), que problematiza essa
questão: o “antissincretismo permanece como um signo de luta do negro contra a
exclusão e, sem dúvida, tem contribuído muito para a sua auto-estima, para a
afirmação de uma identidade mais fortemente alicerçada em raízes africanas”
(CONSORTE, 2010, p. 233). Vale lembrar que com a expansão do candomblé para o
sul e o sudeste, a religião deixa de ter um caráter de resistência étnica, mas
vai tornando-se cada vez mais universal.
De alguma forma, esse
processo de reafricanização do candomblé vai ecoar no próprio meio acadêmico.
Se por um lado temos a partir da década de 1970 uma crescente investigação das
contribuições religiosas centro-africanas, por outro lado tem-se um
aprofundamento das pesquisas do panteão iorubano.
Um exemplo claro desse
movimento que atrela conhecimento acadêmico e a própria prática religiosa é a
coletânea publicada pela EDUSP em 2010, “Dos Yorùbá ao Candomblé Kétu: origens,
tradições e continuidades”, organizada por Aula Barreti Filho. Os vocábulos
iorubanos são todos escritos com a grafia iorubá (yorùbá) e não em português,
tais como Òsóòsì (Oxóssi), Èşù (Exu), Òrìşà (Orixá). Há uma nota introdutória explicando o caráter tonal
da língua “sendo necessário ‘cantar’ suas palavras corretamente para se
expressar por meio dela” (VERGER apud BARRETI,
2010, p. 21). Uma mesma palavra entoada de formas diferentes tem significados
completamente distintos entre si.
O artigo de Luiz L.
Martins, que abre a coletânea, trata justamente sobre Exu, ou melhor dizendo, Èşù. Na nota de rodapé do nome de cada
um dos autores dos artigos da coletânea é informado não apenas a formação
acadêmica, mas também se ele é um iniciado e em qual casa. Na caso, Luiz L.
Martins se apresenta como “pesquisador da religião dos Orixás e da
afro-brasileira; iniciado no rito do batuque Rio Grande do Sul. O título do
artigo é: “Èşù Òta Òrìşà: Um estudo
de Oríkì” (MARTINS, 2010, p. 25-74).
Sua proposta, tal qual o nome indica, é problematizar as traduções e
interpretações do polêmico oriki sobre Exu, traduzido do iorubá para o inglês e
daí para o português como “Exu, o inimigo dos Orixás”. Tal oriki teria servido
como base para o livro de Peter Ade Dopamu “Exu, o Inimigo Invisível do Homem”
(1990).
A partir das análises
cuidadosas das traduções e a observância entre a semelhança aparente entre os
vocábulos ota (pedra), òta (um campeão do jogo de ayó) e òtá (inimigo), Martins propõe a
interpretação do oriki não como inimigo, mas sim como “Orixá Vencedor”. A
postura do livro de assumir o cuidado com os vocábulos iorubanos, de
identificação dos autores não apenas como intelectuais, mas sobretudo como praticantes
(lembrando que o texto de contracapa é de Mãe Stella de Òsóòsì, Sacerdotisa do Ilé
Àse Òpó Àfònjá) é uma postura de engajamento e uma clara postura política
salientada por um dos trechos da conclusão do artigo de Martins[11].
A
obra de Kiko Dinucci (e seu círculo) está inserida nesse momento histórico e é
herdeira de uma postura mais combativa tanto do movimento negro em geral,
quanto do candomblé. Sua obra não está dialogando com o clima nacional-popular
da década de 1960, no qual são gestados os afro-sambas.
A
estrutura de sentimento na qual estava envolto Vinicius de Moraes
pensava-agia-sentia em termos de grandes projetos de Brasil, era futuro de um
momento no qual havia a perspectiva de uma iminente revolução brasileira, que
sofre suas derrotas com a ditadura militar. Pensar em termos de obras
autenticamente brasileiras, representativas de uma brasilidade como princípio
era algo comum a uma determinada camada de intelectuais e artistas à época. Não
à toa Vinicius de Moraes na própria confecção do álbum faz suas afirmações
grandiloquentes, considerando-o um marco não só na música brasileira, mas da
música popular mundial.
Essa
estrutura de sentimento sofre seu esgotamento na década de 1970 e projetos de
nação, as perspectivas de criações estéticas que dessem conta de um sentido de
brasilidade, de um projeto de futuro para o Brasil passa a ficar cada vez mais
escassa.
De
fato não está no horizonte da música independente paulistana essa perspectiva
de nação. É um movimento ainda em processo, o que de fato perpassa essa geração
de músicos no qual estão inclusos Dinucci, Douglas Germano, Juçara Marçal e
Thiago França é uma estrutura de sentimento diversa e que não conseguimos nesse
momento ainda de vivência e
sentir-pensar captar e fixar em algum tipo de generalidade.
Dinucci
e Douglas Germano tiveram sua formação musical vinculada à pesquisa e à prática
da música na periferia paulista. Não à toa, mesmo que sem um grande projeto de
revolução social no horizonte, as canções dessa geração, no qual podemos
inserir nomes como Rodrigo Campos, como o próprio rapper Criolo, que tem uma parceria com Dinucci num dos álbuns mais
bem criticados de 2011, o “Nó na orelha”, estão sintonizadas com as narrativas
da periferia paulistana, o abismo da diferença social que perpassa a vivência
dos espaços na metrópole.
Há
dentro dessa geração diferentes posturas em relação aos nomes da MPB dos anos
1960. Muitos deles os reivindicam como referências importantes. Outros traçaram
percursos outros, atravessando a chamada geração dos malditos e da vanguarda
paulistana e chegam a ter uma certa postura de “combate” ao endeusamento da
geração dos anos 1960. O próprio trio “Metá-metá” se esforça todo o tempo nas
entrevistas sobre o álbum de 2011 para diferenciar-se dos afro-sambas e muitas
vezes afastar-se dos afro-sambas.
O
fato é que por mais que não tenha bebido diretamente dos afro-sambas, o álbum
de Baden Powell e Vinicius de Moraes foi um dos primeiros e de maior impacto da
época de um trabalho que desse centralidade à influência das religiosidades de
matriz africana. Com um ambiente de sentir-pensar propício a essa confluência
entre canção popular e busca de materiais “populares” na construção de algo
“autenticamente brasileiro”, fazendo a ponte do “passado” a uma construção de
modernidade genuinamente brasileira, a partir de interesses não apenas de
conteúdo, mas de forma, de trabalho e recriação estética, principalmente por
parte de Baden Powell, os afro-sambas deram um primeiro passo. Em meio à
tentativa e ao erro, a intensidade da experiência de seus compositores no
cotejo com o que chamaram de afro
criou um álbum ensaístico, mais do
que um tratado sistêmico, quase-científico, inquestionável sobre o universo com
que conversaram.
De
tal modo que em termos de perspectiva histórica, tendemos a não perder de vista
algo que Túlio Villaça (2012) sintetiza muito bem:
(...) onde Padê de alguma
forma segue a tradição, Metá-metá a quebra, e a quebra radicalizando sua
proposta. Metá-metá está bem num meio de caminho entre sofisticação e
crueza. Mas não, no meio do caminho é justamente onde não está. Está na
sofisticação e na crueza, em bicorporeidade, ou melhor, em ubiquidade, pois
trata-se de um só corpo em dois lugares simultaneamente. Metá-metá faz a
fusão do afrossamba sem sob uma outra forma (nos dois sentidos da palavra que
não tem mais acento), por uma outra via que permite que cada elemento
constituinte fique mais nítido o que é cru fica mais cru, o que é sofisticado
soa mais sofisticado (não fossem sofisticadíssimos a poesia de Vina e o violão
de Baden, que no entanto ficam parecendo fáceis ao ouvir
os Afrossambas, no sentido de uma síntese de elementos e de uma poesia mais
singela e mais direta, que era a que o Vinícius usava em letras.) Em Metá-metá,
ao contrário, há espaço para ir mais longe nas duas direções, espaço que só é
possível, obviamente, por ser aberto a partir do que já fora conquistado
(VILLAÇA, 2012, s/p).
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todo canto: As religiões brasileiras nas letras do repertório musical
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10/07/2012.
*Este artigo é resultante da comunicação realizada durante o 2º Congresso Nacional do Samba - Organizado pelo Portal do Carnaval UNIRIO em dezembro de 2012. Ele será(seria) publicado nos anais do encontro.
[1] Cantora,
compositora e mestre
em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Araraquara. Membro do Catavento: redes e territórios de culturas e identidades,
grupo de estudos e pequisas para as culturas populares associado ao
CLADIN/LEAD/NUPE da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP Araraquara. isabelamoraistp@gmail.com
[2] Letra de
Vinicius de Moraes: Nasci
lá na Bahia/De
Mucama com feitor/Meu
pai dormia em cama/Minha
mãe no pisador/Meu
pai só dizia assim, venha cá/Minha
mãe dizia sim, sem falar/Mulher
que fala muito perde logo seu amor/Deus
fez primeiro o homem/A
mulher nasceu depois/Por
isso é que a mulher/Trabalha
sempre pelos dois/Homem
acaba de chegar, tá com fome/A
mulher tem que olhar pelo homem/E
é deitada, em pé, mulher tem é que trabalhar/O rico acorda tarde, já começa
resmungar/O
pobre acorda cedo, já começa trabalhar
Vou pedir ao meu Babalorixá/Pra fazer uma oração
pra Xangô/Pra
por pra trabalhar/Gente
que nunca trabalhou
[3] Letra de Vinicius de
Moraes: Eu vim de bem longe, eu vim, nem sei mais de
onde é que eu vim/Sou filho de rei muito lutei pra ser o que eu sou/Eu sou negro de cor
mas tudo é só amor em mim/Tudo é só amor, para mim Xangô Agodô/Hoje é tempo de amor/Hoje é tempo de dor,
em mim/Xangô
Agodô/Salve
, Xangô, meu Rei Senhor/Salve meu Orixá/Tem sete cores sua cor/sete dias para a gente amar/Salve Xangô, meu Rei Senhor
Salve meu Orixá/Tem sete cores sua
cor/sete
dias para a gente amar/Mas amar é sofrer/Mas amar é morrer de dor/Xangô, meu Senhor, saravá!/Me faça sofrer/Ah me faça morrer/Mas me faça morrer de
amar/Xangô,
meu Senhor, saravá!/Xangô agodô
[4]Letra de
Rodrigo Campso e Kiko Dinucci:
Diz, samuel/Que
que cê pensou?/Nem
é longe de casa aqui/Vim
uma vez/Acho
que há um mês/Eu
e o Deto
da 16/O
Deto
é doido pra caralho/Zuou
o guardinha daquele conjunto quadrado/Depois
roubou moeda do home estátua de lata/Diz,
Samuel/Que que cê pensou/Nem é tão diferente
assim/Vim
da outra vez
Chamei vocês/E o Nikimba do 23/Mas o Nikimba é cabuloso/Desceu a augusta
montado atrás do busão
Com a coxinha do bar deu perdido/Saiu sem pagar/Diz, Samuel como é que foi/Porque cê nunca veio
aqui
Quem te prendeu, quem te impediu/Qual o foi o muro que
subiu/Porque
não atravessou/Nunca
pro lado de cá?
Ó lá o metrô/Já vai fechar
[5] Letra de
Douglas Germano: Abram
caminho para o rei/Sorriam
em vez de se curvar/Ele
é justiça, ele é a lei/Que
fez pra nos levantar/Pra
nos por em pé, nos erguer/E
lançar pra orum nosso olhar/Não
há justiça se há sofrer/Não
há justiça se há temor/E
se a gente sempre se curvar/Kawó
kabiecilè xangô oba iná/Abram
caminho para o rei/Que
se anuncia em um trovão/Que
bravo, escreve o que errei/Cuspindo
fogo pro chão/Labareda
pra eu me consertar/Fogo
pra me aquecer de perdão/Não
há justiça sem ceder/Não
há justiça sem amor/E
se a gente nunca se entregar
[6] Letra de
Douglas Germano:Surgiu
no orum/Um
punhado de pó/O
chão do reino de oió/Solo
de ifé/Um
grão de terra vã/Opá
de Oranian/Galo
ciscou e espalhou/Pairou,
boiou/A
terra se multiplica no mar/Okê
navega/Sobre
o véu de olokum/Guerreia/Quando é pra guerrear/Guerreia/Quando é pra festejar/A espada cega corta/Sem olhar a quem/Guerreia/Oh
Guerreia/E
a pele preta e branca/Se
desvai no além /
Quando é pra guerrear/Guerreia/Quando é pra festejar.
[7] Quando Oraniã abriu
o pano,/deparou
com uma escura e estranha substância, /que
jogou na água./A
substância boiou na superfície/e
a galinha, voando sobre o montículo, /pôs-se
a ciscar a tal matéria./O
montículo cresceu e cresceu/e
assim a Terra foi criada. (PRANDI, 2011, p. 433-434)
[8] No princípio, tudo
era o mar,/tudo
era Olocum./E
Olofim [Olodumare] andava entediado com a vastidão sem fim das águas./Foi então que Oraniã,
com a força que lhe dera Olofim,/fez
surgir do fundo do mar o primeiro monte de terra./Oquê surgiu das profundezas do
oceano/e
agora era a montanha sobre a superfície da água./Assim foi que nasceu Oquê, a
Montanha./Nasceu
Oquê, o orixá da montanha./Sobre
Oquê a vida na Terra foi possível,/porque
antes estava tudo submerso/e
todo o poder era do mar, de Olocum. (PRANDI, 2011, p. 434-435)
[9]Realizada
dia 30 de novembro de 2012, via internet.
[10] Para um
melhor exemplo do que estamos sugerindo, conferir uma problematização da letra
da canção “Canto de Xangô” (Baden e Vinicius), feita no ensaio a respeito desta
canção em nossa dissertação: “É, não sou: ensaios sobre os afro-sambas no tempo
e no espaço”, defendida em fevereiro de 2013. No prelo.
[11] “Quero sugerir
nesta conclusão que a dessincretização de Èşù
da figura mitológica do diabo deve começar pelos sacerdotes das religiões
afrobrasileiras, eliminando de seus templos toda representação visual e
instrumentos de culto que lembrem sua figura, passando pelos editores que devem
evitar editar livros que falem de Èşù
quando nessas obras ele estiver associado ao demônio cristão.” (MARTINS, 2010,
p. 70).