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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Passo Torto vai à escola.

"Gostei da música, mas aquela letra é do inferno.
É que eles só cantam São Paulo
e São Paulo é o inferno."

Eu faltei quarta passada. É. Eu me mudei na segunda, cheguei de viagem domingo, brotou uma gig na terça, sem repertório e arranjei dessas febres no corpo que deixam a gente de cama. E eu dou várias aulas na quarta. Quarta [e sexta] é dia de ir pra ETEC e vejo por exemplo os 3 primeiros anos. Mas sou professora em tempos de Facebook e matutando sobre que fazer pra compensar a ausência, numa instituição escolar que não tem estrutura de professor substituto, eu acabei tendo a incrível ideia de passar uma atividade pra aula seguinte, pra não se desconectarem tanto da gente e ouvir um som. É. A ideia era ouvir SAMUEL, do Passo Torto e brisar. Escrever algumas linhas, com começo meio e fim, sobre o que entendeu da Canção, sensações, impressões, opiniões e relacionar - na medida do possível e da lembrança, com os assuntos da aula passada, quais sejam: estratificação, desigualdade e mobilidade social. 

depois de aulas bem densas com segundos e terceiros - e o "pior" ainda estava por vir - entrei no Primeiro Ano A e eles cantavam quase em coro "Diiiiiiz Samuel?"

Fiquei feliz. Dei o corre de buscar o amplicador e eles se assustaram de me ver entrando com aquela coisa enorme dentro da sala de aula: "Já que é pra ouvir música vamo ouvir direito!" - porque as caixinhas de abelha do computador, ninguém aguenta.

Botei o play em Samuel enquanto recolhia os trabalhos. "Professora... eles são amadores?" "Nãa..." " Quer dizer, eles não são muito famosos...?"




Dificilmente eles vão aparecer no Faustão ou a música deles vá tocar na próxima novela das 9, mas eles são uma referência importante pra música que é feita aqui em São Paulo hoje e tem uma certa visibilidade num circuito que frequentam. - eu disse.

E apresentei didaticamente: na lousa: e dizendo: Passo Torto é: Kiko Dinucci - setinha Metá Metá - setinha Juçara Marçal e Thiago França (inclusive tem uma versão de Samuel deles).
Rodrigo Campos (São Mateus e Bahia), Romulo Fróes (que tá lançando disco novo esse mês. é? esse mês. ontem saiu a primeira canção <3) "Nossa, professora, você conhece eles?" [sim, a professora boba sorria.]
Marcelo Cabral - que dentre outros muitos trabalhos é produtor do disco do Criolo, aquele último, foda e desse disco que ele tá fazendo agora - ele era do Skate, gatinho - olhos se arregalam! Criolo. Essa gente, parte dela, cresceu pertinho do Kléber: dou aula na zona Sul, fiii.
e eles ganharam duas vezes o prêmio TIM de música brasileira... (porque argumento de autoridade em alguma medida, sempre, ou não, funciona)

Tem poucas críticas sobre eles...: "é claro. fiz de propósito, que se não vocês iam copiar". Eles ouviram. Passo Torto. e foi uma experiência incrível ver aquela molecada de 14, 15 anos me contando como foi aquela sensação de fruição estética inédita:
o violão!  - como o violão chama atenção. os arranjos. "um jogo dos instrumentos" a tentativa de encaixar em algum gênero conhecido que explique, o que era "aquele samba.... mas uma MPB"... "dá mais destaque pra letra", salientava outro. 
a cozinha fez falta pro outro primeiro ano. 

E aí passamos pros depoimentos deles sobre a sensação de pensar e escrever sobre aquela letra. Conheci vários Samuéis: o menino rico deslocado, vários meninos da Fundação Casa, meninos da Zona Leste, Migrantes nordestinos, adultos, crianças, jovens de aventura pelo Centro. 

E eles? quantas vezes o muro não foram eles mesmo que sentiram?

"Sabe o que é, terceiro ano, eu estou com - desculpem a expressão - tesão por São Paulo" 
Poder conversar com esses meninos sobre essa cidade, sobre toda a imensidão que ela é, depois de estar aqui e vivê-la, fazer isso através da canção do Passo Torto, foi qualquer coisa. 

"ó, e eles estão pertinho de vocês. Estão fazendo essa semana e na outra uma vivência no Sesc Santo Amaro com a Ná Ozzetti. tá lindo. queria eu ir..." - pertinho? é. considerando que eu estou em Santa Cecília, pra vocês é pertinho. 

E, que ironia do destino, não é que hoje eu fui buscar minha máquina fotográfica na Vila Guilherme? E vê bem se eu não andei da Luz até lá, lendo os meus meninos brisarem no Passo Torto, no "Vila-Sabrina-onze-cinco-seis"?

Mas foi sentada na Vila dos Ingleses, já com a máquina resgatada, à espera de um sorriso largo que me saísse pela porta, que eu li essa análise que reproduzo aqui procês, meninos que estão fazendo lição de casa em público e hoje, foram comigo pra escola:

"PASSO TORTO - SAMUEL
Impressões

Antes de começar a contar minhas impressões sobra a música "Samuel" já vou avisar que estou fazendo isso às 19horas e meio que eu acordei com o pé esquerdo e parece que o dia meio que tirou pra me sacanear, então minhas impressões podem ser meio distorcidas, errôneas e depressivas. Vamos começar.
A canção Samuel feita pelo grupo Passo Torto, (que na qual eu não conhecia, obrigado Isabela, agora conheço uma outra banda com um som legal) tem um ritmo meio samba com MPB, algo que eu acho fantástico e de ótimo bom gosto.
Quando a música começou eu tava de cara fechada e quando começou o violão eu arregalei os olhos e pensei: "cara, que daora" e quando o vocalista começou a cantar eu achei interessante. Vou explicar o porquê.
A letra é simples, quando a música termina você consegue entender seu propósito. Ela fala de um cara chamado Samuel que nunca tinha ido a um lugar, talvez o centro, se bem que ele cita a Augusta e a única que eu conheço é uma rua com uns bares e clubes, então eles foram à um clube! Certo? Por enquanto fica assim. Provavelmente, eles nunca foram lá, pois são pobres e a música dá a entender isso, ou eles são uns playboys, mas acho pouco provável. 

A música cita alguns amigos do cantor como o Deto, que é um cara doido pra... que pelo visto gosta de zoar e causar, tipo tirar sarro dos guardinhas e roubar coxinhas, pera, esse é o Nikimba.
Até aí, Samuel ainda não deu sua opinião sobre o local, e nem se quer vai dar. Nesse ponto eu já tava curtindo muito a música e somos apresentados ao Nikimba, o cara do apartamento 23, que é cabuloso que monta atrás de busões e ele sim rouba coxinhas, o Deto rouba moedas de homens de lata.
Depois disso a música fala "Por que cê nunca veio aqui/Quem te prendeu, quem te impediu/ qual foi o muro que subiu/ Por que não atravessou [...]" Nessa parte dá a entender que Samuel nunca tinha ido ao local não porque ele não quis, e sim porquê ele não podia, talvez por ser pobre.
Nessa a música acaba e eu fiquei surpreso, pensei que eu ia ouvir, fazer esse trabalho e esquecê-la, mas não, eu gostei muito. Agora se esse meu texto ficou bom ou não, eu ainda não sei, provavelmente eu não entendi o que a música queria passar, mas  beleza, a música é boa e agora eu acabei de ouvi-la pela 5ªvez seguida, sério, tava ouvindo agora.

Ps.: De qualquer forma, perdoe minha linguagem informal, eu só consigo fazer textos não tão ruins assim."


***

AH! Em tempo, Rodrigo, Kiko, Cabral e Romulinho: a Katarina (ou foi a Duda?) veio toda convicta dizer que ia tentar ir vê-los no Sesc Santo Amaro. Eu postei no nosso grupo no face... Se por acaso, aparecer uns pedacinhos de luz, que me fazem ter vontade de viver ainda mais, por lá, sorriam pra eles.


Um beijo grande, 

Isabela.

Ah! a epígrafe é de uma aluna, pra cuja sala não consegui dar aula hoje. Ela disse aquilo ali, na lata, na rua. no acerto de um passo torto. 

"Hj ganhei de presente uma letra genial do Rodrigo Campos para uma música nova minha, ja pré levantada em nossa Residência Passo Torto Sesc Sto.Amaro !!" postou hoje Marcelo Cabral feliz da vida.