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terça-feira, 5 de agosto de 2014

Imagens de Palmares (ou a necessária ambivalência).


[esse artigo foi escrito em 2010, durante a graduação em Ciências Sociais, como trabalho de conclusão de disciplina do prof. Dr. Dagoberto José Fonseca.]

Eis-me agora em Olinda, remoinhos. Sei que haver além, naquelas serras, uma Terra da Promissão para os pretos, é o alvoroço permanente dos cativos em Pernambuco, tão perto fica a liberdade... "Há que arrasar Palmares, há que recuperar, vender ou matar os pretos fujões!" - ouço que dizem os senhores de engenho, diz também a tropa portuguesa. E tentam, vejo que tentam, muitas e muitas vezes tentam destruir o quilombo, mas repelidos acabam sempre. Só a Cerca do Macaco é defendida por uma tríplice paliçada, cada qual sob a guarda aturada de 200 homens. A defesa da liberdade é, sem dúvida, a grande organizadora do povo de Palmares.

Fernando Correia da Silva.

            Até meados dos anos 70, o dia da consciência da luta histórica dos negros era comemorado no dia 13 de maio, referente ao dia da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, em 1888, que finalmente estabelecia o fim do regime escravocrata. Depois dos anos 70, começou-se a discutir a questão do fim do regime escravo no Brasil, distanciado da ideia de real liberdade do Negro a que se pretendia tal abolição; visto que os negros logo foram incluídos numa dinâmica de marginalização de sua população, pela falta de possibilidade de prover seus meios de vida.
            Dentro desse novo movimento social que surgia e se fortalecia, o pensamento artístico e intelectual teve um avanço fundamental no que dizia respeito à História imbuída de suas opressões; o desenvolvimento civilizatório com base em atrocidades de todas as naturezas. Com isso, nasce também o modo de pensar a questão do Negro dentro desta história e civilização no Brasil, e vê-se tal população está imersa em uma complexa rede de contradições seculares.
            A começar com a atenção voltada para o fato de que quando se instaurou o liberalismo no Brasil, o regime escravocrata permaneceu, e a vitória dos negros sofreu e sofre milhares de empecilhos para se triunfar no tecer histórico de cada dia, e foi cedida muito tempo depois do dia 13 de maio; decidiu-se transferir a data que remete à luta do Negro contra as contradições em que foi inserido para o dia 20 de Novembro. Data da morte de Zumbi de Palmares, que foi um exemplo de resistência contra esse processo de exclusão a que foram submetidos os escravos.
            A proposta deste artigo, num primeiro momento, é analisar a historia do quilombo de Palmares, situada em Alagoas, destacando, principalmente, elementos do contexto do século XVII que passam por essa luta da população alagoana quilombola contra os holandeses, em contra o governo de Pernambuco.
            Quando em 1600, Pernambuco foi invadida pelos holandeses, houve considerável abandono de terras pelos senhores de açúcar, que recuaram diante da invasão; isto beneficiou a fuga de muitos escravos que buscaram terra e abrigo no quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga em
Alagoas.
            Com essa e outras possibilidade de fuga, o quilombo tornou-se uma comunidade (em 1670 eles já eram 30 mil). Verdadeira república dos negros, a região de Palmares cumpria com essas exigências de produção e convívio para alimentar essa população, organizada enquanto sociedade quilombola, funcionava tal qual um pequeno Estado em que se deveria o cumprimento de leis públicas severas, como a punição de morte para homicídio e deserção, bem como as decisões públicas essenciais eram tomadas através de assembleias em que participavam todos os adultos da comunidade.
            Acomodados em choupanas, elaboradas por fibras, que também compunha matéria-prima essencial para a confecção de outros artigos essenciais como vassouras e tapetes; a população cultivava milho, mandioca, legumes, feijão e cana. E até compunham suas próprias vestimentas através das cascas de algumas árvores.
            Nascia daí, uma cultura quilombola embebida dos modos culturais africanos dos antecedentes daqueles que compunham a região. E toda essa tradição criada e reproduzida na região dos quilombos de Palmares, fez com que aumentasse a preocupação de forças dominantes, como os holandeses invasores em busca dos interesses açucareiros e o governo pernambucano que pretendia dizimar a população de Palmares.
            Segundo Décio Freitas, o chamado Estado palmarino surge de suas necessidades básicas: “acomodar e agregar grupos étnica e culturalmente heterogêneos, e aglutinar forças para a luta contra o inimigo externo” (FREITAS, 1978, p. 104). Cada mocambo tinha sua liderança ou “chefe comunitário”. Eles se reuniam em assembleia para a eleição de uma liderança central, denominado “Grande Senhor” ou “Grande Chefe”. O primeiro que se tem notícia chamava-se Ganga-Zumba. Décio Freitas afirma que Ganga-Zumba nasceu em Palmares e era descendente da nação Arda.
            Os ataques a Palmares tornavam-se cada vez mais frequentes e intensivos. Por volta dos anos de 1670 os ataques comandados por Carrilho levavam gradativamente Palmares a exaustão, mas os quilombolas resistiam bravamente. As notícias que se espalhavam entre os portugueses de que Palmares havia caído não iludiam mais os líderes. O governador de Pernambucano propõe então um tratado de paz, garantindo liberdade terra e direitos a quem se rendesse. Em junho de 1678 uma comitiva palmarina vai a Recife selar o tratado. Cinco meses depois o próprio Ganga-Zumba vai ao encontro do governador honrar o trato. Não se sabe quando exatamente Ganga-Zumba deixou Palmares rumo ao vale do Cucaú.
            Mas Palmares resistiria. Nascido livre em Palmares no ano de 1655 e raptado aos cinco anos, um menino negro cresceu sob a tutela de Padre Antônio de Melo que o batizara de Francisco. Aos quinze anos, o garoto resolve fugir para Palmares, regressar a terra onde nascera. Daí então passa a ser conhecido como Zumbi, nome que marcará a história do quilombo.
            Zumbi é uma importante liderança militar e seu papel torna-se demasiado importante quando do tratado de paz que o já velho Ganga-Zumba travara com os “brancos”. Zumbi não aceita o tratado. Ganga-Zumba é acusado de traição e envenenado a mando de Zumbi, que assume a liderança do quilombo, cuja resistência obstinada era a principal característica.
            Definitivamente, depois de 5 anos de luta intensa dos negros de Palmares chefiados por Zumbi, em 1687, a classe dominante colonial contratou o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho para atacar Palmares, escolhido por sua fama de matador de índios e capturador de escravos fugitivos; houve o segundo ataque, e os quilombos, sem munição, lutaram contra seis mil soldados por durante um mês. E ao final de longo combate, o quilombo foi destruído e sua população massacrada. Zumbi, apesar de conseguir fugir, logo após a destruição da Sede dos quilombos, Macaco; foi capturado pelas tropas dos bandeirantes, sendo degolado aos 40 anos no dia 20 de Novembro de 1695.
            As primeiras referências políticas a Palmares surgem no Brasil já nas primeiras décadas do século XX. Astrogildo Pereira, fundador do Partido Comunista do Brasil, teria sido o primeiro a propor uma interpretação classista da luta do Quilombo de Palmares, em 1929. A primeira obra historiográfica de grande importância sobre Palmares também está vinculada ao PC O Quilombo de Palmares – 1630-1695, escrita por Edison Carneiro e publicada pela Editora Brasiliense em 1947.
            Petrônio Domingues faz uma análise sobre o movimento negro brasileiro durante a república e o divide em três fases esquemáticas: a primeira entre os anos de 1889-1937 (ano em que o Estado Novo dissolve as associações); a segunda de 1945-1964 (da redemocratização ao golpe Militar) e a terceira fase de 1978-2000 (da criação do Movimento Negro Unificado até o fim do século XX). As duas primeiras fases carregam diferenças entre si, mas ambas basicamente mantem um discurso moderado quanto à questão racial, forjando uma postura ou assimilacionista ou integracionista. Tais fases não chegam a fazer uma denúncia sistemática ao mito da democracia racial e têm como dia de reflexão e protesto 13 de maio, dia da assinatura da Lei Áurea.
            Adotando um discurso racial mais contundente, cuja estratégia cultural de “inclusão” parte da igualdade na diferença, valorizando uma identidade negra, que vê a mestiçagem de forma negativa, denunciando o mito da democracia racial de forma incisiva, o movimento negro que floresce na década de 1970 preza por uma revisão da historiografia oficial. Em 1971, surge em Porto Alegre o Grupo Palmares, cuja atuação foi fundamental para a própria criação do Movimento Negro Unificado em 1978. Dentre outras demandas, o grupo foi o primeiro a propor o dia 20 de novembro como alternativa às comemorações do 13 de maio. Para o grupo, a Lei Áurea assinada no dia 13 de maio foi apenas uma liberdade concedida que não alterara efetivamente a vida dos negros; ao passo que relembrar a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695, é de fato voltar-se para um momento de luta e resistência da própria população negra. A proposta do grupo gaúcho ecoou ao ponto de termos o feriado nacional, ainda que facultativo, no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
            Segundo Deivison Moacir Cezar de Campos em sua dissertação sobre o Grupo Palmares, “a instituição do 20 de Novembro, como Dia do Negro, em oposição ao 13 de maio, sintetiza essa passagem de uma tradição oficial para uma tradição negra” além da “afirmação de novos referenciais identitários para o negro” (CAMPOS, 2006, p. 134-135). Revisitar Palmares é antes de tudo uma estratégia política, em que a análise do passado parte de um ponto muito específico do presente.
            Pretende-se refletir aqui como as imagens da história do quilombo de Palmares e seus personagens foram constituídas em algumas manifestações artísticas e de que maneira isso reflete o caráter mitológico de tradição inventada que esse evento vem tomando. As obras aqui apresentadas com certeza não são as únicas sobre o tema e as análises serão apenas pontuais, não atingindo talvez a complexidade que lhes caiba, devido a limitação deste artigo.
            Domício Proença Filho propõe em artigo analisar a trajetória do negro na literatura brasileira, primeiro enquanto objeto, numa visão distanciada e depois como sujeito, já numa atitude compromissada. O professor emérito e titular da Universidade Federal Fluminense reserva um lugar de destaque para o livro de João Felício dos Santos, Ganga-Zumba, lançado em 1962 por “um romancista que tem obsessão pela liberdade” (FILHO, 2004). Filho afirma que o romance é altamente representativo em termos de elementos valorizadores da contribuição do negro à cultura brasileira. Na obra, um narrador onisciente alterna relatos com comentários explicitadores, mas, a cada momento, cede a voz às personagens nascidas a partir de uma realidade diluída ou ignorada pela história oficial.
São personagens da época, com fala típica de negros, carregada de africanismos, de ritmos, com sentimentos e problemática peculiares, marcadas pelo sofrimento, mas dimensionadas sobretudo à luz da altivez de um grupo étnico que se assume, em torno do seu Ganga, na luta por sua afirmação, no percurso de Palmares. (idem)

            Além de estudioso das artes literárias, Domício Proença Filho também é autor. O livro Dionísio Esfacelado (Quilombo dos Palmares), lançado em 1984, é um compêndio de poesias que narram a trajetória de Palmares, passando por seus personagens como Ganga-Zumba e Zumbi, além da menção a diversas divindades. O livro também traz os discursos de diferentes perspectivas da sociedade referente à questão negra e sua memória. Instigante e provocador até a última estrofe, o livro é uma das maiores obras literárias de memória da cultura afro-brasileira e conta, ainda, com um Glossário Opcional, baseado em importantes obras sobre a cultura negra e afro-descendente.
            O início da década de 1960 é marcado pela chamada cultura engajada. Diversos intelectuais e artistas, seja no teatro, na música ou no cinema, estão preocupados em fazer uma arte conscientizadora e nacional, que retrate a vida dos brasileiros e suas demandas. Após o golpe militar essa atitude ganha força e mais um ideal de luta pela liberdade. Para o bem e para o mal, floresceram obras de artes compromissadas com os dilemas do seu tempo. É o caso, por exemplo, do movimento Cinema Novo, do qual faz parte o então jovem Carlos Diegues.
            O primeiro longa-metragem do diretor alagoando, radicado no Rio de Janeiro, é justamente uma releitura da obra de João Felício dos Santos, o filme lançado em 1964 Ganga-Zumba. A história retratada pelo diretor tem a centralidade na figura de Ganga-Zumba, filho de rei trazido para o açoite no Brasil em cujas esperanças dos amigos se concentram, na certeza de que ele será rei de Palmares. O filme retrata as estratégias de fuga dos escravos e o árduo caminho até o quilombo e termina com a chegada e coroação de Ganga-Zumba como líder de Palmares, como se ele realmente estivesse predestinado à liderança, só precisasse chegar até a Serra da Barriga.
            Vinte anos mais tarde Cacá Diegues produz o filme Quilombo, que pode ser considerado uma continuação de Ganga-Zumba. O filme se pretende mais histórico, fazendo referências contextuais ao longo do filme, que começa no contexto da invasão holandesa e a fuga de Ganga-Zumba para Palmares. Entretanto o trajeto a Palmares, justamente por não ser o foco do filme, não é tão realista quanto o do filme de 1964. Ganga-Zumba é retratado como líder pacificador e congregador. O quilombo é visto como um paraíso na terra, onde índios e brancos vivem harmoniosamente com a massa de escravos fugidos. O filme conta a história de Zumbi: seu rapto na infância, sua vida ao lado do Padre Antônio Melo, por quem foi batizado com o nome de Francisco. Rael Lopes Alves (2009) destaca a cena em que Francisco recebe o nome Zumbi. É uma espécie de batismo, um ritual de iniciação em que o personagem recebe um objeto mágico, sua lança em chamas e a proteção dos guerreiros mortos, dando uma dimensão fantástica para a figura de Zumbi. Na conclusão de seu trabalho Rael defende que a narrativa do filme é ambígua, já que se pretende histórica, mas apresenta momentos fundamentais da história de maneira fantástica, folclorizando a cultura negra. Além do mais o filme ameniza o conflito entre negros e brancos. O filme também não é fiel à história no que tange à ruptura da relação entre Ganga-Zumba e Zumbi. No filme de Cacá Diegues é Ganga-Zumba que se arrepende do tratado de paz e forja sua própria morte, com intuito de motivar a volta dos quilombolas que o acompanharam para Palmares.
            Esta confusão entre as personagens é característica de outra obra, não do cinema, mas do teatro: Arena conta Zumbi, musical em dois atos de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Edu Lobo. Feita durante os primeiros anos da Ditadura Militar, o discurso da peça deixa bastante clara a intenção de ler Palmares a partir do presente, ou seja, como a luta pela liberdade dos negros de Palmares era a mesma luta pela liberdade daqueles que são contra o regime instaurado em 1964; que a repressão do Golpe é de alguma forma a mesma repressão a que os negros estavam submetidos. A peça falava de Palmares na realidade para “falar do que não se podia falar”. O leitor atento conseguirá enxergar nos discursos da peça uma contemporaneidade com as críticas à politica dos militares; a dependência da colônia em relação à metrópole como uma alegoria da dependência brasileira em relação ao capital estrangeiro, sobretudo norte-americano.
            Na peça a primeira liderança importante do quilombo é Zambi, papel que na verdade é de Ganga-Zumba, segundo a história. E Ganga-Zumba se transforma em Zumbi. Ou seja, Zambi, que significa “deus” em Bantu, virou um personagem e Zumbi, que é um nome próprio, transforma-se em um título.
            A peça traz também a conhecida frase de Padre Antônio Vieira: “Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e a paixão de Cristo do que o vosso”. Durante várias passagens é evidenciado o papel de cúmplice do regime escravista que a Igreja Católica teve, legitimando que o negro conquistaria os céus com o sofrimento da carne.
            Entretanto, em 1981 a Igreja Católica brasileira resolve se redimir perante a população negra. Idealizada por Dom Helder Câmara, escrita e produzida por Dom Pedro Casaldáliga e pelo poeta Pedro Tierra, musicada por Milton Nascimento, produzida por Frei Paulo César Bottas, a Missa dos Quilombos foi celebrada pela primeira vez para um público de sete mil pessoas em 22 de novembro de 1981, na praça em frente à Igreja do Carmo, em Recife, local onde a cabeça do líder quilombola Zumbi dos Palmares foi exposta no alto de uma estaca. O texto é fruto de dois anos de pesquisa sobre a escravidão negra e o silêncio teológico da igreja católica a respeito do tema, foi pensada como uma continuidade da Missa da Terra Sem Males. O objetivo da Missa é o de se retratar aos povos negros, herdeiros dos negros escravos da época do império, e se desculpar pelos equívocos da escravidão. Entretanto esta retratação não representa a atitude oficial da Igreja Católica, uma vez que a missa foi vetada pelo Vaticano.
            O quilombo é representado como a terra prometida, lugar onde outrora a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram e que há de ser novamente construído. Zumbi é o Moisés Negro do Sinai Palmares, é o patriarca “mártir de todos os Quilombos de ontem, de hoje e de amanhã”. Ganga-Zumba não é mencionado em nenhum momento – algo que reflete o que comumente ocorre, alijando o seu papel de grande líder e unificador dos mocambos, já que Zumbi assume a liderança já nas duas últimas décadas do quilombo.
            Vale destacar como a Igreja tem dimensão do seu papel histórico quando na sua homilia Dom Helder Câmara chega a dizer:
“Houvesse a Igreja da época marcado presença mais na Senzala do que na Casa Grande, mais no quilombo do que nas Cortes, outros teriam sido os rumos da história do Brasil desde o seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento”.

            A missa tem grande valor simbólico, uma vez que mesmo que não tenha servido à causa do negro nos tempos coloniais, muitos negros se converteram ao catolicismo e o praticam ainda hoje. Desta forma o caráter político da missa se coloca diante dos seus fiéis, relembrando a história, assumindo sua culpa e se colocando a favor da demanda dos negros perante a sociedade brasileira em um momento de forte comoção social, tanto pela recente criação do Movimento Negro Unificado quanto pelos movimentos em prol da redemocratização do país.
Aos treze de maio de mil-oitocentos-e-oitenta-e-oito,
nos deram apenas decreto em palavras.
Mas a Liberdade vamos conquista-la!
(trecho da Missa dos Quilombos)
            Foi através desse espírito explícito até mesmo na Missa dos Quilombos que o movimento negro deixou de lado as comemorações em treze de maio, alegando com a Princesa Isabel apenas cumpriu uma formalidade, deixando os negros à sua própria sorte. A História, porém, guarda grandes surpresas. Em 2006 foi divulgada na impressa a carta redigida pela Princesa Isabel em 11 de agosto de 1889 ao Visconde de Santa Vitória, na qual a Princesa fala sobre a possível compra de terras para a indenização para os ex-escravos. Desta forma, fica evidente que era sim intenção da Princesa Isabel tomar providências efetivas para os ex-escravos. Além do mais, princesa esteve vinculada aos chamados “quilombos abolicionistas” e protegeu escravos fugidos de maneira ativa. Entretanto, o poder monárquico estava com seus dias contatos e o golpe da República impediu que se mexesse nas terras brasileiras – tesouro precioso desde os tempos das sesmarias e que ainda hoje continua nas mãos de poucos.
            É fato que a mudança do “treze” para o “vinte” foi fundamental para o movimento negro moderno e sua articulação em torno de suas demandas e legitimação de sua cultura. O resultado é evidente nas políticas públicas brasileiras, ainda que suscitem críticas por aqueles que alegam que não existe preconceito no Brasil, que “estão tentando dividir o país duas cores”. Resta saber se após esta revelação sobre a Princesa Isabel sua imagem será novamente benquista pelo movimento negro, ou se persistirá em criar maniqueísmos, onde alguns são grandes heróis excepcionais, outros são grandes traidores, grandes vilões.
            Uma grande conquista veio na Constituição de 1988 e foi reafirmada no recente Estatuto da Igualdade Racial que é o direito da posse da terra das comunidades remanescentes de quilombo. A luta é bastante árdua, uma vez que, como já citamos aqui, o problema da terra no Brasil é antigo e seus donatários são nada flexíveis quando se trata de ceder um pouco do seu quinhão a uma causa social ainda que demasiado justa. As comunidades precisam legitimar sua estadia nas terras historicamente através de um relatório técnico assinado por antropólogo. No entanto, a imagem que a sociedade e o senso comum fazem de quilombo e suas “reminiscências” são de negros atrelados necessariamente a atividades culturais negras tradicionais tais como a prática do candomblé, capoeira, jongo, etc. Mas nem todas as comunidades são assim e nem tem que ser. O processo social vivo em que as relações se dão nos meandros de jogos de poder assinalam comunidades diversas em que a assimilação cultural é parte do processo. Estar integrado à sociedade circundante e/ou exercer atividades fora do âmbito das atividades “tradicionais” legitimadas não tira o direito dessas comunidades de se estabelecerem nessas terras. Se não pensarmos assim corremos o risco de folclorizar tais comunidades. Risco esse que se apoia inclusive na própria conduta radical do Movimento Negro Unificado, muito importante estrategicamente, mas que precisa ser repensada uma vez que muitas de suas demandas começam a ser atendidas, ao menos na teoria. Forjar uma identidade foi fundamental para a luta, mas pode acabar aprisionando os que estão fora desses costumes a uma necessidade de folclorização.
            Devemos ter em mente quando pensamos em quilombo não apenas Palmares, que foi sem dúvida um dos casos mais marcantes da história brasileira. Pesquisas recentes falam sobre quilombos espalhados por todas as regiões brasileiras com estratégias distintas. Além do mais temos o caso dos “quilombos abolicionistas”, que tangenciam os centros urbanos, quando não estão dentro deles, como é o caso do famoso Quilombo do Leblon, onde fica a atual zona sul carioca. Tais quilombos, diferentemente do modelo tradicional de resistência à escravidão, tem suas lideranças muito bem conhecidas, como afirma Eduardo Silva (1998), tem “cidadãos prestantes, com documentação civil em dia e, principalmente, muito bem articulados politicamente.” E continua:
Não mais os poderosos guerreiros do modelo anterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de instância de intermediação entre a comunidade de fugitivos e a sociedade envolvente. Sabemos hoje que a existência de um quilombo inteiramente isolado foi coisa rara. Mas, no caso dos quilombos abolicionistas, os contatos com a sociedade são tantos e tão essenciais, parte do jogo político da sociedade envolvente.

            É preciso recuperar a memória desses quilombos também, até mesmo para forjar uma identidade política em que mais do que destacar as diferenças, sejam pensadas as possibilidades de ação política junto à sociedade e ao Estado. A comunidade negra tem diante de si um grande desafio que é fazer o Estatuto da Igualdade Racial ser conhecido pela sociedade, discutido e, acima de tudo, respeitado. Isso quem fará são homens reais, e não idealizados.
            Na introdução do livro Liberdade por um fio – História dos Quilombos no Brasil João José Reis e Flávio dos Santos Gomes advertem que dizer que os quilombolas foram heróis diminui a riqueza de sua experiência e que o referido livro celebra a “luta de homens e mulheres que para viverem a liberdade nem sempre puderam se comportar com as certezas e a coerência normalmente
atribuídas aos heróis” (REIS e GOMES, 1998, p. 23). A história cotidiana dos homens é marcada pelas decisões, estratégias de sobrevivência e luta por seus ideais que precisam ser entendidas e interpretadas com a necessária ambivalência, que consegue enxergar as potencialidades positivas e negativas que todo evento carrega em si. Somente assim é possível construir uma história que valorize homens e não mitos.

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