Páginas

domingo, 23 de novembro de 2014

uma bala.

de resto, fixava o olhar em qualquer ponto que fosse. não duraria mesmo. a questão era apenas conseguir se concentrar na própria solidão. estava nervosa e não conseguia abstrair a existência das pessoas, que abstraíam seu choro copioso, as lágrimas inundando o olhar. na estação anterior elas ainda se restringiam ao canto do olho. uma puxada de ar mais forte, um tufão inventado, já era o suficiente pra secar-se - quantareia. mas foi um atropelo de gente. ela só queria sair dali, mas todos aqueles rostos, mortos de cansaço, desfigurados pela fumaça, pela rotina, pela indiferença, todos aqueles olhos esbugalhados, todos aqueles gritos anunciando a entrada no front, corpos de guerra, todos aqueles vieram pra cima dela, que não se movia. era tudo vermelho. ela então batia, todas as sacolas, coisas e trecos eram armas e gritou também. e gritou alto. e gritou que-se-foda e berrava, tropeçava, xingava, batia, ofegante, assustada. do lado de fora, baldeação, anda, rápido, atropela, espera outra porta e chora. pior que chorar por não ser gente o suficiente pra si, era ver as gentes virando manada pra poder andar. viu um monte de monstro. sentiu por dentro como era virar um monstro e nada era mais assustador que de autorreconhecimento nenhum, migrar pra total repugnância do não-ser. chorava. muito. soluçava. abriu a porta entrou. chacoalhava e chorava. e sentia que seu choro preenchia cada vão do vagão e seu transbordar de humanidade era incômodo. olhares iam ao limite de serem percebidos, viravam. como lidar? se sentiu menos gente, de novo. e chorava mas já nem pensava. só no engasgo e na estação por correr, mais um ônibus pra perder, outro funcionário pra convencer, outra madrugada por danar. um homem então foi de tal forma interpelado por aquele choro que já não negava. desconcertado, era quase como se fosse necessário desculpar-se por tamanho desaforo: não se lida com gente assim, a essa hora, no metrô. "sorrir na sala e chorar no quarto", lembrava do conselho da professora. ele respirava fundo, fez algum tipo de oração e avançou: "sua mochila está aberta", enquanto apertava a sua mão e lhe entregava uma bala. e todo aquele importa-se arrancou-lhe ainda mais lágrimas. apertava a bala feito amuleto e saiu. com uma bala e um gole de esperança.