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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

o caderno

a primeira música que aprendi ao piano se chamava "Caderno", a primeira pecinha. Dava o sol com polegar, esticava pra pegar o charmoso mi-re#-mi-re#-mi- e com o dedo pequenino acertava o segundo Sol, mais alto. eu era criança. e a essa altura também já sabia cantar, mesmo trocando a letra - coisa que até hoje atrapalha e muito minha vida de 'cantora' - "Aquarela" - e confesso que achava gozado o autor se chamar Toquinho - pensava em toco de lápis, coisa pequena, menino. [mundo doido].
lembro da capa dos cadernos da primeira série. uma amiga da minha mãe arranjou de encapá-los com tecido xadrez, um branco e amarelo - viu? nem era rosa! <3 - com direito a bichinhos de papel de carta.
a caneta foi um tabu que durou até o ensino médio.colegial.científico,  - sejalá o nome certo disso na minha época. Sei é que nos primeiros anos do fundamental a gente não podia nem pensava em brisar nessa coisa de escrever à caneta na escola. - e justamente por isso ela era tão desejada.
caderno. linhas. papelaria.

no caminho de volta pra casa da vó na quinta-série tinha a, então, segunda (hoje, maior e primeira) melhor papelaria da cidade. minha mãe caiu na besteira de ter ficha lá, e eu realizava em doses homeopáticas meu sonho de menina de ter uma só pra mim. vez ou outra ia pra casa lápis novo, caneta, lápis de cor, adesivo, cola, papel colorido e haja!
sempre gostei de me perder numa papelaria e ficar olhando aquele tanto de coisa, possibilidades de criação, cores por todo lado. queria uma só pra mim.  - muito mais vontade que talento e disciplina.

e aí a gente cresce. fichário. caderno de 12 matérias. meiadúzia de canetas bic. especializa o talento. escolha um curso. vestibular. escrita científica, citação. word. teclas. digitar. imprimir, formatar. recortar e colar só com control Z.

aí você vira professora - a primeira coisa que faz é ir a uma papelaria e comprar pastas! <3 - e na sala de aula se depara com celulares que fotografam lousas e com a pergunta "vai usar caderno hoje, fessora?"[e se sente velha e nostálgica.]

hoje eu fui à papelaria de gente grande. é. marquês de itu, concorrente da casa do artista, são paulo, telas, tintas. poisé. ando andando com gente que, ao meu ver, não cresceu. é. não ficou chato. continuou rabiscando, pintando, recortando, juntando as coisas, fazendo forma, bricolando e haja matéria. descobri há pouco tempo na vida o caderno sem linha.
os rabiscos, que nunca abandonei, na capa, na borda das coisa, no canto, no meio, no risco, agora não ultrapassam limites. os criam.
essa gente que virou gente grande mas não parou de desenhar usa caneta. é umas canetas diferente.

papelaria de gente grande tem preço alto. é coisa chique. teve moça com laço e lapela, olhar meio baixo, voz meio pra dentro e patroa com cara feia. preço grande.
descobri hoje que aquarela pode custar 200 reais - e eu era tão feliz com aquelas bolinhas maisomenos na infância...

criança quando fica triste ganha presente. ganhei um e me dei outros hoje. choveu em são paulo. andei o centro de são paulo. tenho cadernos sem linhas que tentem ordenar. tenho canetas, faço traços em azul, rosa, cinza e preto.

hoje, justo hoje, que vi gente grande ficar triste da partida de um menino velho de 97 anos. hoje, justo hoje cinza. hoje, manoel pai das desimportâncias e da martha, mulé grande que rabisca com a liberdade de uma criança. hoje, justo hoje treze, dia de voltar pra casa com mala cheia. dia de se olhar no espelho, se defrontar com o rabo do escorpião zanzando nos céus. hoje, justo hoje que a lua ruge com juba de leão, eu durmo suja de tinta buscando ouvir os desejos da menina que nunca deixou de rabiscar.


Esse é Manoel chegando no Céu.
verdade.
senão, é só uma belezura da filha dele, martha barros.