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sábado, 4 de janeiro de 2014

naquela mesa


Nunca se abraçavam. Ele via a barra da saia-de-secretaria passando apressada pela casa: papel-higiênico-nariz escorrendo, roupa-de-cama, frango assado, compras do mês, psicólogo. A voz alta nunca gostou de portas trancadas. Pudesse, invadia o banheiro e mesmo na hora mais íntima, na privada, no cheiro, se imisucuiria por cada poro. Cada cômodo da casa, por sua vez, era uma mistura de presença e ausência, plena. Não como o copo, que vazio está cheio de ar. Mas a superficialidade dos movimentos ativos e penetrantes, nutriam no menino uma cadeia de esperanças de paragens mais demoradas. E quieto, um dia, mesmo à contragosto de seus pulmões, ele foi embora. 
Levou na mala o lápis que ela apontava convicta e impaciente sempre que ele gentilmente tímido convidada ao ofício: "mãe, me ajuda com a lição?" - ela não sabia das confissões que tocava no rasgar o grafite desgastado contra a madeira. Alto, levava os pulos dados, incessantes, nas quadras e as braçadas salgadas. Levou dentro uma ressaca de alto mar.
Atravessou o deserto e deixou no seu rastro de água de lágrima. Venceu as fronteiras dos sofás vigiados e amava sob as máquinas de lavar. Escrevia cartas, poemas secretos, cravava os dentes nas coxas, nos decotes.
Ela via pela janela a vida passar, feito a Carolina. E da vizinha Janaína, com seus cabelos de espuma, sabia pouco ou quase nada, exceto das ferrugens a consertar. Os cômodos da casa extensões suas. Suas nervuras. Convicta, abalada, abandonada. Ferrugens na alma - se ela soubesse como Janaína, sua vizinha, é boa nessas feridas.
A barra da saia dela entretanto, não sairia de dentro, também, assim, tão fácil.
Pouco também avança essa escrita que sombreia os laços do real com pitadas blasè. Agora mesmo estavam ali, ao redor da mesma mesa, que o mundo roda... rememoravam no idioma natal - ventre, olhar, suor e partigiano - viagens que nunca fizeram, com roteiro de filme que nunca vi. Nas frestas das portas, dá pra espiar um amor cansado, mas vívido. De tropeços, com mancadas, muletas, aparelhos sonoros, controles, ventiladores, trancas nas portas, as lágrimas que rolam são afeto re-contido. Ele, meio bobo, com palavras nas mãos, ainda espera o abraço. Sem sombra, nem pavor, um milagre bate na porta: descem juntos pelo elevador e de fronte à porta de vidro, ele, não mais menino, e ela, não mais de saia, se tocam, se aninham e caminham com dedos entrelaçados pela orla da praia.







Cape Cod Morning - Edward Hopper