Imagina uma pessoa que nasceu em 1913. A família da mãe adorava uma seresta. A própria mãe tocava piano. Os tios viviam "vadiando". O pai era chegado nos versos. Foi estudar em colégio rigoroso. Imaginem que o menino respirou ares integralistas na universidade ao mesmo tempo em que cantava marchinhas inéditas no Carnaval. - as mesmas que hoje em dia a gente repete nostálgico de um passado que a gente nem viveu.
Não era muito difícil entender que o menino resolvera fazer Direito - um dos cursos mais frequentes dos poucos do começo do século passado. Ele tinha sua turma de amigos e gostava de cinema e conversava com os amigos sobre. - queria ser cineasta.
Mas desde cedo roubava os versos do seu pai pra dar pras namoradinhas - é gostava de mulher e como! E então publicou seu primeiro livro de poesia antes mesmo de se formar. Só com 20 anos.
E foi aplaudido. A comunidade católica gostou - afinal menino fora formado em seu ambiente.
Menino lança outro livro e tal e coisa e arranja uma bolsa pra estudar literatura em Oxford. Acho que foi de tanto ler os sonetos de Shakespeare no original que ele desembestou a fazer os mais belos sonetos que a língua portuguesa conhecera desde Camões. Um soneto a la ingleses e não como era a moda francesa aqui no Brasil.
O menino era libriano. Doido. Casou por procuração acredita?
de volta ao Brasil precisava começar a trabalhar, moço de família. E o convencem ao tal do concurso público (pouco mudou de lá pra cá). E na época se passava no Itamaraty por concurso. E passou. E seu primeiro posto foi nada mais nada menos que nos EUA. Um doce nas mãos da criança. O fanático por cinema ficou pertinho, pertinho de Orson Welles e de Hollywood.
O menino, que agora já era um homem de família com filha e tudo mais, ouvia Jazz. Foi conhecendo a turma que fazia aquele barulho maluco, filho do blues. Imagina então um cara que testemunhou de perto o racismo norte-americano? bem diferente do nosso? Viu um menino negro ser morto porque assoviara pra uma mulher branca. Soube da história de uma cantora negra que morreu porque não a receberam no hospital de brancos pós acidente de carro.
Um homem que viu a II Guerra começar e assombrar o mundo. Escrever crônicas sobre o desejo de paz, mesmo tendo aprendido com o livro do Eclesiastes que existe "tempo de guerra, e tempo de paz".
Imagine um homem que precisou viajar com um gringo pelo Brasil a fora para cair em si de que o seu país era um lugar repleto de contradições e deixar de andar à direita integralista para dar passos mais avermelhados à esquerda.
Imagine então um homem que vai pra França e lá encontra um cara maluco pra produzir alguma coisa de cultura brasileira. E aí esse homem se lembra de uma noite em que ouviu a batucada vinda do morro e baixou nele a vontade de transpor o mito de Orfeu pro morro carioca? O amigo ficou maluco e fala pro homem: poxa, bora filmar isso! e aproveita pra montar essa peça de teatro no seu país, uai!
O cara então um poeta respeitável, diplomata ainda por cima, comete a ousadia imensa de levar pros palcos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro um elenco de atores negros. E ali era só o começo da ousadia. - da qual sai endividado. O homem lembrou do menino que sempre gostou muito de música. E já que a peça era sobre um músico, por que não escrever os versos também a serem cantados? E por que não arrumar um parceiro pra musicar?
O homem então - que já era poeta, cronista, crítico de cinema, diplomata - vira definitivamente um compositor popular. Poesia e Música: Orfeu.
E aí então seus versos ganham os versos mas também os palcos. Ele vai brigando com o terno e a gravata e cantando...O homem então repleto de amigos faz música com gente viva, gente morta - nem Bach escapou. Faz música até sem saber que faz: musicam ele. O menino criado cristão agora era homem que canta orixás.
A essa altura o homem perde o emprego. Vira showman de vez. A essa altura o cara já casou um monte de vezes. A essa altura botaram o nome dele na reinvenção da música popular. A essa altura já tão falando mal dele: era um baita poeta e agora fica aí fazendo musiquinha com esse menino novo.
Muda pra Bahia. Fica mais chegado ao povo de Santo.
Imagina só um homem que fica falando por aí que é o branco mais preto do país.
Pensa num cara que casa nove vezes e não para de escrever nem canção e nem poesia - e que se morria de medo de avião.
Agora imagina ele sessentão Todo de jeans e bata? cantando em universidades e lendo um poema seu pros operários paulistas em pleno Primeiro de Maio?
Imagina um cara que não esquece sua veia católica e subverte A Arca de Noé pros pequenos, entre versos e canções?
Pensa num cara que tinha a casa aberta? Um brother mesmo... que viva cheio de amigos e sempre sentindo saudade deles... morrendo junto a cada vez que um morria.
Imagina um cara que morreu num dos seus lugares preferidos: a banheira - lugar em que gostava de escrever...
pensa só.
Agora pensa que tem músicas suas sendo cantadas num monte de lugar do mundo: por todos os continentes. Pensa que ele, que tinha um apreço formal a ponto de subverter as formas mais clássicas da poesia, é muito mal quisto nas universidades do seu país. "Poeta menor. Pequeno".
Poetinha. - camarada - que foi homenageado ainda em vida pelos seus.
De que vale seus sonetos serem recitados a torto e a direito e suas canções? Pensa numa dificuldade tremenda de achar bons textos por aí que falem dele? Pensa que no ano de seu centenário há vários programas de rádio contando sua história...
penso que no ano em que ele faz cem anos, se pá faz tanto frio em São Paulo quanto fazia na fria madrugada em que ele nasceu.