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quinta-feira, 26 de junho de 2014

o beijo no metrô bilíngue

Linha verde. Ana Rosa. Sentido Vila Madalena. Entraram no Paraíso. Ela com aqueles cabelos cacheados, imensos, a pela negra, o sorriso largo e branco. No rosto a bandeira pintada da França, assim como ele, loiro, de olhos claros, pele braaaaaaaaaaaaanca branca, todo enrolado na bandeira. Juntos e risonhos. Contrastavam no metrô não muito cheio de gente pós-dia-de-trabalho, se não era do estádio - como o itinerário parecia me contar que não - eles ao menos vinham de um clima de Copa, ver jogo e curtir: juntos. Eles se beijavam. Aquilo me incomodava. é. eu sei. me senti a repressora de uma repressão que eu senti tantas vezes por no auge da paixão beijar em lugares públicos. Mas ao mesmo tempo, o beijo deles me excitava. E preenchia todo o espaço. A impressão que eu tinha é que todo mundo estava vendo os dois, materializando ali, por exemplo, a razão de ouvirmos o metrô falando inglês, as placas de sinalização, as festas, os jogos, o turismo... tudo ali. nos dois. sutis.
E era a negra - pra ele, ou pro esteriótipo, a mulata - e o loiro do olho claro, gringo... "será que ela entende o que ele fala?" (oi? é sério que você pensou isso isabela?) me vinha aquele asco subindo pelo sangue da cena tão vezes dita e divulgada e ampliada e quista, mas ao mesmo tempo vinha a minha paranoia: e por que eu tô pensando que ela tá com ele por interesse? por que ela é preta? por que ela é preta e por isso deve ser pobre e precisar de um pinto-bem-de-vida? ela pode ser simplesmente negra, mulher dona do seu corpo querendo conhecer gente nova. E ele? precisa ser um filho da puta que só veio comer as brazuca? Rememorei minha adolescência quando nossa cidade foi invadida por jovens italianos que ficaram com várias meninas da minha turma, inclusive eu - e ali, nenhuma de nós queria um casamento, um visto internacional ou a grana deles. Mas era super divertido trocar com alguém de outro país, que fala outra língua, que sente outros gostos.
Por que, meudeusdocéu? 
"Só" porque ontem eu amanheci com a PrintScreen da página do Luciano Huck atrás de loiras solteiras a fim de achar o gringo dos sonhos? "Só" por que o turismo sexual é uma prática abominável e recorrente desde que esse continente é chamado de Pau Brasil? Por que somos vendidas como mercadoria?
Nossa imagem?
Dizem que somos as mais gostosas do mundo, as mais belas, mais sexys... e nos enchem as revistas "femininas" e de "adolescentes" com caras como ele, loiro, do olho claro e dizem "isso sim é homem bonito"?
Ao mesmo tempo, eu fecho a cara e lembro do Céu de Suely, que rifou uma noite de amor pra poder ir embora sem depender do sustento do afeto de homem algum. Xica da Silva. E tantas quantas mais mulheres nessa história de séculos de opressão de classe e gênero não viram no próprio corpo um meio de negociação?
Hermila Guedes em O Céu de Suely de Karim Aïnouz

E aí eu piro e penso noutra ainda: e daí se ela só quer sair com esse cara? Alguém enche o saco dos marmanjos que só querem "beijar, beijar, beijar?" E daí? Porque eu mesma já ouvi alto e em bom tom que eu não deveria ter ido pra cama com um cara que conhecia há pouco mais de uma semana... será que algum homem já ouviu isso?
E eu estou aqui dando voltas e voltas mentais enquanto vejo os dois ali, porque de repente, eu sorrio ao ouvir as gargalhadas de outras mulheres... e gargalhada de mulher pode ser perigoso né?
Na real, eu estou é tentando entender por que, mesmo escroto ao nível da cafetinajem explícita feita por um cara que tem uma projeção nacional, por que essa merda teve 22mil likes, só até o momento em que fizeram o print?
22mil pessoas acharam a ideia o máximo. muitas mulheres devem ter entupido a caixa de entrada com respostas de que por que querem o gringo dos sonhos...


Não sei se aquela negra linda que vi ontem no metrô mandaria um email daqueles. E nem se esse cara seria um dos gringos escrotos que vão topar essa besteira televisiva. Sei que eles estavam ali, rindo, se tocando discretamente. 

"Next station: Consolação. Acess to line 4, Yellow"

E saíram de mãos dadas.

E eu enquanto subia as escadas rolantes da estação Faria Lima, pensando na "Suely", do Céu de Suely, na Joe de Ninfomaníaca, no vai-tomar-no-cu da Dilma, no texto foda do Duvivier, no texto foda da Eliane Brum, dizia: "a gente dá conta sim, porra! frágil o caralho."

Ps.: esse post foi escrito ao som do álbum "Micróbio do Samba" de Adriana Calcanhoto. mais do que recomendado.