Páginas

segunda-feira, 14 de julho de 2014

'despertem'

A onda celeste era já uma ressaca. No centro de Buenos Aires,  coisa de uma da manhã, rostos cansados enchiam pontos de ônibus,  papéis picados cobrindo o chão,  se perdendo entre as folhas secas de inverno. A lanchonete 24h abrigava os famintos,  estampava caricatutas dos ícones pop do país. No balcão um homem de mochila aberta, barba na cara tentava vender uma máquina registradora de décadas atrás - era uma coisa, com botões, bem enformada... lia-se em seus olhos. Valor de uso, valor de troca, misturas de apreço,   necessidade, utilidades e desejos.
Finalmente chega o lanche do companheiro de madrugada. Entre uma mordida e outra e falas descompassadas em portulhano, eis que uma voz sobressaia.
Ele tinha pintadas na cara bandeiras nacionais, a espinha reta e uma voz que não cansa de chamar. De uma lucidez inebriante ele pedia, olhando nos olhos de todos: "despertem".

Se dirigia ao homem vestido sei-lá-eu se de segurança-policial e pedia "você que é uma autoridade me explique,  porque eu não entendo."

Aos poucos liguei sua fala ao que vi na TV do hostel horas antes: repressão policial no centro de Buenos Aires.  Cenas fortíssimas.  A mesma TV que não tem problemas em exibir no momento de maior audiência, intervalo da final, a feitura de mais de mil casamentos homoafetivos, não tem pudor em mostrar a truculência da sua própria polícia.

"Era uma momento de festa. Eu beijava minha menina, um beijo longo de cinco minutos. Havia uma mulher com uma criança de colo e eles simplesmente chegaram e nos baterem. Vi uma criança com sangue na cara."

A Argentina há muito não ia pra uma final. Uma multidão caminhava pelas ruas ontem, quando o sol da bandeira iluminava o centro. Portas cerradas protegiam os cafés da multidão sedenta que não encontrava telão pelas ruas pra ver os dribles do Messi. Não se passava incólume pelo telão imenso digital de frente pro Obelisco, ali, na Corrientes y 9 de Julho, que projetava a Coca Cola grande grande patrocinadora de uma alegria que ali, ela era incapaz de proporcionar.

Correndo contra a multidão pelas ruas, de volta ao abrigo do hostel,  para gritar escandalosamente como bons brasileiros,  já sabíamos de cor a parodia da canção de Creedence: é.  O grito de guerra deles é uma boa zoação com a nossa cara. - e que confesso que me irritava menos, bem menos, do que o "eeeeeeeeu sou brasileeeeeeeeiro".

Na fala daquele homem, indignado por apanhar durante uma festa popular nas ruas, eu encontrei mais uma vez mais proximidades do que as richas tão bem alimentadas pelo hábito e pela estupidez: a truculência da repressão policial, um verme que passa por todas as veias abertas da latino América, arregaçadas.  Uma latino América que pouco sabe de si, criada para saber mais de Hollywood do que seu próprio cinema.
Aliás,  perdão.  Aqui eu me lembro de uma conversa com um colombiano, que tem uma expulsão por militância estudantil da universidade pública - contra o desmonte da educação - , num hostel em Montevideo,  sobre o nosso desconhecer mútuo.

"O que você vai levar dessa viagem?" Me perguntou meu novo amigo, que com a voz embargada me mostrava a rua onde morreram 20 pessoas em 2001, falando das lutas, das multidões...

Eu levo meu sangue latino. E a lembrança do pedido daquele homem "despertem".