Lembro bem o meu sorriso de orelha a orelha quando eu comprei uma Folha e um Estadão. Até lágrima escorria: na capa tava lá os meninos do MPL num buteco no centro da cidade cantando a internacional e comemorando o que há poucas semanas parecia então impossível: a redução da tarifa. Pois bem. Não peguei os cadernos das manifestações.
"Esse é pra mostrar pros netos!" - eu tinha dito pro senhor ao meu lado. Ali puxamos prosa boa sobre a efervescência das ruas, sobre a necessidade mesmo de mudar tudo. E não era só com ele. Parecia que de repente todo mundo só queria saber era de consertar o país. Eu ouvia soluções desde o guichê da rodoviária, passando pelo taxista e o trabalhador do meu lado no busão, indo pro trampo... soluções, eu disse. nem eram só reclamações. gente botando pra fora.
bem. se era pra mostrar pros netos, esses jornais não podiam ir pra aula hoje. pronto.
a gente trabalha com fotografia com os meninos. mais que foto, imagem. e eis que a gente teve que conjugar discussão sobre alteridade-identidade, com cartaz, papel craft, tesoura, cola, canetinha e recortes de revistas e jornais: quem é você? - que imagem te representa para além do contorno do seu rosto?
manhã e tarde, ritmos e ritmos, escolhas, poucas recusas. o eco das propagandas nos jornais saindo pelas bocas. os celulares estavam ali quase em todos os autorretratos. "gosto disso, daquilo..."
- gente. escolham imagens que representem vocês. por exemplo, olhem para cena que tá sendo retratada e vejam se gostam dela, do que ela quer dizer, do que tá acontecendo ali... você também é aquilo?
se o tema é identidade, foi mesmo um menino da segunda turma que disse que eu me parecia com a Velma do Scooby Doo. Me dizer isso foi o suficiente pra eu perceber que na real, mais do que os meus óculos enormes de Velma, é o parceiro de trampo que se parece o Salsicha. Ele que andou espalhando que eu cantava e pra escapar do "canta enquanto a gente faz", eu dei o play no Uakiti. - ai que esse povo tocando Beatles era qualquer coisa de meditação no meio da muvuca de papéis, colas, gente e cadeiras.
Me levantei, passando os olhos nos cartazes, cheguei a um que me levou o coração a boca. E aí não sei sei dizer ao certo a motivação do espanto. Confesso que na hora eu pensei: "não é possível que eu peguei o meu jornal sem querer!!" - mas me acalmei lembrando que o Salsicha tinha levado um monte também... aí eu já tava sorrindo e quase chorando.
Comecei a chamar meio inquieta: "de quem é esse cartaz? de quem é?"
Veio um menino, dos mais quietos e tímidos. Dedicado, ele tava levando à sério a atividade. Perguntei então por-que-cargas-dágua tinha escolhido aquela imagem:
"Ah! porque eu gosto de ficar com meus amigos, de comemorar com eles. Eles estão tão alegres aqui na foto"
(aí sim eu quase chorei.)
- você sabe quem são essas pessoas na foto?
- não!
- lembra das manifestações de junho? que aconteceram por causa do aumento do preço do ônibus?
- hmm
- então. esse pessoal da foto ajudou a puxar as manifestações. Nessa foto eles estão recebendo a notícia de que o preço tinha baixado! Eles estão comemorando que os 20 centavos caíram... ó! tá vendo ali na legenda...
e li a legenda pra ele.
- fiquei muito feliz que você escolheu essa imagem!
é. não reproduzo a legenda aqui porque de fato, olhando meu montinho ali, aquela imagem realmente saiu do meu-arquivo-para-posteridade...
imagem por imagem, achei ela aqui e no blog do azedo do reinaldo com a legenda "passe-livre-cerveja". imagem por imagem, a mágica aqui, é ver que o menino gostou de ver o gosto da vitória de gente que luta.
hoje o MPL marchou de novo pelas ruas, de onde dizem que nunca saíram. não foram eles mesmo quem inventaram as ruas em junho e nem são eles responsáveis por puxar a turma e o tal do gigante desmemoriado e sonolento.
trabalhadores. bandeiras vermelhas. catracas queimadas. gente das ruas. meninos de rua. mulheres e meninos. o barulho das bombas de efeito moral. disparos. câmara. ocupar e resistir.
cansada. toda a linha verde. toda a linha vermelha. os contornos de busão. de são mateus a lapa. assim são paulo vai se desenhando no mapa dos meus afetos.
história pra mais de metro pra contar pros meus netos...
ps.: não escapei do "canta, professora". uma das minhas xarás - que também é metida a cantante - sussurrou: "canta um Chico". hm... "tá. essa é pra entrar no clima porque eu tô indo pra manifestação daqui a pouco...
...o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração.