Páginas

sábado, 25 de maio de 2013

Com o pé nessa estrada, qualquer dia a gente se vê: reflexões sobre o outro em mim em “Estrada para Ythaca”.


Para Betto
e Bruno Morais.





Sei que às vezes uso
palavras repetidas
Mas quais são as palavras
que nunca são ditas?
Quase sem querer – Legião Urbana.



            Se Bakhtin (e toda a reflexão que gira em torno do seu nome, ou seja, a obra do chamado “círculo de Bakhtin”), pois bem, se Bakhtin estava certo e a formação da consciência, da identidade é um processo dialógico, no qual me constituo a partir da existência e da palavra do outro, até que ponto consigo distinguir aquilo que é a minha singularidade? Como ser singular quando sou uma colcha de retalhos? Um emaranhado de citações?
            Talvez a resposta esteja justamente aí, no próprio emaranhado de citações.
Proponho-me a escrever sobre um filme descoberto por acaso. No mundo de hiperlinks, percorrendo uma busca por filmes nacionais em um site que disponibiliza links para baixá-los, li o título de um disponível para donwload: “Estada para Ythaca”. Nos hiperlinks da minha cabeça, o título me remeteu a um poema de Konstantinos Kaváfis com o qual havia sido recentemente presenteada numa madrugada poética. “Ítaca”. “Fizeram um filme?” Baixei.
            Um acaso tão poético quanto seu estopim: “Estrada para Ythaca”, que de fato fora inspirado no mesmo poema que me levou a ele, como veremos a diante, é sem dúvida um dos filmes, digamos, mais nacionais que já vi, partindo de uma percepção minha muito bem situada no tempo e no espaço: minha vivência como “músico de barzinho” e a escuta das canções que fazem as trilhas das madrugadas. O filme “Estrada para Ythaca” no sentido bastante bakhtiniano da ideia é um emaranhado de citações, numa composição intergenérica, seja pelo próprio diálogo com a poesia de Konstantinos explícita seja no título, seja na reprodução da mesma na sequência final do filme, seja pelas citações de frases famosas e, principalmente, pelas canções que o compõem e constroem o seu sentido.


            “8, 7, 6, 5, 4, 3, 2”
Um céu noturno e nublado anuncia o início do filme e o letreiro nos conta que ele é apresentado por “Irmãos Pretti & Primos Parente”. O silêncio do céu que anunciou a produtora cearense “Alumbramento” e também o título do filme é quebrado pelo som do teclado que marcará a atmosfera do filme, aparecendo em momentos cruciais. De fato, digo desde já que se as canções são de grande importância na constituição do sentido do filme, as intervenções instrumentais também o são e tudo isso fica evidente por se tratar de um longa que preza pelo silêncio. É um filme lacônico. De poucos diálogos, de muitos silêncios.
Junto ao teclado que finaliza a sequencia do céu azul, lemos então o poema:

Até logo, até logo, companheiros,
Guardo-vos no meu peito e vos asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro futuro.

Adeus, amigos, sem mãos nem palavras
não façam um sobrolho pensativo
Se morrer, nessa vida, não é novo,
tampouco há novidade em estar vivo.


Em seguida, vemos uma foto, com um gordinho barbudo e sorridente e os dizeres: “JÚLIO 1979-2009”. Viríamos saber no final do filme, já nos créditos, que tal poema trata-se dos últimos versos do poeta russo Serguei Iessiênin, traduzidos por Augusto de Campos. E de fato são mesmo os últimos versos, redigidos pelo poeta antes de seu suicídio. O filme começa com a morte. Júlio morreu. Teria se matado como Serguei? Porém, mais do que com a morte, o filme começa com a amizade. A menção aos “companheiros” e “amigos” no poema que abre o filme não é casual. Após a leitura do poema não lemos o nome do seu autor original, mas vemos a foto de Júlio e o ano de nascimento e morte. Na construção do sentido, é ele o autor daqueles dizeres ali, é Júlio quem diz aquelas palavras. E nas sequencias seguintes, iremos conhecer a quem ele se dirige.


Da foto de Júlio, vemos então um brinde. Muitas garrafas na mesa e copos cheios de cerveja se encontrando no ar.  Somos apresentados em closes aos companheiros de Júlio. Quatro homens, um a um, barbudos à sua maneira, cada um com o seu silêncio. Silêncio que é interrompido, ou melhor, complementado com uma voz que canta “Sempre só...”. Vemos então o puxador da canção, e já no segundo verso, conseguimos ouvir as demais vozes que passam a acompanhá-lo. A canção é “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho.
A melancolia da letra de Nelson casa perfeitamente com as frases melódicas construídas em descidas cromáticas (intervalos de meio-tom). Conforme a semiótica da canção de Luiz Tatit (2008), a melodia trabalha com o prolongamento das sílabas para indicar o estado de melancolia e sofrimento, como percebemos logo no início da canção com o prolongamento das sílabas “sem-pre só”.
Que todos acompanhem a letra não é algo tão espantoso, mas é bonito perceber o coro respondendo à segunda parte da música:
Homem: A luz negra de um destino cruel
            Coro: Aaah (em descida cromática)
            Ilumina um teatro sem cor
            Aaah
            Onde estou desempenhando o papel
Aaah
De palhaço do amor
Sempre só
E a vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim
Estou chegando ao fim.
           
            O homem que cantou “Luz Negra”, nenhum dos quatro apresentados em close no início da sequencia, após o brinde, sai de foco. Voltamos aos companheiros e em novo brinde um deles diz: “Minha vingança é viver bem a vida”. Tal frase é uma variação de um trecho muito conhecido de Caio Fernando Abreu. Naquele contexto, entretanto, após a canção de Nelson que fala sobre a solidão e também após sabermos da morte de Júlio, resta entender que a vingança aqui diz respeito a isso, e viver bem é a resposta a tal quadro.
Após o copo de cerveja virado pelos quatro, um deles com um livro em punho cita Napoleão Bonaparte: “Do sublime ao ridículo é só um passo”.
 Do outro lado do bar então, um clássico do rock nacional é entoado por uma nova figura, que destoa dos quatro companheiros barbudos, dentre outras coisas, pela roupa, terno e gravata: quando criança só pensava em ser bandido ainda mais que com um tiro de soldado pai morreu... “Faroeste Caboclo”, Legião Urbana. Mas os quatro amigos recusam o clássico: “Cala a boca!”, e censuram a canção de Legião Urbana.
Enquanto prosseguia cantando “Era o terror da sertania onde morava...” o primeiro dos quatro amigos, o que primeiro conhecemos, que brindara a sua vingança, diz ao cantor de Legião “Parabéns”. Sugere que ele guarde melhor a chave do seu carro, quando alguém solta um dos jargões mais famosos da música de bar brasileira: “Toca Raul”.
Trata-se de uma questão de repertório, aqui. Não falo repertório no sentido musical do termo, mas muito dificilmente um estrangeiro, que não viva no Brasil, evidentemente, apreende o sentido da expressão “Toca Raul”. Trata-se de um horizonte comum de percepção, de conhecimento compartilhado, de cultura como coisa ordinária e comum. É necessário ter a dimensão, e aí é a despeito do próprio Raul Seixas, da importância que a canção popular tem para a constituição sócio-cultural brasileira. Mais que um desenvolvimento literário num sentido clássico, nos constituímos e nos refletimos enquanto nação, enquanto sociedade, nos problematizamos, nos entendemos e nos identificamos através da forma da canção popular. E há inúmeros trabalhos que versam a respeito, para além da percepção factual e cotidiana. E aqui, juntamente à socióloga, quem escreve é o músico de barzinho, categoria de artista e trabalhador musical que testemunha através do seu ofício a importância da canção na formação social brasileira.
Fora numa noite de sexta-feira que a socióloga que existe dentro da cantora teve o insight de se lembrar do filme “Estrada para Ythaca”. O bar estava lotado, a madrugada já avançava. No palco com outros músicos, dentre eles seu irmão, eu percebia uma geração de pessoas entoando em coro canções de mais de vinte anos atrás com a vivência atual de cada uma daquelas palavras. Em um tempo onde se apregoa o fim ou no mínimo o mal estar da canção, eu testemunhava no ganha-pão de meu irmão músico a celebração da canção popular, brasileira ou não. Algumas músicas eram tão conhecidas a ponto de serem cantadas nos mínimos detalhes, desde os intervalos, às paradas da bateria, aos riffies e solos instrumentais, numa polifonia harmônica. Nós mesmos músicos no palco com pouco dispúnhamos de equipamentos, instrumentos e microfones por conhecermos tão bem algumas canções éramos capazes de nos inserirmos naquela narrativa. Conhecemos todas as vozes, somos capazes de nos dividirmos e entoá-las: é quando singularidades distintas, seres únicos dizendo (cantando/tocando) coisas diferentes criam um todo harmônico, capaz de comunicar.
Naquela noite foi interessante perceber o que se cantava com tanta verdade. Fugindo da chamada linha única e evolutiva da MPB, adentrando pelas linhas paralelas sobre as quais fala Hugo Sukman (2011), a música de fora do eixo Rio-São Paulo era aquela que melhor traduzia a indignação, angústia e dor embriagada daquela geração classe média alta: o nordestino Zé Ramalho (assim como ele, os sempre lembrados Belchior e o próprio Raul Seixas), o rock brasileiro seja com Legião Urbana, que olham e falam a partir da contraditória e nova Brasília dos anos 1980 ou os “porto alegrenses” Engenheiros do Hawaii. Para não mentir, o eixo do “sul(deste) maravilha” é contemplado na febre dos anos 2000, Los Hermanos, onde os fãs são capazes de entoar cada frase melódica de cada sopro, cada intervalo, cada batida, em coro alto e forte.
Na embriaguez das madrugadas nos bares é a música periférica de décadas atrás que traduz a revolta e a crítica ao hoje, na reafirmação de que a arte antecipa e antevê. Ou ainda é a melancolia do agora, representada pelos Los Hermanos.
O músico de bar está lidando diretamente com seu público, numa relação calorosa e algumas vezes até mesmo difícil: no limite entre a admiração do trabalho, um quase louvor desmedido e o pedido incansável por uma canção que se quer ouvir como se o músico fosse um mero aparelho de som, uma jukebox.
A despeito da minha madrugada de epifanias sociológicas, o fato é que não é necessário ser músico de bar para sentir a familiaridade a que nos remete a sequencia do filme que se passa no bar, no alto da madrugada, com a lembrança das canções.
Depois do grito de “Toca Raul” e os resmungos “Raul... Raul é bom”, alguém puxa uma canção de Chico Buarque e Caetano Veloso, “Vai levando”.
Interessante notar a espontaneidade do canto. O que importa é lembrar-se da canção e cantá-la, mais do que fazê-lo certo. No descompromisso e na dificuldade de lembrar-se de uma canção de letra tão longa, os versos saem todos de improviso. Trata-se aqui da apropriação espontânea da canção, mais do que de um jeito certo ou errado de cantá-la. Numa espécie de colagem dadaísta, os personagens do filme cantam aquilo que mais marca da canção, chegando a inventar um verso todo novo a partir do princípio básico da estrutura formal da estrofe:
Mesmo com toda essa Brahma,
com toda a grama,
com toda a trama,
com toda a ama...
A gente vai levando...
A gente vai levando
A gente vai levando
A gente vai levando essa vida![3]

É então a vez de cantar mais uma conhecida música do nosso cancioneiro. E é novamente o homem de terno e gravata quem entoa os versos de “Meu Erro” dos Paralamas do Sucesso:
Mesmo querendo,
Eu não vou me enganar
Eu conheço os seus passos
Eu vejo os seus erros
Não há nada de novo
Ainda somos iguais
Então não me chame...
Você diz não saber
O que houve de errado
E o meu erro foi crer
Que esta...
Bastaria
Ah meu Deus era tudo que eu queria...
Não me abandone jamais
(vocalize: Panapanapanapanpan...)
                                                                                             
            Note que em relação à versão original[4] alguns versos não foram cantados, algumas frases não foram terminadas. A entoação sofrida do homem bêbado enfatiza alguns versos e por fim, mais uma vez está presente o recurso de cantar os riffies instrumentais da canção, demonstrando sua extrema familiaridade com ela e, também, como há aspectos na composição formal das canções que constituem sua singularidade e constroem sentido a ponto de serem lembrados e entoados em situações como essa: bêbados num bar, cantando o fim de noite.


            “Vou para Ythaca”, diz o tal primeiro amigo, o mesmo que brindara a vingança, o primeiro que vimos após o epílogo de “Júlio 1979-2009”. O homem de barba, bigode e chapéu branco anuncia na mesa de bar, sem entoação de poeta, o seu destino: “Vou para Ythaca”. O amigo então responde: “Nós vamo junto”.
 - Tô indo embora. Cansei dessa merda!
 - A gente lhe acha.
- Vou embora andando.
            A música aqui então novamente tem vez. Não mais a canção popular, mas como uma espécie de anúncio de um novo momento no filme, o silêncio do filme dá lugar ao canto melancólico da gaita de um dos quatro amigos. A fotografia do filme, claramente muito simples e sem grandes recursos, é muito precisa e autoral. Vemos ao fundo do tocador de gaita, homem de barba e bigode, por detrás das garrafas vazias de cerveja, os outros dois amigos se abraçarem após a saída do homem de chapéu branco.
            Finda a música, a mão de um dos quatro é vista tomando a chave do carro, mal guardada, do homem de terno que dorme sobre a mesa de bar. Será o carro desse homem que levará os quatro amigos para Ythaca. Após o arranque bêbado, o primeiro destino dos três é encontrar o andarilho homem de chapéu branco. Não sem muitos palavrões, numa linguagem chula, baixa e familiar, como Bakhtin bem descreveu no trabalho sobre Rabelais (2008), o homem de chapéu branco entra no carro iniciando então a travessia rumo a Ythaca.
            Evidentemente pelo sotaque e pela paisagem sabemos que estamos no nordeste brasileiro e de carro muito dificilmente se chegaria à famosa ilha grega de Ythaca, cuja peregrinação de Ulisses de volta fora heroicamente contada na Odisseia de Homero. Não é rumo a Ythaca, literalmente a ilha grega, que partem os amigos, mas à Ythaca ressignificada no poema Konstatinos Kaváfis.
Mais que o lugar propriamente dito, o poema de Konstantinos narra a busca pelo sonho, no qual Ythaca deve estar sempre na mente, guiando os passos durante a travessia, o caminho, esse sim o verdadeiro tesouro, no qual se aprende e apreende as verdadeiras riquezas do caminhar.
           
ÍTACA[6]

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Faz votos que o caminho seja longo![7]

Começamos então a acompanhar a travessia dos quatro amigos. O filme lacônico mostra cenas banais de uma viagem de improviso entre amigos: arranjar comida, as horas intermináveis de estrada, algum canto para dormir. Entretanto, conforme a crítica de Fábio Andrade nos aponta, o filme trabalha com o enquadramento de forma bastante singular, que acaba por dedicar “enquadramentos de grande sobriedade e rigor para situações muitas vezes encenadas de forma esdrúxula e alucinada” E continua:
Há, por exemplo, uma estranheza nas opções de enquadramento do filme que parece vir da convivência de um rigor visual bastante claro com a incorporação de supostas “imperfeições” – como um excesso de teto quase sempre constante que privilegia um espaço grande acima das cabeças das personagens, sem com isso gerar um sentido que vá além do estranhamento visual.  (ANDRADE, 2010, s/p.)
           
            Algumas cenas são cruciais, como quando da troca de pneus. Dois dos barbudos o fazem, enquanto os outros dois os esperam à beira de uma casa abandonada. Novamente a palavra do outro para ilustrar e dar sentido à cena: um deles de caderno em punho cita Groucho Marx e diz: “Ninguém fica completamente infeliz com o fracasso do seu melhor amigo”.
            Outra cena que constitui a singularidade do filme, é a embriaguez e dança dos quatro amigos numa noite iluminados apenas pelos faróis do carro. À primeira vista o foco da câmera muitas vezes parece estar deslocado, mal arranjado, mas no desenrolar da cena, percebe-se de que ela fora calculadamente colocada para captar a posição das personagens ali enquadradas. São enfoques feitos de modo com que em apenas num movimento de zoom, de aproximação, a imagem capte o todo da cena, sem ter que se deslocar, como na cena em que o nosso primeiro barbudo, o do chapéu branco, ao amanhecer sozinho em uma pedra, visto de longe, pega a foto do amigo Júlio, para viver a saudade ao som do estratégico e melancólico teclado que soa ao fundo.
            Comer juntos em silêncio. Chorar sozinho de saudade. um ombro amigo que chega para acompanhar. Uma caminhada dos quatro amigos no qual o som dos passos ganha destaque, a sensação da busca, o céu nublado, e então desnorteados, como a câmera que os registra, eles correm. Com os pés no ar, a cena então se congela e então é novamente a canção popular que anuncia uma virada para o filme: ouvimos uma voz que canta o refrão de “Divino, Maravilhoso”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.  E vemos então Júlio, numa encruzilhada.
            Através do discurso de Júlio percebemos que a busca por Ythaca não é apenas uma viagem de enfrentamento da dor e da saudade do amigo recém-falecido, mas a própria busca pelo fazer cinema. Aqui nos defrontamos com uma metanarrativa, na qual o filme, autoral e alternativo desde seu início, ainda que costurado exclusivamente através da fala do outro, reflete sobre fazer cinema, o filme que pensa sobre o filme. Júlio aponta para a sua esquerda, direita do telespectador e diz: “por aqui, o cinema desconhecido, de aventuras” e apontando para o outro lado, diz: “e por aqui, o cinema do terceiro mundo, perigoso, divino e maravilhoso” e repete apontando para o mesmo lado “e por aqui, o cinema do terceiro mundo, perigoso, divino e maravilhoso”. É para este lado que a placa redonda situada um pouco atrás de Júlio, na qual está escrito “Ythaca”, aponta.
            De volta à estrada e ao caminho, os amigos novamente no carro, quando no meio da madrugada luzes coloridas os hipnotizam introduzindo-nos a uma nova sequencia, numa paisagem distinta do sertão visto até então. Sequencias de matas verdes e rios invadem a tela: o que antes era seco, agora é fértil e vivo. Uma nova música introduz, de modo semiapoteótico, os amigos: os quatro agora estão de barbas feitas. Vemos o caminho. A travessia. Os quatro chegam então à encruzilhada onde vimos Júlio e seguem, como é de se esperar, o caminho que a placa indica para Ythaca, do cinema de terceiro mundo: divino e maravilhoso.


            A estrada (n)os leva então de volta ao lugar do começo do filme: o bar. Entre um bar e outro, entre o começo e o fim, o caminho, a busca por Ythaca. Aparentemente chega-se ao “mesmo lugar”, um bar, mas eles já não são mais os mesmos. Entre um bar e outro o caminho. A travessia. A experiência da caminhada. Ela se reflete na própria aparência dos quatro. As barbas grandes e de diferentes cortes de cada um deles na primeira parte do filme, tão singulares a ponto de elas próprias constituírem uma das logos do filme, as barbas não estão mais ali. São outros fisicamente.
            Mas é, novamente, a própria canção popular quem irá demonstrar que a travessia trouxe aos amigos de fato algo novo e que eles de fato se encontraram com a memória e o legado do amigo morto.
Eles já estão bêbados. A mesa está cheia de garrafas vazias. Após os brindes um deles canta o clássico de Paulo Vanzolini, “Volta por cima”:
Chorei,
não procurei esconder,
todos viram
fingiram
pena de mim não precisava
ali onde eu chorei qualquer um chorava
dar a volta por cima que eu dei
quero ver quem dava
(aos poucos os amigos engrossam o coro e começam a batucar na mesa)
Um homem de moral
Não fica no chão
Nem quer que mulher
Venha lhe dar a mão
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta sacode a poeira e dá volta por cima.
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta sacode a poeira e dá volta por cima.

Eles então propõem um brinde à amizade, força motriz de todo o filme. Ela ali evocada, traz à luz Júlio, que vemos entrar pelo bar. Sim. Ao brindarem a amizade eles selam e trazem pra junto de si o amigo morto: ele está e revive na celebração da amizade.
Após a aparição de Júlio, percebemos mais uma vez que Ythaca está na mente dos amigos, como o poema anuncia, que a travessia transformara os quatro quando um deles puxa o refrão: “é preciso...”. Para quem acompanhou o filme até aqui, a primeira canção que vem à cabeça é “Divino, Maravilhoso”, até porque, quem cantara “é preciso” o fizera na entoação dessa canção. Mas ele apenas cantou o começo, “é preciso”. Os amigos comentam: “essa é boa”, mas não prosseguem o verso. Até que alguém continua cantando “amar...” Novamente Legião Urbana irrompe no bar. Ao perceberem que se tratava do refrão de “Pais e Filhos”, os quatro continuam rindo em tom de deboche: “as pessoas como se não houvesse o amanhã”. É fato de que a melancolia e a revolta que Legião Urbana representa para certa geração, como a que testemunhei no bar naquela madrugada já citada, não tem espaço no filme. Se em alguns ambientes a memória da banda Legião Urbana e seu célebre vocalista e compositor Renato Russo são entoadas com reverência, em “Estrada para Ythaca” definitivamente não o é. De tal forma que o amigo que se levanta da mesa após cantar o refrão de “Pais e Filhos” tropeça como percebemos pelo barulho e a reação dos companheiros.
Como se houvesse um corte, uma correção de uma cena que não dera certo, voltamos a ver os quatro amigos na mesa do bar e agora sim eles cantam juntos o refrão de “Divino, Maravilhoso”:
É preciso estar atento e forte
Não temos de temer a morte.

A lição de Ythaca fora aprendida. Tanto o é, que lemos então o trecho do poema de Konstantinos Kaváfis:
"Mantenha sempre Ythaca em sua mente.
Chegar lá é sua meta final,
Mas não tenha pressa na viagem.
Melhor que dure vários anos;
E ancore na ilha quando você estiver velho,
com todas as riquezas que você tiver adquirido no caminho,
sem esperar que Ythaca irá enriquecê-lo.

Ythaca terá lhe dado a linda viagem.
Sem ela você nunca teria partido,
E ela não poderia dar-lhe mais...
Tão sábio que serás, com todo conhecimento,
Já terás entendido o que significa Ythaca.[9]"

Um abraço dos quatro encerra a viagem (e o filme) e descobrimos ali no letreiro que os irmãos Pretti e os primos Parente, são os quatro atores barbudos do filme e eles junto a outros poucos (amigos?) fizeram tudo: desde a direção, produção, roteiro, fotografia, som e montagem.
 A singularidade do filme, de fotografia e enquadramento muito simples, mas sempre muito precisos, juntamente ao fato de sabermos que poucos foram os seus idealizadores e executores, nos remete ao lema do Cinema Novo que parece ter enfim encontrado possibilidades sócio-históricas de realização mais factíveis do que os anos 1960: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. O desenvolvimento tecnológico de hoje em dia possibilita com maior facilidade a execução dessa ideia. O próprio discurso de Júlio nos remete a Glauber Rocha e seu grito pelo cinema do terceiro mundo. Eis uma reconciliação histórica. Da vontade de potência a potência ativa em cinema que se quer autoral, confessional e manifesto.
 E aqui voltamos ao aspecto autoral e ao nosso raciocínio primevo: o filme “Estrada para Ythaca” é todo ele construído através da fala do outro. As canções costuram o sentido e é através de uma delas, inclusive, que entendemos a busca por Ythaca e a sabemos completada no interior de cada um dos quatro e, mais, na própria execução do filme que é, em si, a própria busca de Ythaca para os quatro jovens atores/produtores/diretores.
A partir do método dialético-dialógico de Bakhtin e o círculo em torno ao seu nome, podemos considerar este filme como intergenérico. Ainda que o filme seja por natureza um gênero que mescla, mistura, flerta com diversos outros gêneros, no caso específico de “Estrada para Ythaca” toda a construção de sentido, toda a elaboração formal e estilística passa pela citação, pela necessidade de dialogar com outros gêneros. As poesias citadas, as canções cantadas, as frases famosas citadas, todas elas existem independentemente do filme e possuem sentido em si. O filme, entretanto, é costurado a partir desses outros gêneros e precisa deles para construir sentido. O título e o mote do filme vêm do poema de Konstatinos Kaváfis. A aparição de Júlio, explicada pelo poema de Serguei Iessiênin, as canções que refletem o estado de espírito de cada um dos lacônicos personagens.
Desta forma, tal como na nossa própria constituição como seres singulares através de seu processo dialógico, o filme se constitui através da fala do outro. A fala do outro, entretanto, não nos impede de ouvir a intenção e o sentido daquele filme singular. Mesmo que usemos sempre “palavras repetidas”, a cada nova enunciação nós a inserimos em novos contextos, outras arquitetônicas, nas quais este novo situar-se noutro tempo e espaço nos remetem a novos sentidos. O meu lugar único no tempo e no espaço é em si a minha garantia de ser autêntico, ainda que me utilize da palavra do outro, desde que meu ato seja responsivo e responsável. Ou seja, desde que, não me utilizando da palavra do outro enquanto (falso) álibi, eu esteja disposto a ocupar meu lugar único e a partir dele dizer e viver por inteiro a singularidade da minha existência.
O próprio diálogo interno que estabeleço entre diferentes referências já mostra a singularidade. Groucho Marx, Napoleão, Nelson Cavaquinho, Paulo Vanzolini, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Serguei Iessiênin se encontraram no diálogo que os Irmão Pretti e os Primos Parente forjaram.
Eu, por minha vez, ao encontrá-los imersos nesse todo coeso teci teias de sentido que, por mais que possam dialogar com aqueles que partilhem do mesmo repertório que eu, foram tecidas pela minha singularidade, minhas vivências e experiências.
Afinal de contas, tendo Ythaca sempre em mente, aprendemos que é a caminhada, a travessia, os encontros que tecem o que somos, que nos enriquecem. Por isso, faço votos de que o caminho seja longo...







BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Fábio. Quinto dia: Entrando em movimento - Estrada para Ythaca, de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes. In. Revista Cinética, Janeiro de 2010. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/tiradentes10dia5.htm. Acesso em 13/09/2012.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Ed.HUCITEC - Ed. UNB, 2008.
_______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______. (VOLOCHINOV) Marxismo e Filosofia da Linguagem problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 8. ed.  Tradução por Michel Laud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997.
_______.Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Carlos Alberto Faraco e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
DURRELL, Lawrence. O Quarteto de Alexandria. Tradução José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
TATIT, Luiz. Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume 2008
_______. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.


FILMOGRAFIA:
ESTRADA PARA YTHACA (2010) Ficção • HD • 70min • CE/Brasil
Ficha técnica:
Direção, Produção, Roteiro, Fotografia, Som, Montagem:
Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti
Elenco:
Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Rodrigo Capistrano, Uirá gos Reis, Ythallo Rodrigues
Figurino:
Lia Damasceno, Themis Memória
Pré-produção:
Carol Louise
Produção executiva:
Guto Parente
Música original:
Luiz Pretti
Produção musical e Arranjos:
Uirá Dos Reis
Projeto gráfico:
Fernanda Porto & Filipi Acácio
Produtoras: Alumbramento Filmes
Informações disponíveis em: alumbramento.com.br e em
https://www.facebook.com/alumbramento




CANCIONEIRO:
Luz Negra (Nelson Cavaquinho)
Meu Erro (Hebert Vianna)
Vai Levando (Chico Buarque e Caetano Veloso)
Volta por Cima (Paulo Vanzolini)
Divino, Maravilhoso (Gilberto Gil e Caetano Veloso)
Faroeste Caboclo (Renato Russo)
Pais e Filhos (Renato Russo)
Quase sem querer (Renato Russo)
Saudade dos Aviões da Pan Air  (Milton Nascimento e Fernando Brant)
Tema do Amor de Gabriela (Tom Jobim)
Nada será como Antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)




[1]Mestranda em Sociologia/Ciências Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia/Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp Araraquara. Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca. Bolsista CAPES. Isabelamoraistp@gmail.com
[2] Trecho de “Tema de Amor de Gabriela” de Tom Jobim
[3] Verso original de “Vai levando” (Chico Buarque e Caetano Veloso): Mesmo com toda a fama, com toda a Brahma/ Com toda a cama, com toda a lama/ A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando/A gente vai levando essa chama
[4]Letra original de “Meu Erro” (Hebert Vianna): Eu quis dizer/você não quis escutar/ agora não peça/ não me faça promessas/ Eu não quero te ver/ nem quero acreditar/ que vai ser diferente/ que tudo mudou/ Você diz não saber/ o que houve de errado e o meu erro foi crer/ que estava ao seu lado/ Bas notaria!/Ah meu Deus era tudo que eu queria/ Eu dizia teu nome, não/ me abandone./ Mesmo querendo, /Eu não vou me enganar/ Eu conheço os seus passos/ Eu vejo os seus erros/ Não há nada de novo/ Ainda somos iguais/ Então não me chame/ Não olhe pra trás./ Você diz não saber /O que houve de errado/ E o meu erro foi crer/Que estava ao teu lado/ Bastaria/ Ah meu Deus era tudo que eu queria/Eu dizia teu nome Não/ me abandone jamais.
[5] Trecho de “Nada Será Como Antes” de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
[6] Konstantinos Kaváfis (1863-1933) in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paes.
[7] Trecho do poema “Ítaca” de Konstatinos Kavafis, tradução de José Paulo Paes in DURRELL, Lawrence. O Quarteto de Alexandria.
[8][8] Trecho de “Saudade dos aviões da Pan Air (Conversando no bar)” de Milton Nascimento e.
[9] Tradução transcrita no final do filme. Não cita o nome do tradutor.