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segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Lado Negro da Lua: uma reflexão sobre indivíduo moderno através do álbum Dark Side Of The Moon.

"Faz 25 anos que o álbum Dark Side Of The Moon deixou o Top 200 da Billboard após permanecer 741 semanas consecutivas na lista dos mais vendidos.
Recorde que até hoje ninguém superou", segundo nos conta o Bloco do Pink Floyd
 Aproveito a deixa da data e compartilho no blog um ensaio de ensaio que fiz para uma disciplina no mestrado sobre o álbum. O texto é de 2011 e já foi publicado em doses homeopáticas no facebook em março quando do aniversário de 40 anos do disco.




O Lado Negro da Lua:
uma reflexão sobre indivíduo moderno através do álbum Dark Side Of The Moon.






Isabela Morais[1]

Resumo:
O presente ensaio retende discutir aspectos da vida do indivíduo moderno a partir da análise das canções do álbum Dark Side Of The Moon (1973) da banda inglesa Pink Floyd. O álbum, que é considerado um clássico, esteve nas paradas de sucesso por 14 anos e ainda hoje vende 250 mil cópias por ano.  Além de compreender a conjuntura do disco, as situações que levam à sua produção, seu contexto, as buscas e expectativas dos seus criadores nos ajude a compreender a importância da obra, pretendemos aqui dialogar com a obra, especialmente naquilo que chamamos atenção logo no início: sua capacidade de sintetizar a vida do indivíduo no mundo moderno, desde a sua relação com o tempo, com a morte, com o dinheiro e, sobretudo, sua relação com o Outro. Para tanto iremos nos valer das imagens, sensações e ideias que a escuta do álbum nos suscita tendo em vista algumas leituras teóricas, além de percepções cotidianas, mediatizadas pela leitura sociológica.

Palavras-chave: Indivíduo, Alteridade, Pink Floyd, Dark Side Of The Moon, Alienação, Dialogismo.

                Se nos pedissem uma síntese do que é a vida do indivíduo moderno na sociedade capitalista e nos dessem apenas 45 minutos para forjá-la, não haveria nada melhor a fazer do que ouvir o álbum Dark Side Of The Moon (1973). O trabalho construído pela banda inglesa é considerado por muitos uma das mais importantes obras dos últimos cinquenta anos e para além dos comentários dos críticos, os números de sua popularidade confirmam tal diagnóstico: o álbum ficou cerca de 750 semanas nas paradas, entre os mais vendidos, aproximadamente 14 anos.
                Para além deste artigo, muito já foi dito sobre o disco. O documentário Classic Albums: The Dark Side of The Moon(dir. Matthew Longfellow, 2003) é engenhosamente construído, mesclando entrevistas e depoimentos dos quatro músicos então integrantes da banda: o tranquilo e sereno baterista Nick Mason, que lançou em 2004 o livro Inside Out – A personal history of Pink Floyd; o saudoso tecladista, falecido em setembro de 2008, Richard Wright – indubitavelmente o grande músico, compositor das mais belas harmonias não apenas do disco, mas também de toda a história do Pink Floyd; David Gilmour, com sua guitarra precisa e melódica; e Roger Waters, o baixista e o mais importante letrista do grupo, após o afastamento em 1968 do sempre citado fundador da banda, o criativo Syd Barret. O documentário conta também com depoimentos de críticos musicais e pessoas envolvidas na produção do disco, como Alan Parsons, que cuidou a engenharia de som do disco.
                É possível conhecer mais dos bastidores da gravação lendo The Dark Side of the Moon: Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd, de John Harris (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006).
Ainda que compreender a conjuntura do disco, as situações que levam à sua produção, seu contexto, as buscas e expectativas dos seus criadores nos ajude a compreender a importância da obra, pretendemos aqui dialogar mais diretamente com a obra, especialmente naquilo que chamamos atenção logo no início: sua capacidade de sintetizar a vida do indivíduo no mundo moderno. Para tanto iremos nos valer das imagens, sensações e ideias que a escuta do álbum nos suscita tendo em vista algumas leituras teóricas, além de percepções cotidianas, mediatizadas pela leitura sociológica. De forma alguma iremos desprezar ou ignorar a contribuição as impressões e depoimentos de seus criadores e demais críticos. Mesmo porque, depois de tê-las lido, necessariamente nossa opinião e impressão se modifica, abrindo possibilidades de análises até então não vislumbradas. Mas a centralidade desse exercício de estabelecer diálogo com um álbum de quase quarenta anos está justamente na crença de que ele perdura no tempo enquanto um clássico por ter uma vida própria, que vai para além do seu contexto, devido à universalidade de seus temas.
                Acreditamos que o álbum trata de maneira sintética de aspectos fundamentais do indivíduo moderno, desde a sua relação com o tempo, com a morte, com o dinheiro e, sobretudo, sua relação com o Outro.

Speak to me: os ecos de outrem.



                Quando apertamos o play, ou em 1973 quando colocava-se a agulha sobre o vinil para girar, a primeira impressão é de que o disco está com defeito. O primeiro som que o disco emite é justamente o silêncio, o intervalo. É um prenúncio de algo que perpassará todas as faixas. Pouco a pouco alguns barulhos começam a ser percebidos: máquina registradora, vozes, moedas caindo, risadas, intensamente guiados pela batida forte do coração. A primeira faixa Speak to me contem em si um pedaço de todas as outras canções do disco. Ali estamos sendo apresentados ao mundo. É como se fôssemos o bebê ouvindo, prestar a nasce, o mundo “lá fora” de dentro da barriga da mãe, representados pelos gritos estridentes de uma mulher no final da faixa, que conduz a transição para Breathe (in the air), (além do título sugestivo desta: respire!).
                A importância que um músico atribui à audição é bastante óbvia e quase indiscutível. Entretanto, a lírica floydiana se debruça sobre o ouvir e o falar de modo constante e bastante profundo. A capa do álbum anterior ao Dark Side Of The Moon, Meddle (1971) é a foto de uma orelha. O lado B do disco é inteiro tomado pela música de 20 minutos Echoes. A letra de Echoes fala sobre o eu que se reconhece e se sabe através do contato do outro: através dos ecos longínquos, através da palavra de outros, que são como eu: não foram apresentados ao mundo nem sabem de seus por quês, mas que ainda sim são motivados a seguir. E é no outro que me reconheço: dois olhares se cruzam num relance, e eu sou você e o que eu vejo sou eu. Logo, por favor, me ajude a entender o melhor que eu conseguir.
                Para a ontologia marxiana, o processo de “desenvolvimento” das potencialidades da humanidade ocorrem de maneira contraditória, onde a própria alienação é parte da força propulsora das conquistas do gênero humano. De maneira que a percepção da autonomia do indivíduo está atrelada ao desenvolvimento de uma forma cada vez mais radicalizada de trabalho estranhado e alienação. Conforme o homem se descobre enquanto potência e sujeito, ele se estranha cada vez mais do Outro. Entretanto, somos o outro, nos formamos a partir dele, do diálogo com ele, mesmo no nosso pensamento mais íntimo. A falta desta percepção pode explicar muito da esquizofrenia dos nossos tempos.
                Segundo Roger Waters (2003), ali está a ideia de empatia que o permearia desde então. Notamos também na canção Wot's uh the deal, a quinta faixa do álbum Obscured By Clouds (1972) (trilha sonora do filme La Valle (1972 dir. Barbet Schroeder), a busca pelo outro como parte do entendimento de si: “Hear me shout! Come on in!”. O sujeito sobre o qual a lírica floydiana reflete é um ser social, que se sabe em relação e tem a dimensão da influência da vida em sociedade na construção e percepção de sua individualidade.
                Décadas depois, o tema reaparece em Keep Talking, no último álbum da banda, The Division Bell (1994), já sem Roger Waters, em que o narrador anuncia na introdução da música que algo fascinante mudou a história dos homens: “they learn to talk”.
                Pois bem, Dark Side começa com um pedido: Speak to me – fale comigo. O mundo que se anuncia ecoa dinheiro, maquinaria, tensão, loucura, desespero. O mundo que nos aguarda já existe para além da minha vontade. Há que se fazer a história, mas as condições já foram previamente dadas: nascemos e respiramos após os berros de dor da mãe.

Breathe: bem-vindo ao mundo dos homens.
                Segundo o pensador russo, Mikhail Bakhtin o processo de formação da consciência é dialógico. O mais íntimo pensamento ou as formulações ideológicas mais complexas são forjadas a partir da palavra do Outro. No caso da criação musical não é diferente. O processo de composição nunca é uma experiência completamente original, estamos sempre nos remetendo a harmonias, melodias e ritmos que ouvimos de outras pessoas. Isso não implica que tudo seja uma mera cópia, mas apenas uma retomada daquilo que Renato Russo resumiu em Quase sem querer: “mas quais são as palavras que nunca são ditas?”
                A reiteração da palavra, da harmonia, do acorde, da melodia do outro nunca é uma cópia estrita devido ao caráter único da eventicidade da enunciação, outra ideia bakhtiniana. Ainda que eu toque uma canção com os mesmos acordes, a mesma letra, ou recite uma poesia, ou simplesmente parafraseie alguém, o contexto em que eu estou inserindo tal enunciado é novo, diferente, logo, este enunciado está dialogando com novos elementos e forjando novos sentidos.
Por exemplo, em Breathe.
                A sequência “despretensiosa” em Mi menor (Em) e Lá maior com a sétima (A7) termina surpreendentemente num acorde dissonante, cuja inspiração, Richard Wright revela, vem da música Kind of Blue de Miles Daves. Ainda que os acordes sejam mesmo, o fato de serem tocados em outros contextos forjam novos sentidos, criam novas enunciações. Se pensamos num sentido ontológico marxiano, a apropriação das objetivações do mundo dos homens, do patrimônio do gênero humano é a maneira pela qual a cultura humana se forja. Estamos sempre nos apropriando de algo. Nunca nada é inteiramente original. A mesma sequencia Em e A7 guia a música dos Secos & Molhados, Primavera nos Dentes, cujo processo de composição não deve ter sido muito diferente daquela que Roger Waters descreve no documentário: a banda decide ficar por algum tempo improvisando em dois acordes. Richard Wright então se lembra daquilo que ouviu, daquilo com o qual dialogou, o jazz, seu gênero preferido e cria a partir daquilo que conhece: do intervalo de Sol Maior (G) para a retomada do tema em Em, o caminho previsível seria um Ré com a Sétima (D7), mas magicamente quem introduz o canto suave do dueto de vozes Wright e Gilmour é a dissonância de Miles Daves.
                No campo das Ciências Sociais, especialmente na Sociologia, revela-se sempre a preocupação em atrelar o estudo da obra de arte com seu contexto sócio-histórico, o chão social que a cerca, os diálogos com os acontecimentos históricos. Nada mais pertinente e enriquecedor para os estudos sociais. Entretanto, uma grande obra de arte além de dialogar com seu tempo, dialoga com a história da arte, das formas, da tradição daquele gênero e de gêneros vizinhos. E como esse diálogo é o um dos fatores que a tornam cada vez mais universal.
                O acorde dissonante de Richard Wright anuncia o canto que diz simplesmente: respire. O eu lírico aconselha e acalma: “não tenha medo de se importar” e pede num lindo trocadilho “leave, but don't leave me” (vá, mas não me deixe). Profeticamente, o eu lírico avisa que a vida do sujeito, o que se torna, o que ele é são consequências de seus próprios passos e escolhas: all touch/ and all you see/ is all your life/ will ever be. Aquilo para o qual dirijo minta atenção me define. As minhas ações são portadoras daquilo que sou.
                Mas quais ações?
                Surpreendentemente, depois do acorde dissonante de Miles Daves, um órgão anuncia o novo conselho: “Corra! Corra, coelho! Cave o buraco e esqueça o sol. E depois, no fim, quando o trabalho estiver terminado, não descanse é hora de cavar outro buraco”. Com a mesma sutiliza que somos convidados a nos importar, sentir, estar junto, somos avisados do ritmo de vida que o mundo moderno nos invoca: trabalho incessante, sem descanso. Novamente a serenidade da música retoma o foco, mas o acorde dissonante do jazz no final da sequência, causa a sensação de mudança brusca, como a queda de um precipício: intensa e veloz.
                A sociedade moderna acolhe o indivíduo com seu discurso paradoxal: anseia pela entrega do indivíduo, oferece sorrisos e promete felicidade, mas é ela mesma quem dá a dinâmica de sua existência, um eterno trabalho, sol a sol e sem descanso. Vale lembrar que é na década de 1970 que temos o fenômeno de reestruturação produtiva, atrelada à crise estrutural do capital. O modelo fordista atrelado ao Estado de Bem estar social, a faceta humana do capitalismo, forjada a partir das lutas e pressões socialistas, dá lugar a um ritmo de trabalho ainda mais dinâmico e acelerado, em que o discurso por produtividade cresce conforme os direitos sociais vão sendo tirados. Para a empresa, não existem mais “trabalhadores”, mas “colaboradores”: gente que “veste a camisa” da empresa, que é como se fosse uma família, a quem você deve se entregar “sem medo de se importar” e trabalhar sem descanso até esquecer o Sol.

On the run: viver para o hoje e não para o amanhã, este sou eu!


                Breathe desemboca no barulho do cymbal da bateria marcando um tempo veloz e contínuo, os teclados introduzem o sintetizador que virá, produzindo um som perturbador. Ouvem-se passos, vozes. On the run remete à tecnologia e parafernalha do mundo moderno, que acelerou – e ainda acelera progressivamente – o ritmo de nossas vidas.
                É interessante pensar em como a própria construção da música está atrelada a essa potência da tecnologia enquanto transformação de todas as esferas da vida social, desde a aceleração do tempo até mesmo novas demandas na produção musical.
                No documentário supracitado, David Gilmour e Roger Waters apresentam o processo de construção de On The Run. Desde o início da banda, sua história foi marcada pelo acesso a tecnologias de última geração, como nos shows ainda na era Barret, em que eram usadas projeções de luzes e slides de pinturas a óleo em dissolução.
                O sintetizador hipnótico que conduz a música toda foi programado em um Synth EA, no qual Roger Waters criou uma sequencia de notas que aceleradas resultaram nos sons de On The Run. Em 1973, com equipamentos de mixagem de som totalmente automáticos, Pink Floyd anunciava a música do futuro, programada, passível de rearranjos, colagens e samplers. OAtom Heart Mother (1970) já trazia estes elementos de uso de barulhos, efeitos sonoros incidentais e samplers de voz na faixa Alan's Psychedelic Breakfast, onde ouvimos o café da manhã e seus pensamentos, interligados pela música instrumental.
                Um olhar conservador e pessimista pode não entender a potencialidade dessas transformações. O fato é que elas ocorrem e podem ser apropriadas de diferentes formas. Àqueles que tentaram desqualificar a música floydiana devido ao abuso de uso de tecnologias e mixagens, tais como o Synth EA na feitura de On The Run, Roger Waters responde: se entregarmos uma guitarra Fender na mão de qualquer pessoa ela necessariamente tocará como Eric Clapton?
                A mão não é apenas o órgão do trabalho, mas também o produto deste, tal qual afirma Engels (1980, 51). Se até mesmo os sentidos são construções históricas, “obra de toda a História Mundial até agora”, a própria obra de arte exprime em si as possibilidades materiais de seu tempo. A capacidade de subversão das tecnologias do trabalho para a fazedura de uma obra de arte é o que a torna tão necessária objetiva e subjetivamente para a sociedade. Foi a ferramenta feita para a caça a mesma que forjou na pedra uma escultura. O mérito dos meninos ingleses foi saber utilizar da tecnologia que dispunham de maneira criativa e libertadora. Sintetizaram não apenas a atmosfera de seu tempo através das letras e canções, mas também na própria forma de construção e produção material do disco, de forma tal que anteciparam processos que estariam maduros, plenos e acessíveis décadas mais tarde.
                Leonardo de Marchi, discutindo sobre a história dos formatos fonográficos, afirma que a grande inovação do período pós-guerra foi o Long-Play. Além da possibilidade de gravar mais tempo de material sonoro em relação aos formatos anteriores (45 r.p.m, 78 r.p.m, por exemplo), surge a estética do álbum, transformando o disco em si em uma obra de arte, seja através do trabalho com o design das capas, seja pela durabilidade do vinil em relação aos outros materiais,  ou ainda pela “promessa de alta-fidelidade do sistema estéreo”. Processo este que possibilitou que os vinis passassem a ser consumidos como livros, ou seja, “um suporte fechado passível de coleção em discotecas privadas” (DE MARCHI, p. 10-13, s/data).
                O próprio formato Long-Play possibilitou que o Rock'n Roll adquirisse o status de “arte” quando suas músicas deixaram os singles (compactos) e passaram a figurar álbuns, como sugere ainda De Marchi. Os chamados álbuns conceituais trabalham com a totalidade do formato, em tudo aquilo que ele possibilita: desde o diálogo interno entre as canções, passando pelo trabalho de mixagem (abusando dos recursos estéreos), até o trabalho com a capa e imagens. Dark side of the moon é um fenômeno exemplar de álbum conceitual.
                As frases soltas durante o instrumental On The Run refletem a agonia da correria e tensão da música: “living for today, not for tomorrow, that's me!” Vale lembrar que as frases soltas que aparecem ao longo de todo o álbum foram ditas por pessoas próximas e envolvidas na gravação e que estavam no estúdio. As vozes produzem o clima sombrio, mas ao menos tempo preenchem as temáticas profundas das canções com a sua concretude do cotidiano. Dito de outra forma, pessoas comuns tecendo cometários sobre suas vidas, sensações e experiências tornam ainda mais evidentes a universalidade das questões colocadas pelo disco. Uma universalidade palpável, com todo o paradoxo que um elemento da cultura de massas, inserido na pop art, pode promover enquanto obra que dialoga com a percepção do que é ser pertencente ao gênero humano, para além da espécie.

Time: calmo desespero.


                Uma explosão finaliza a correria e o desatino de On the run. Após o intervalo e um brevíssimo silêncio relógios e despertadores anunciam, quase como um susto, a música seguinte. O tic-tac dos relógios se confundem com as batidas do coração. O tempo é o senhor desta canção. Do nascimento à morte, é tudo uma contagem regressiva.
                Se até agora tudo é uma construção social, desde a nossa percepção dos sentidos à nossa maneira de fazer canção e arte, a própria percepção do tempo também o é. Para além da noção de categoria a priori forjada por Kant, tanto tempo quanto espaço são noções socialmente apreendidas. Um autor que desenvolve muito bem esta questão é Mikhail Bakhtin, no livro Questões de Literatura e de Estética (1998) com o seu conceito de cronotopo, que busca compreender como tais noções se apresentam na estética verbal.
                Além de Bakhtin, David Harvey na importante obra Condição Pós-Moderna dedica uma parte inteira à problemática da experiência do tempo e do espaço. Segundo ele, segundo uma perspectiva materialista:

podemos afirmar que as concepções do tempo e do espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social. (…) A objetividade do tempo e do espaço advém, em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução social; e, na medida em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente. (HARVEY, 1996, p. 189)

                A maneira pela qual a sociedade se reproduz materialmente influencia todas as demais esferas. O capitalismo com sua tendência globalizante, forjou para si novos meios de se reproduzir, multiplicar e se alastrar, criando formas de reduzir as distâncias, tornando as trocas e negociações cada vez mais imediatas. E o espaço de tempo entre um avanço tecnológico e outro caminhou em progressão geométrica: desde o primeiro motor a vapor até os controles digitais, da prensa móvel de Guttenberg até a World Wide Web, avançou-se assustadoramente rápido.
                O fato é que “every year is getting shorter” é uma sensação absolutamente recorrente e normal. A aceleração da produção necessariamente altera a nossa rotina de vida. O mundo não dorme mais: algo que acontece do outro lado do mundo pode ser visto e discutido simultaneamente.
Diante de um mundo cada vez mais veloz e produtivista, a sensação é de desperdício e perda
de horas, em dias cada vez mais monótonos “You fritter and waste the hours in an off hand way...”.        Com tantos caminhos e possibilidades que parecem se abrir e cobranças em ser alguém, o indivíduo moderno tem a sensação de esperar que alguém lhe mostre o caminho ou então que perdeu o tiro de partida.
                Roger Waters (2003) comenta sobre a percepção de a vida estar acontecendo e de que a qualquer momento você pode tomar as rédeas do destino: ingressar no mundo adulto depois de esperar a vida toda por ele, se preparando desde a infância, numa educação propedêutica. A letra de Time descreve a sensação de percepção do tempo acelerado, nunca suficiente e sua impotência diante dele.
                A sensação de impotência e inação diante do tempo acelerado do mundo moderno causa uma agonia e um desespero imediatos. O indivíduo moderno está aprisionado ao seu tempo histórico na maneira mais sutil. “Hanging on in quiet desperation”, suportando num calmo desespero a impotência e frustração, não é apenas o “jeito inglês”, mas a forma como muitos indivíduos “se enganam e seguem em frente”, para parafrasear o genial Tom Zé, em Happy end.

Breathe reprise: lar, doce lar.


                Se o mundo lá fora é tão inóspito e corrido, nada como voltar para casa. O espaço público torna-se cada vez mais um espaço de onde se deseja fugir. O trabalho alienado e reificado sobre o qual o capitalismo se edifica estranha o homem de sua própria atividade.
                Marx desenvolve nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (2006) e na Ideologia Alemã (2007) aquilo que Lukacs desenvolverá como o trabalho como centralidade ontológica do ser social. O primeiro ato histórico, segundo Marx (2007), é o que cria o ser social, a partir do trabalho e da linguagem. Um complexo de complexos, que se interligam em se determinam. Logo, foi através de sua atividade consciente, o pôr teleológico que homem se tornou um ser social, passando de espécie para gênero humano, forjando um mundo à sua imagem e semelhança.
                Sobre uma perspectiva marxiana, a subsunção do trabalho alienado e reificado é o caminho para a emancipação humana. Dito de outra forma, apenas quando toda humanidade retomar o caráter potencialmente humano, criativo e libertador de sua atividade teremos realmente feito a revolução. Tal caráter revolucionário consiste numa completude da processualidade da atividade humana: eu idealizo a partir das minhas próprias necessidades, detenho os meios de objetivá-la, domino todo o processo e usufruo de seu resultado, aprimorando minha teleologia. É desta atividade que Marx fala e não do trabalho assalariado, enquanto centralidade ontológica do ser social.
                Um trabalho em que o homem não se reconhece, não o motiva, não é feito a partir de suas necessidades e muitas vezes não as satisfaz (pensemos em quantos trabalhadores de montadoras de carros, possuem efetivamente um carro daqueles), trabalho em que o homem não se reconhece nas potencialidades do gênero humano, estranhado de si, do outro, da natureza, como este trabalho pode emancipar? A sensação inóspita do mundo público torna o retorno lar ainda mais importante.
                Musicalmente, Breathe reprise é de fato um retorno ao primeiro tema do disco.
                A busca por aconchego, proteção e consolo de Breathe reprise dá-se não apenas no âmbito do lar, mas também no âmbito religioso. O sino chama os fieis a se ajoelharem para ouvir mágicas e suaves palavras. Quando o mundo dos homens não oferece segurança, causa dor e desespero, a busca religiosa é um dos refúgios, que confortam e consolam.

The great gig in the sky: a morte e o prazer.


                Depois da percepção da vida a adulta, vem a percepção da proximidade da morte. O piano sombrio e belo de Richard Wright anuncia a última faixa do lado A do disco. Mesclando-se ao som do slide, uma voz diz: “E eu não estou com medo de morrer, a qualquer hora pode acontecer, eu não me importo. Por que estaria com medo de morrer? Não há razão para isso, você tem que ir algum dia.” O contraste da voz de homem maduro que anuncia não ter medo de morrer só potencializa a sensação expressa no vocal de Clarre, de desespero e pavor.
                Solicitada para pensar na morte, na agonia, no pavor, no desespero, Clare Torry canta o que é considerado um dos mais belos solos vocais da história do Rock.  Durante a gravação a música era conhecida como “The Religion Song” e durante a turnê, antes do lançamento do álbum ela figurava, numa versão bem diferente, apenas instrumental, como “The Mortality Sequence”.
                Letra alguma realmente conseguiria expressar melhor do que o vocal de Clare a sensação de desespero e morte. Interessante notar o quão o vocal remete à sensação de gozo, onde prazer e dor se misturam, onde se chega ao limiar.
                Segundo Michel Foucault no volume I da História da Sexualidade (1988) , é com o advento dos dispositivos de sexualidade que a vida entra na história – através da sistematização dos fenômenos inerentes à vida da espécie humana na ordem do poder e do saber. A despeito das consequências no campo filosófico, sobre a qual Bakhtin se debruça em Freudismo (2004), onde os pensadores, principalmente na transição do século XIX para o século XX tem em comum a vida biologicamente interpretada, numa desconfiança da consciência e, sobretudo, a tentativa de substituir todas as categorias socioeconômicas por categorias psico-subjetivas ou biológicas, uma das consequências para o sujeito é uma relação muito negativa em relação a morte. Ainda que ela seja uma das poucas certezas que permeiem sua vida, o confronto com ela é algo apavorante e se reflete em uma postura diante de uma potencialização da vida, que constrange o corpo a parecer sempre belo, lapidando os corpos, com procedimentos estéticos muitas vezes agressivos.
                A morte invade todos os dias a casa das pessoas nas notícias de jornal. Medo que constrange e apavora. Relação imediatista com a vida, onde dor e prazer se tocam. Prazer excessivo e esvaziado, intenso. O lado A termina com um suspiro de Clare.
Durante a troca de lado, podemos citar como prelúdio para o lado B a seguinte passagem de Harvey:
A incapacidade de adiar prazeres costuma ser usada pelos críticos conservadores, por exemplo, para explicar a persistência do empobrecimento numa sociedade afluente, embora essa sociedade promova sistematicamente o financiamento de prazeres presentes como uma das principais engrenagens do crescimento econômico.


Money: alcoviteiro entre a necessidade e o objeto.



                O lado A apresentou ao mundo o indivíduo: seus medos, obrigações, a agonia do tempo corrido, do espaço apertado. O lado B inicia dando a “solução” (ou explicando a causa): dinheiro. O barulho sincronizado de moedas e caixas registradoras são o primeiro som que ouvimos, ao contrário do lado A que se incia com o silêncio. Em meio ao som agudo e estridente que evoca o dinheiro, surge o riff do baixo que anuncia o single com um compasso nada convencional: Money é tocada em 7/8. Grande parte, para não dizer parte massiva dos singles – hoje conhecidas como “música de trabalho”, canções responsáveis pela projeção de uma banda, ou do álbum de uma banda – são compostos em compasso 4/4, uma formação rítmica “mais simples”, tanto de cantar, quanto de tocar e ainda de dançar. Músicas que pegam fácil. Um exemplo de música em 4/4 é a própria canção Money, que após o solo de saxofone, muda de 7/8 para 4/4, mudança essa intermediada por uma virada na bateria e introduzida por um dos melhores solos de guitarra  - na singela opinião da autora – que David Gilmour já compôs: puro Rock'n Roll.  Além do compasso pouco convencional, a música tem um tempo pouco comercial,  6'22''. A “pegada” meio jazz que o 7/8 mais o teclado de Richard Wright ajudam a construir dar um ar sofisticado a canção.
                Money it's a hit! - é um sucesso. Literalmente: foi o single que conquistou os estadunidenses e permitiu o sucesso de vendas do álbum britânico no além mar.
                Marx tem um belíssimo texto intitulado Dinheiro, presente nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Responsável por tal beleza são as citações de Goethe e Shakespeare sobre a qual Marx formula seu raciocínio:
O dinheiro, na medida em que possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a  onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. … O dinheiro  é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem. Mas o que medeia a minha vida para mim, medeia-me também a existência do outro homem para mim. Isto é para mim o outro homem... (MARX, 2006, 157).

                O grande tema de Dark Side of the Moon, tantas vezes falado ao longo do documentário a seu respeito, é a ganância. Roger Waters mesmo afirma que o que eles queriam eram ser ricos e famosos. Após uma apreensão do mundo, de suas regras e seu jogo, o indivíduo moderno entende, como homem de seu tempo, que é através do dinheiro que ele irá adquirir predicados, é através do dinheiro que se é. Então, “arrume um bom emprego e você está ok!”. E se é ele mesmo a mediação entre mim e o que sou, não é de se espantar que quanto mais tiver, mais predicados se tem. Logo, “Cara, tire a mão do meu bolso!”. Com dinheiro no bolso, posso cogitar as coisas mais impensadas, como “comprar um time de futebol”.
O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isto sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas qualidades e forças essenciais. […] Eu, se não tenho dinheiro para viajar, não tenho necessidade alguma, isto é, nenhuma necessidade efetiva e efetivando-se de viajar.  (MARX, 2006, 159-160)

                O sujeito, o eu lírico, de Money expressa bem a citação de Marx quando afirma que mesmo voando em primeira classe, ele precisa de um jatinho... ou talvez dois. Ou seja, ele tem a necessidade de viajar, porque possui os meios de fazê-lo. Mais que isso, já que ele possui meios para satisfazer tais necessidades, ele tem a liberdade de querer fazer de maneira cada vez melhor, ou seja, necessidades que criam necessidades. Se eu não tenho dinheiro para viajar, não tenho a necessidade de um jatinho novo...
                Mas no final das contas, o sujeito de Money é um homem sarcástico: no fim mesmo, das contas, pois, depois de cantadas das duas primeiras estrofes, do solo de saxofone, de todo o rock'n roll em 4/4, o sujeito declara: dinheiro é um crime. De alguma forma, todos sabem que ele é “a causa” do todo o mal de hoje em dia e desejam que ele seja dividido de maneira justa, desde que ninguém tire uma casquinha daquilo que é seu “but don't take a slice of my pie!”.

Us and them: no fim das contas, somos todos homens comuns.


                Zabriskie Point foi o primeiro filme do diretor italiano Michelangelo Antonioni rodado nos Estados Unidos, em 1970. Trabalhando com a questão da contracultura norte-americana, o filme tem uma bela sequência de imagens gravadas no deserto que dá nome à película. O filme não obteve muito sucesso, mesmo tendo a trilha sonora assinada por bandas como Rolling Stones e Pink Floyd.
                O tema de Us and Them foi composto para uma cena de violência e repressão do filme, onde estudantes protestavam na universidade (tema recente, não?). Roger Waters inspirado pela melancolia do tema e, por que não, pela própria cena, criou a letra, onde de novo o tema da alteridade aparece. Ainda que no final das contas, sejamos todos homens comuns, como o segundo verso da música nós e eles anuncia, a letra da música fala sobre o estranhamento. A facilidade com a qual esquecemos da humanidade do outro diante de conflitos, sejam eles grandes, como o fronte de guerra em que homens morrem como pontos num mapas cheio de linhas, ou pequenos conflitos, como o simples preço do chá e uma porção.
                Mas “só Deus sabe” que esta situação não é o que teríamos escolhido para nós. O último refrão justifica o tormento que estranha o homem dele mesmo: “saia do meu caminho, que hoje é um dia cheio, ocupado e eu estou com a cabeça cheia!” Us and them reitera então toda a temática do álbum até agora. São as pressões do trabalho, da correria, da luta pelo pão de cada dia que acaba tornando as pessoas tão pouco sensíveis com o outro.
                O tema da guerra anunciado no primeiro refrão será revistado por Roger Waters no épico álbum The Wall (1979) [e que se transformou em filme em 1982] e em The Final Cut (1983), que, por ironia do destino, é realmente o último disco do baixista e letrista junto à banda.
                A música é melancólica, lenta e triste até explodir nos catárticos refrões, onde brilham os vocais femininos fazendo base para o jogo de vozes de Wright and Gilmour.
                A sensação de estranhamento – novamente tão bem delineada por Marx nos Manuscritos  - é quase um torpor, como os passos lentos que são projetados no telão durante a música nos shows da turnê Pulse. “Morto e destruído, mas não dá pra evitar. Encontramos isso por toda a parte” - ainda que fiquemos tocados a tragédia alheia, de um de “nós”, não passa de um desconforto momentâneo e impotente, já que é assim que as coisas são, ou tem sido.
                Us and Them é anunciada pelas palavras finais de Money, numa sequência de vozes que afirmam “eu tinha razão, é claro que eu tinha razão! Eu estava absolutamente certo!” Essas vozes respondiam à seguinte questão: “qual foi a última vez em que foram violentos? Vocês estavam certos?”. Sim, todos estavam.

Any Colour You Like: o fetiche da mercadoria.



                Any Colour You Like é a única faixa que não tem letra. Injustamente, é a única música que não é comentada no documentário tantas vezes aqui citado. No livro de John Harris, tampouco, ela é comentada.
                Diante de seu contexto, inserida depois de todas aquelas canções, com sua levada dançante, os sintetizadores de Wright, dando uma ar lisérgico à canção, a música nos suscita à sensação do fetiche da mercadoria. Como se estivessem passando por nossos olhos as mais belas vitrines, as mais belas mulheres em outdoors, cheias de caras e bocas, como estivéssemos nos dopando de mercadorias e tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Dopados. Sensualmente dopados. Afinal de contas o título mesmo sugere: qualquer cor que você queira!
                Graças às maravilhas modernas, descobrimos na enciclopédia eletrônica Wikipédia, que o título realmente remete à uma mercadoria. Segundo o verbete, “O título foi originado de uma resposta que o técnico de estúdio utilizava quando lhe eram feitas perguntas: "You can have it any colour you like" ("Você pode ter da cor que você desejar"), que era uma referência à célebre descrição de Henry Ford sobre o Ford T: 'Você pode tê-lo na cor que desejar, desde que seja preto.' " Essa máxima foi dita por Henry quando, através de uma medida de redução de custos para a produção do auto, a fábrica passou a fazer apenas modelos na cor preta.
                O próprio disco reflete esse fetiche. O atrelamento da música com a publicidade e as mercadorias não é novo. Se pensamos na banda brasileira Blitz, que atingiu um grande sucesso na década de 1980, passando a figurar como marca dos mais diversos produtos, conseguimos visualizar a potência que a música tem enquanto nicho de consumo. Além dos muitos anos em que o Dark Side ficou nas paradas de sucesso, o álbum originalmente lançado em Longplay, foi relançado em Compact Disc (CD) e depois remasterização no seu aniversário de 30 anos, através de uma tecnologia que segundo John Harris é “uma daquelas inovações que fazem com que a indústria musical convença milhões de pessoas a comprar de novo os álbuns que já possuem” (HARRIS, 2006, p. 7-8), o remix 5.1 com som surround. A cada ano cerca de 250 mil exemplares são vendidos. Sem contarmos nos produtos lançados a seu respeito como o próprio livro de John Harris, o documentário já citado aqui.

Brain Damage: o maluco está na minha cabeça.


                Todo esse dinheiro e fama que as vendas do Dark Side proporcionaram aos meninos ingleses não fez outra coisa senão confirmar os diagnósticos da reflexão do álbum: melancolia e pessimismo é o tema do álbum seguinte: Wish You Were Here (1975), que claramente remete a loucura do ex-integrante e fundador da banda, Syd Barret.
                A loucura comentada em Brain Damage, para além de uma única menção a Syd Barret, pode ser lida como uma própria esquizofrenia que irá gradativamente tomar conta do grupo, com sua dificuldade de conversar e manterem-se unidos. Essa dificuldade estará clara nos dois últimos discos da banda sem Waters. E não é um desconforto subjetivo: de fato Gilmour e Waters ficaram muito tempo sem se falarem. A banda que tão bem refletiu sobre a alteridade, a necessidade do outro e o fato de sermos e precisarmos do outro, mesmo numa relação cada vez mais estranhada e mediatizada, acabou provando deste veneno da modernidade.
                O estranhamento da sociedade moderna é tal que a falta de identificação com o Outro, com a sociedade se reflete na própria incerteza do sujeito consigo mesmo: “there's somone in my head, but it's not me!”
                A modernidade proliferou os discursos. Mikhail Bakhtin ao refletir sobre a poética de Dostoiésvki entende que o processo formal pelo qual elabora seu texto, sua prosa polifônica, em que o autor nada mais é que um orquestrador de vozes autônomas, tal processo está atrelado ao próprio desenvolvimento do capitalismo que coloca em choque diversos e distintos discursos. Entretanto, não são todas as multiplicidades de vozes e discursos que se fazem orquestráveis e inteligíveis. Aliás, muitas vezes o que acontece é justamente o contrário: uma multidão de vozes que não se ouvem. Que falam cada vez mais alto e escandalosamente, ouvindo apenas a si mesmo, a sua própria prepotência e solidão. Ainda que a possibilidade do dizer, do se fazer ouvir, a potência do sujeito que se compreende como um enunciador da sua narrativa, ainda que essa potência tenha sido revelada e trazida à tona pela modernidade, a dificuldade dos sujeitos se ouvirem e se identificarem não é necessariamente uma consequência desse processo. O próprio mundo acadêmico nos serve como bom exemplo: nunca se publicou tanto. A pressão para que se publique, se produza é tanta, que dificilmente o nosso tempo produzirá círculos de estudos que tenham tempo efetivo para que seus membros se leiam, produzam coletivamente e pensem organicamente a respeito dos problemas que efetivamente vivemos e nos confrontamos, para além das especulações conceituais... Falar demais não significa ouvir, muito menos conversar demais...
                Eis então que em apenas um verso, este mal estar é sintetizado na letra de Brain Damage: you shout and no one seems to hear! E assim vamos, conforme a genial expressão de Foucault, alugando as orelhas dos psicanlistas e a fins, em busca de quem nos ouça e nos dê uma solução para tamanha sensação de falta de lugar e incompreensão.
                Entretanto, ousamos defender que Brain Damage exala a positividade, ainda que consiga magistralmente refletir um dos sintomas dos nossos tempos: o grande número de pessoas que consomem anti-depressivos, ansiolíticos e demais buscas para curar a sensação de mal estar reinante. A positividade está no encontro marcado no lado negro da lua: a esperança de que os “loucos” e “desajustados” se encontrem, se saibam, se reconheçam como não-sós, o encontro dos desajustados, daqueles que gritam sem ninguém pra ouvir. O reconhecimento de que o meu mal estar é também o mal estar do outro pode(ria) ser um caminho para a transformação desse estado de coisas(?).

Eclipse: e tudo debaixo do Sol está nos eixos...


                De uns tempos para cá o dito “homem ocidental”, de quem temos falado durante todo esse artigo enquanto “ser universal”, parece estar redescobrindo a natureza. Ou, melhor dizendo, a natureza tem se imposto diante de tantos desastres naturais diante do homem, como algo vivo e que responde ao uso desequilibrado que o sistema capitalista tem feito do planeta. A despeito de cor, credo, gênero, classe, quando uma catástrofe acontece, ela atinge a todos.
                A despeito do que fazemos, a natureza segue seu curso. Eclipse parece nos lembrar justamente disso: não importa o que esteja acontecendo aqui na Terra, o Sol está eclipsado pela Lua.
Se pudermos então voltar a aprender com a natureza e entender que tudo nela é um eterno devir, uma constante transformação e renascer poderemos entender as batidas do coração no final de Eclipse como um recomeçar, um reencontro com as batidas que anunciavam o início do álbum. Cada novo recomeçar abre novas possibilidades.
                Ao terminar de ouvir o álbum, seja numa despretensiosa fruição estética dos sons, seja numa compreensão ativa e interessada de suas letras e sua “mensagem”, podemos simplesmente agir como sempre, numa percepção fatalista de que “é assim mesmo” e “fazer o quê”, ou então, ciente dos dramas do indivíduo moderno, que se sabe enquanto sujeito histórico, situado num mundo repleto de contradições, tomar novas atitudes, buscar novos caminhos. Agir de forma consciente como alguém que sabe ver para além das aparências, sabe perceber a essência dos processos. Alguém que sabe que não existe o lado negro da Lua: ela, na realidade, é toda negra...

Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Ed.HUCITEC - Ed. UNB, 2008.
_______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______.O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_______.Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). São Paulo: Ed. Unesp, 1998
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
HARRIS, John. The Dark Side Of The Moon: Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
LONGFELLOW, Matthew (dir). Classic Albums: The Dark Side of The Moon. 2003
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. 1845-1846. São Paulo: Boitempo, 2007
_______.Sobre Literatura e Arte. São Paulo: Global Editora, 1980
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.

Na Web:
DE MARCHI, Leonardo. A angústia do formato: uma história dos formatos fonográficos. In Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Abril, 2005. Disponível em www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/29/30.





[1]    Mestranda em Sociologia/Ciências Sociais no Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp Araraquara. Integrante da banda Ummagumma Pink Floyd Cover. isabelamoraistp@gmail.com