Mas o que falarão das músicas que se cantava naquela cidade, a maior do país? Há muito o que dizer. Mesmo. Eu faço uma escolha - que não é nada imparcial. Trago aqui a trilha sonora que me traduziu São Paulo quando vir morar aqui estava definitivamente fora de cogitação: "Passo Torto".
É fato que não cheguei no "Passo Torto" por acaso. Amigos queridos e próximos já tinham e me mostrado dois álbuns também na lista "do que se cantava na São Paulo dos anos da Revolta do Vinagre": "Metá-Metá" e "Um labirinto em cada pé". Ambos mereceriam para si brisas imensas e lindas. Destaco aqui alguns elementos que me ajuda a pensar no "Passo Torto".
Em "Metá Metá", estão Thiago França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci - e este ultimo com algumas declarações interessantes coloca em debate a questão da autoria e parceria dos álbuns: "por que "Galos de Briga" não poderia ter sido assinado por "João Bosco e Aldir Blanc?" Kiko traz essa característica da parceria em toda a sua obra até aqui. Trabalho coletivo assinado coletivamente. Seja com Douglas Germano (Duo Moviola), ou o "Na Boca dos Outros", o Bando Afromacarrônico... sem contar suas parcerias com outros músicos por aí a fora.
Essa característica está no "Passo Torto": Kiko está ali autoral nos arranjos, composição, interpretação, produção, tanto quanto, ou com mesmo peso "protagonista" que Rômulos Fróes, por exemplo - que assina "Um Labirinto em cada pé". Junto deles estão ainda Rodrigo Campos, parceiro de Kiko noutras viagens, com seu cavaquinho de São Matheus (com ele eu descobri que "São Matheus não é um lugar assim tão longe") e ainda o baixista-produtor Marcelo Cabral - que também tá no balaio de muita gente, como por exemplo, num dos melhores discos não só da pauliceia, mas de todo o "gigante" "NÓ NA ORELHA" do menino rapper Criolo (Doido).
Comecei falando das parcerias e da assinatura do álbum como um disco dos QUATRO, do "Passo Torto", uma reunião específica de músicos que costumam trabalhar juntos em diversos outros formatos, porque isso não é aspecto pequeno da forma-conteúdo da existência do disco. Ao contrário. É o que o faz ser tão brilhante. Não há ali uma "banda", mas uma reunião de vozes autorais, as personalidades mescladas e lincadas para a construção de um álbum que é de fato algo maior que os quatro.
A abertura do álbum são alguns ruídos ao fundo... distorção da guitarra com o ampli? o arco do baixo de Marcelo Cabral se arranhando noutros espaços? Então vem o riff marcado, grave, de violão. Insistente. É um aviso, uma fala, com começo meio e fim. Entrecortando-a vem o cavaquinho salientando alguns pontos. Até que o arco nas cordas do baixo em estacato criam o clima do anúncio do canto, que só vem depois de um minuto de clima: "Passei na frente da sua casa..."
"A música da mulher morta" é uma crônica lacônica. Dinucci anuncia o canto que compartilha com Fróes: "passei na frente da sua casa" A conversa é com a mulher morta. O corpo coberto. A calçada manchada. São fragmentos de frases e descrições, mas está tudo ali.
passei na frente da sua casaaaaaaaaa....
e então a questão: não sei se foi número certo ou na hora errada. Que mulher morta é essa? toda e qualquer uma? O enunciado banal "ah, passei na frente da sua casa", mas não vi ninguém, mas tava tudo fechado, mas... mostra a banalidade da morte. É esse o seja-bem vindo a São Paulo.
Se a gente dá o primeiro passo no escuro, sem saber do número certo ou da hora errada, o tour agora começa especificar seus lugares, afinal de contas "Da Vila Guilherme até o Imirim" é um-dois. No ponto de ônibus, é o ônibus. Rodrigo Campos e Rômulo Fróes dividem o canto tranquilo do eu lírico para "seu amor" no ponto de ônibus. Ao fundo das frases melódicas extensas, com notas alongadas "veeeeeeeeeeeeeeeeem cá", os riffies inquietos. A imagem sonora do amor no ponto de ônibus. na rua. no movimento. no caos.
A leveza da poesia do ponto de ônibus, fica pra trás. Os riffies que anunciam a terceira faixa são tensos logo de cara. Agora foi o metrô quem chegou: estação Faria Lima. E chegou tem pouco tempo. Rodrigo Campos está fazendo crônica da recém chegada Linha Amarela perto da sua casa. "Havia o bar do João e hoje tem uma estação". Que a história que rememorar esse disco se lembre de contar que a Linha Amarela não cumpriu com nenhum dos prazos estabelecidos de entrega das obras e ainda registrou graves acidentes de trabalhos. Projeto de longa data que vem engatinhando e até agora não se concluiu. Mas a chegada do metrô dobrou o preço do aluguel:
"Foi quinhentos até um
Dois mês atrás
Quase o dobro
Tá difícil descolar"
"
Muitas vezes as próprias vozes se confundem: seria o canto entoado na frase do riff, ou o riff que toca o canto? Nossa correria é reflexo da cidade, ou ela corre porque a gente só faz correr?
a poesia dura, concreta e crua de "É mesmo assim". Curto. Grosso. Os pedaços sintéticos das emoções lacônicas: do dia lindo, dias D, dias de Dia, de solidão, de apelo: "diz que não".
"Dia lindo
Olhos negros
Cordilheira
Solidão
Dicionário
Desemprego
Desespero
Diz que não
Vaca preta
Carabina
Urubus
Cidadão"
Com quantos silêncios e sussurros se faz um Cidadão? Uma das faixas que mais gosto. Me engasga. Me dá vontade de chorar, ao mesmo tempo que me faz flutuar numa leveza entorpecente. O canto que responde essa canção não é a poesia dos versos curtos: é prosa. é narração. Não é "o" cidadão. é "Cidadão", assim sem artigo. Sem definição. Mas com descrição detalhada: esquizofrênico. "Às vezes lúcido, infeliz, conforme a luz, conforme o dia". Como se veste, o que ouve, o que dança. A colcha de retalhos: rap-samba-rock, Dylan-Chico-JamesDean-BruceLee.
Cidadão ganha artigo indefinido no refrão, menos falado, menos em prosa, a conclusão do processo - aqui, onde eu lírico se posiciona diante da personagem narrada:
Meu bairro nunca foi igual ao bairro de nenhuma estória
E tem seu próprio carnaval, um cidadão nunca vai ser igual
Cidadão nunca vai ser igual. Não é pedido e nem questionamento. É conclusão. É o que temos pra hoje: "um cidadão nunca vai ser igual"
A cidade está cindida. Cidadão nunca vai ser igual a quê? A quem? As linhas do transporte público percorrem toda cidade, mas quem por ela anda? São Paulo é uma cidade acessível a todos? Essa imensidão de cidade, mal explorada por seus habitantes... A organização que puxou o primeiro de sete atos na grande São Paulo em junho de 2013 é o Movimento Passe Livre, que tem como objetivo maior de militância a Tarifa Zero nos transportes públicos, entendendo o direito de ir e vir como um direito social que deve ser garantido pelo Estado. Não. As pessoas que ali estavam não gritavam pela tarifa zero, mas pela pauta pontual de redução da tarifa que aumentara de R$3 para R$3,20. Os tais 20 centavos.
Com a tarifa reduzida, muitos dos que se somaram à luta durante as manifestações que se alastraram pelo país olham agora para o projeto Tarifa Zero e pensam: "é impossível"... A questão muito bem colocada pelos militantes do movimento é que o transporte coletivo que seja de fato público possibilita com que as pessoas tenham de fato acesso à cidade em que moram, acesso a todos os outros direitos, sem o apartheid urbano, um lugar onde de fato os trabalhadores que constroem essa cidade, possam se movimentarem nela...
Uma questão de poder e de se sentir pertencente a.
Samuel, por exemplo, nosso personagem da canção homônima que se segue.
Por que Samuel nunca foi ali? A crônica do menino da periferia desbravando pela primeira vez a cidade.
Por que cê nunca veio aqui?
Quem te prendeu, quem te impediu?
Qual o foi o muro que subiu?
Por que não atravessou
Nunca pro lado de cá
Ó lá o metrôJá vai fechar...
aqui é como se a gente virasse o disco.
eu ao menos viro e volto num outro post para comentar
a escuta das cinco canções restantes, além de indicar
leituras sobre o passo torto que agora é elétrico.