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sábado, 8 de junho de 2013

a canção de "O Abismo Prateado"

      Quando soube do lançamento do filme-documentário "Vou Rifar Meu Coração" (2011, dir. Ana Rieper) que "trata do imaginário romântico, erótico e afetivo brasileiro a partir da obra dos principais nomes da música popular romântica, também conhecida como brega". Fiquei bastante curiosa (eu e meus queridos colegas do Grupo de Estudos CATAVENTO com essa mania de querer entender - questionar, perguntar, cutucar - esses fenômenos da(s) cultura(s) e seus trânsitos entre essas classificações e denominações, segregações, delimitações de classe, gênero, etnia).



     Levei muito tempo pra assistir mas o fiz instigada pela leitura do livro História Sexual da MPB de Rodrigo Faour, cujos capítulos "passeiam pela vocação de boa parte de nossa música do passado para a tristeza amorosa e a dor-de-cotovelo; pela evolução da mulher, da sensualidade e da homossexualidade em nossa sociedade refletida em canções; duplo sentido e transgressões em geral nestes temas, e uma análise do impacto causado na elite bem pensante do país pela dança do maxixe na virada para o XX e do funk carioca no início do século XXI."



   Como interpretar esse fenômeno chamado música brega? Essa, como diria Faour, "vocação" para a dor de cotovelo? "Vou rifar meu coração" é um documentário incrível. Transitando pelo universo da música brega, guiado pelas canções e suas histórias, o cantores, compositores e intérpretes de verdadeiras crônicas amorosas o filme assume (e dá conta do recado) "o desafio de falar sobre a intimidade de pessoas reais, em situações reais."  Essas pessoas estão no interior do país. Num Brasil que pouco passa na TV, histórias que não são contadas nas novelas, cenários bem distintos das paisagens urbanas que fazem fundo para os dramalhões burgueses das nossas novelas (nem mesmo quando elas se querem "menos" burguesas e/ou "menos" metropolitanas). Não são mulheres com padrão de beleza de capa de revista "feminina", nem galãs de propaganda de creme de barbear. Gente mesmo, sabe? São butecos, inferninhos, paradas... casas simples. 



    [Poderia, mas não vou me alongar muito sobre o documentário. O link pra assiti-lo completo tá logo ali em cima taggeado, confiram. Já aviso que é muito da hora, por exemplo, ver o testemunho de uma história de verdade cantada por Odair José em "Eu vou tirar você desse lugar" (canção que eu confesso que conheci recentemente na versão que a finda Los Hermanos fez)]



E versão é o centro dessa brisa e não posso deixar de reproduzir aqui uma fala de Agnaldo Timóteo durante o doc:



 "A mim não chamam de brega. A mim não chamam nunca de brega porque quando eu pego o microfone eu sou um monstro. Você não tem ideia, não tem ideia... você nunca foi a um show meu, nunca foi a uma apresentação minha. Você não tem ideia do que é este "crô" no palco. Eu sou de fácil interação. Eu sou de fácil comunicação. Eu sou alegre no palco. Descontraído. E canto muito. Ninguém percebe que eu sou preto-feio-do cabelo duro porque eu canto muito! Mas canto muito! Muito mais do que Roberto... muito mais! Canto muito!! Por isso eu tô aí até hoje entra meu amor, fique a vontade e diz com sinceridade o que desejas de mim.... [cantarola o clássico de Lupcínio Rodrigues] Mas por que que essa música pode ser brega? Por que não foi feita pelo Chico Buarque? Porque quando o Nelson Gonçalves gravou "Negue" era cafona. A Maria Bethânia gravou virou luxo. É o preconceito que é seguido, que é divulgado, que é programado, e multiplicado contra nós cantores românticos de origem modesta. Nós não somos de uma elite política, elite de sobrenome, nós não somos Buarque de Hollanda, nem Vinicius de Moraes... Nós somos... pessoas do interior!"



Instigante a fala de Agnaldo, mas vamos devagar no andor. Concordo com ele plenamente de que HÁ SIM um preconceito grande (aliado a uma baita hipocrisia) em relação a música brega no Brasil. E sim, há uma questão de classe envolvida. 


 - O movimento político sócio-cultural que fermenta e gera a sigla MPB tem sim um corte de classe e isso tem sim as suas consequências. A aura de música "indiscutivelmente boa" que há em volta dos nomes que ali estiveram envolvidos, direta e indiretamente... (Basta lembrar [e problematizar um pouco a noção de "Eu sou FODA" que Caetano andou berrando por aí  - noutro contexto é claro, mas como toda uma aura de "geração de gênios", como se SER FODA fosse privilégio de poucos ou um dom divino - divergindo absolutamente com a noção de cultura que eu (e meus amigos do Catavento) comungo de que todos são foda, aptos para sê-lo e produzir e etc, etc, etc e etc)




Mas voltando a Agnaldo...

quando ele compara as versões de Nelson e Bethânia, não podemos ficar simplesmente nessa distinção de elementos externos à música. Porque, por mais que o "social", aquilo que (em tese) está de fora da música a influencie, não podemos deixar de ouvir a própria canção! Nesse ponto recorro tanto a Bakhtin quanto a Luiz Tatit. O primeiro que afirma categoricamente que um mesmo enunciado dito em diferentes contextos suscita sentidos diferentes e nos lembra como o tom volitivo-emocional expresso no momento do ato enunciativo altera os sentidos ali expressos. O segundo, o idealizador da "semiótica da canção" , por também nos lembrar que diferentes interpretações da mesma música acaba por revelar novos sentidos, leituras, possibilidades que estavam ali em potência no momento de sua composição e que nem sempre são revelados nas suas versões originais. 



Pode parecer um detalhe besta, mas não é. Esse detalhe besta me faz pensar em como foi possível que a canção do "foda", do "cara-do-sobrenome", ganhasse uma história nos contornos que Karim Aïnouz retratou em Abismo Prateado (2011).










Chegou há pouco nos cinemas o longa-metragem do diretor Karim Aïnouz que levou às telas uma história livremente inspirada na canção  "Olhos nos Olhos" de Chico Buarque, lançada em 1976, no álbum "Meus Caros Amigos" e que ficou muito conhecida na interpretação de Maria Bethânia
Não sei como foi para o público em geral, mas eu fiquei com um pé atrás com essa história de filmar os versos 


Olhos nos olhos,

Quero ver o que você faz

Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando,

Me pego cantando, sem mais, nem por quê.

Tantas águas rolaram,
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você.

     Ainda que escritos por um homem, esses versos são uma delícia de se cantar, ao se sentir mulher nesse mundo machista em que (ainda!!) é feio ser dona de si e do seu corpo pra poder dizer (e cantar) que tantos homens a amaram... e bem mais e melhor que o fdp que foi embora dizendo "pra ser feliz e passar bem" (que aí vem a coisa do homem escrevendo ne? essa "coisa de homem" (machista!) se importar com a "qualidade" do "seu" sexo).
    Confesso que me surpreendi com o que vi. Houve sim um estranhamento, mas nada que faça eco com essa onda de críticas negativas ao filme. Discordo de que o filme de Karim não tenha conseguido transitar e passar a emoção da canção. Acho que é preciso pensar não apenas a letra da canção, mas a sua interpretação, as cores e seus sentidos... quais deles foram pra tela...

    A canção "Olhos nos Olhos" aparece transfigurada cantada à capella por dois personagens que cruzam a madrugada de fênix da protagonista Violeta. Ali a música está longe de ser algo de "luxo" como diria Agnaldo Timóteo e bem mais próximo do universo brega. Uma música popular no sentido de popularizada, de estar na boca do povo... 
    Para completar essa leitura, a música é tocada na cena final no rádio de caminhoneiro e não nas versões mais conhecidas de Chico ou Bethânia (ou de qualquer um dos nomes FODA que Caetano possa vir a citar), mas na versão de Bárbara Eugênia feita especialmente para o filme:

     Concordo plenamente com o Blog UM LUGAR no post de Oswaldo Alves  de que no filme a voz de Bárbara consegue um feito: causar uma certa surpresa mesmo sendo uma das canções mais conhecidas de Chico Buarque e mesmo que já saibamos, de partida, que se trata de uma obra inspirada na canção.

Sim. E se é pra analisar a película como uma canção filmada que se leve em conta a versão de Bárbara e não a de Chico Buarque ou de Bethânia ou qualquer outra...

E isso não é mero detalhe. 
Esse estranhamento da versão de Bárbara é o mesmo estranhamento que temos ao perceber a leitura desses versos tantas vezes cantados passionalmente na madrugada de redenção de Violeta pelas ruas de um Rio de Janeiro que não é de cartão postal, o Leblon da novela do Manoel Carlos.

E era aí que eu queria chegar. Não faço ideia se Karim assistiu ao documentário de Ana Rieper, mas saí do cinema com a sensação de ele havia transformado "Olhos nos Olhos" numa música "brega", numa música de povão. (ele leia-se, por favor, o projeto do filme, o roteiro e, é claro, a versão de Bárbara Eugênia). A história de Violeta poderia ter sido narrada no documentário de Ana Riper e a trilha sonora teria o sintetizador e o canto da versão de Bárbara Eugênia.

Mas aí vocês dirão... "mas você não disse que as cenas do documentário eram de um outro Brasil que não o  das metrópoles e cartões postais?" 

     Sim. Eu disse. E uma das maiores sacadas de "Abismo Prateado" é mostrar um Rio de Janeiro de verdade. Com gente indo pro trabalho, com gente nadando, voltando pra casa semi-nu. Rio de Janeiro com trânsito. Sem Cristo, sem Pão de Açúcar. Rio de Janeiro com barulhos. Muitos. Estridentes. Aquele momento em que a agonia da perda, o desacreditar daquilo que ouvira "adeus!", o tentar entender a falta de mundo debaixo dos pés, se mescla com o som estridente, irritante e ensurdecedor de uma construção civil. 







Para um filme inspirado numa canção, o som ao redor de Violeta não foi pensado em vão. Não foi por acaso que na sua saga madrugadeira em busca de alívio pra dor, Violeta dançou eletricamente o hit de Flashdance.



     Assim como também não ouvimos por acaso tocar na rádio do táxi "You make me feel brand new", ou mesmo as inserções de Claudinho & Buchecha entre os adolescentes da película: sim. Em cada canção havia uma memória afetiva e era a ela que se recorria em cada uma dessas inserções. 

     A citação de "Som ao Redor" de Kleber Mendonça Filho também não foi a toa. Vemos o Rio de Janeiro no Abismo tal como vimos o Recife de Kleber, ainda que em história completamente distintas... Aliás, vale a pena conferir o que Daniel Schenker falou a respeito na crítica "O som ao redor de Negrini".  

     A releitura da canção faz reler a cidade, faz reler a própria figura da atriz consagrada. 
     
     O abismo filmado de Violeta, que é cor de melancolia, de intensidade emocional  e espiritual e que ao mesmo tempo é a cor que proporciona a purificação do corpo e da mente, e a libertação de medos e outras inquietações. É a cor da transformação. O abismo prateado das ondas que não se cansam de quebrar na praia, que testemunha dores, paixões, solidões e encontros. Do vermelho do quartinho de hotel que ela aluga para descansar, dormir, pirar, ouvir novamente as palavras de dor... o mesmo vermelho dos inferninhos filmados por Ana Rieper, em "Vou Rifar meu Coração"...  Os olhos nos olhos com cores dos sons de Bárbara. 

    Pensar no "livremente inspirado na canção de Chico Buarque" é nos fazer pensar no caráter autoral de uma interpretação, de uma apropriação do discurso alheio. Me faz pensar no quanto um intérprete se torna tão autor de uma canção quanto o seu compositor. Que Negue com Maria Bethânia, é Negue DE Maria Bethânia. E que talvez nem mesmo a versão de Nelson Gonçalves para Olhos nos Olhos faria uma boa trilha para as cores da dor e renascimento de Violeta num Rio de Janeiro sem cartão postal.


   Não é pouca coisa filmar uma canção num país como o Brasil, que se sente, se canta, se conta, se sabe através dela. O "Abismo Prateado" é um dos quatro filmes que vi até agora lançados em 2013 inspirados em canções: "Somos tão jovens", cujo título é um trecho de "Tempo perdido" da Legião Urbana; "Faroeste Caboclo", inspirado na canção homônima também da Legião e "E além de tudo me deixou mudo o violão" o telefilme que foi ao ar no CanalBrasil e que é inspirado tanto n' "A Rita" do Chico quanto na "Lovely Rita" dos Beatles (filmes esses que merecerão suas respectivas brisas!)

   Canção nesse país é coisa séria. Filme "de canção", também.