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domingo, 23 de junho de 2013

Desmistificando o Estado, a Sociedade Civil e a Nação - - Diálogos com a obra de Florestan Fernandes.

[pequeno prólogo: este texto foi escrito em 2010, durante o curso de graduação em Ciências Sociais e está longe de ser um tratado sobre o assunto. Eu, hoje, olhando daqui, passados 3 anos, mudaria muitas coisas, mas foi incrível lembrar dele, reler e ver como algumas reflexões me contemplam no entendimento do que se passa nesse junho movimentado no Brasil. Eis porque publico e compartilho]

E o que foi feito
é preciso conhecer
para melhor prosseguir...
(...)
Que é cobramos o que fomos
que nós iremos crescer!

O que foi feito deveraMilton Nascimento


            A análise de Florestan Fernandes sobre a formação sociológica da moderna sociedade brasileira, através da nossa lenta e estrutural revolução burguesa, é antes de tudo um tratado de fidelidade àquela que Marx chamou de única grande ciência da humanidade: a história. Com a lucidez de quem considera a contribuição clássica, ainda que enxergando os seus limites, a formação sólida de Florestan, sua disciplina e seu rigor metodológico, analisa o processo particular da constituição sócio-econômica brasileira de braços dados com a análise histórica: como cada processo histórico brasileiro conteve em si o germe e as condições que propiciaram o desenvolvimento desigual e combinado do nosso capitalismo dependente.
            A obra de Florestan Fernandes é riquíssima e contribuiu diretamente na formação dos estudos sociais no Brasil. Desde o início de sua trajetória, o rigor científico, a análise cuidadosa dos fatos – ainda que não os desejados, mas os fatos -já demonstravam um intelectual maduro e crítico, extremamente sensato na leitura da realidade brasileira[1]. O potencial militante e mais radicalmente crítico da sociologia de Florestan Fernandes é demonstrado após o encontro decisivo com o marxismo. Leitor de Marx desde sempre, é no período em que passa no Canadá, lecionando na Universidade de Toronto, diante de toda a desilusão que estar fora de seu país  - e os motivos que o levavam a tal –  lhe proporcionava, o materialismo histórico pareceu inevitável para a análise dos processos que irrompiam a realidade brasileira, fruto de uma longa caminhada histórica.
            Este tombo marxista fica claro na própria elaboração do clássico A revolução burguesa no Brasil. A primeira parte do livro foi escrita em fins da década de 60 e é caracterizada por uma análise sociológica de altíssimo nível das particularidades históricas da formação do Estado brasileiro e da Independência como germe da nossa Revolução Burguesa e todas as nuances que perpassavam as relações sociais entre seus agentes. Porém, os capítulos finais do livro mostram Florestan na década de 70 se utilizando fortemente do instrumental materialista marxiano, inspirado em leituras de grandes marxistas, tais quais Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, potencializando a capacidade crítica da análise do processo de constituição do capitalismo no Brasil.
            A noção de desenvolvimento desigual e combinado é chave para o entendimento do que Florestan vai chamar de capitalismo dependente. Segundo ele, ao contrário do que algumas esferas do pensamento social e econômico brasileiro concebem, a possibilidade de formação do capitalismo na periferia não perpassa os mesmos processos clássicos dos países de capitalismo central, em que as potencialidades revolucionárias e humanizadoras da burguesia despontaram como parte do processo de constituição dela enquanto classe hegemônica e dominante. Nos países periféricos, o próprio passado colonial traz em si o germe de um capitalismo dependente das antigas metrópoles, se forjando primeiramente com a exportação de produtos coloniais, agrícolas. O passado colonial não dá somente o tom das conciliações entre arcaico e moderno, como também pode ajudar a entender o caráter autocrático da burguesia, que apoiada em práticas mandonistas, paternalistas, forjadas no mito do homem cordial[2], se valerá de uma espécie de violência legitimada, sagrada, para impedir a manifestação das classes baixas, sua organização, sua irrupção para a deflagração de uma situação explícita de lutas de classes.
            Este trabalho pretende abordar sinteticamente, a partir de obras e debates feitos principalmente depois do tombo marxista, os desdobramentos históricos da relação entre Estado e sociedade (como um todo e sociedade civil) no Brasil para tentar esboçar a situação atual desta relação, dialogando com alguns autores da teoria do Estado contemporâneo.
            Uma características da nossa revolução burguesa que a distingue radicalmente dos processos clássicos é não ter trazido consigo as características democráticas e nacionais de tais processos. A burguesia brasileira foi desde sempre restrita ao circuito fechado dos velhos e antigos donos do poder, legando pouco espaço de participação efetiva – e ao menos a possibilidade de sua articulação – por parte dos setores explorados, oprimidos; ao passo que também não forjou minimamente um capitalismo autônomo das economias centrais, subordinando e coadunando seus interesses aos do grande capital estrangeiro.
            Entretanto, este trabalho defende que, ainda que a nação não tenha sido o horizonte da  prática burguesa efetivamente econômica de construção de um capitalismo nacional, o discurso nacionalista foi (e é) fundamental para a produção e reprodução do capitalismo dependente, da desarticulação das classes oprimidas. Tentar-se-á exemplificar e abordar tal ideia na última parte deste trabalho.

Fui escravo do reino
e sou
escravo no mundo em que estou
Mas acorrentado
ninguém pode
amar!

EsseMundo é Meu” – Sérgio Ricardo

            A canção de Sérgio Ricardo “Esse mundo é meu” foi gravada por Nara Leão no álbum de 1964, ano do golpe, Opiniãode Nara. O álbum sintetizava as contribuições melódicas e rítmicas da bossa nova, que permeava a música popular da época (ainda que “inconscientemente” ou contra a vontade) mesclando canções de compositores populares como Zé Keti, então morador de um morro carioca (lugar mítico de resistência e autenticidade brasileira para a esquerda da época) com as canções da revolucionária parceria de Tom e Vinícius de Moraes. O tom político e contestador do álbum, com toda certeza influenciado pelas discussões dos artistas envolvidos direta e indiretamente no Centro Popular de Cultura, não deixou que o primor pela forma estética fosse afetado. O álbum planejado com cuidado pela intérprete é tão rico e completo, demonstrando uma responsabilidade pela vida e pela arte, que inspirou a criação de um espetáculo musical que seria uma catarse da indignação de toda uma geração que contava com a revolução social e não com um golpe militar[3].
            A ditadura militar trouxe à tona, talvez da forma mais explícita no desenvolvimento da revolução burguesa brasileira, o caráter autocrático da burguesia, desmascarando as ilusões quanto a uma burguesia que tivesse um interesse nas questões nacionais e na ampliação da participação social.
            O livro A ditadura em questão reúne quatro ensaios de Florestan Fernandes e tem como objetivo disseminar “o debate sobre todos os aspectos do assunto, sobre todas as consequências que estão no bojo da transformação da sociedade civil e, principalmente, sobre todas as mistificações e ilusões que falseiam a questão da relação da ditadura com a sociedade civil” (FERNANDES, 1982, pg. 5). A conjuntura da escrita dos ensaios é o início dos diálogos sobre abertura política, a anistia que o regime começa a conceder aos presos políticos e a expectativa geral pela Assembleia Nacional Constituinte. A preocupação de Florestan é com a liberalização política outorgada pelo regime, aceita passivelmente pelos setores de esquerda e do centro, que não conseguem ter em mente a dimensão histórica de alijamento das manifestações populares no impulso pelas revoluções democráticas. Para Fernandes a democratização da sociedade deve “escapar do controle de minorias egoístas e destrutivas” e ser “movida pelas dissenções, aspirações e conflitos das massas de oprimidos e deserdados”.
            É realmente fascinante descobrir uma análise tão perspicaz do sociólogo trinta anos depois, assistindo às consequências do processo que ele anteviu. De fato, nossa democratização foi outorgada. As classes altas e dominantes conseguiram por aparatos institucionais, tecnológicos – e muita violência, como sempre – demonstrar sua capacidade histórica de desarticulação das massas e hoje é consenso até entre os intelectuais menos radicais o caráter pouco democrático da nossa sociedade civil.
            A Teoria do Estado Contemporâneo, vigente em algumas esferas da atual Ciência Política, tem travado debates a respeito da sociedade civil, tanto a nível nacional, regional, quanto a possibilidade de uma sociedade civil global. É possível encontrar em nomes como Bresser Pereira[4], intelectual responsável pela reforma do Estado no governo FHC – a mesma levada à cabo e mais radicalmente no Estado de São Paulo, de hegemonia psdebista – um discurso sobre a necessidade de  democratização da nossa sociedade civil, que seria agora, a responsável pela reforma do Estado (que coaduna com a noção neoliberal de um Estado mínimo no que tange às responsabilidades sociais) e pelos serviços sociais que este deixa de cumprir e se responsabilizar com tal reforma.
            Entretanto, a maior parte destes intelectuais se utilizam da noção gramsciana – que remete diretamente à Marx – de sociedade civil como Florestan define: como uma espécie de “cavalo de batalha” (FERNANDES, 1982, pg. 3). É necessário lembrar que a relação entre Estado e Sociedade Civil para o pensador italiano é dialética – um está o tempo todo em relação com o outro, tanto na construção da hegemonia quanto condução das demandas[5]. Pensar Estado e Sociedade Civil como esferas autônomas é um erro cabal, que pode levar a análises sociológicas que perdem de vista as peculiaridades e contradições dessa relação – que no Brasil, diga-se de passagem, são muitas.
            Mais uma vez Florestan Fernandes contribui para o entendimento histórico desta relação. No capítulo A concretização da Revolução Burguesa[6], Florestan procura desmistificar e conciliar duas ideias fundamentais que perpassam a nossa revolução burguesa: a constituição capitalista brasileira se dá através da conciliação das antigas formas de poder coloniais com a modernização dos interesses burgueses, de maneira a forjar um tipo de capitalismo dependente das economias centrais. Logo, pela própria natureza do nosso tipo de capitalismo, a possibilidade da burguesia trazer consigo aspectos modernizadores para toda a sociedade é necessariamente inviável. A  modernização da sociedade brasileira é impulsionada por um pacto tácito de dominação de classe, onde a burguesia se compromete com tudo aquilo que lhe seja vantajoso
            O discurso liberal da Primeira República era um “adorno”, objeto de ostentação, “um símbolo de modernidade e civilidade” no qual a burguesia estava envolta. Como coloca Florestan:

Quando os outros grupos se puseram em condições de cobrar essa identificação simbólica, ela se desvaneceu. A burguesia mostrou as verdadeiras entranhas, reagindo de maneira predominantemente reacionária e ultraconservadora, dentro da melhor tradição do mandonismo oligárquico (que nos sirva de exemplo o tratamento das greves operárias na década de 1910, em São Paulo, como puras 'questões de polícia', ou, quase meio século depois, a repressão às aspirações democráticas de massas). (IANNI, 2000, pg.429)

            Florestan constata que o espírito modernizador deveria ser moderado e se delimitar às “fronteiras de difusão de valores, técnicas e instituições instrumentais” suficientes para a formação de uma economia dependente, já que ir além disso “representaria um risco: o de acordar o homem nativo para sonhos de independência e de revolução nacional, que entrariam em conflito com a dominação externa” (IANNI, 2000, pg. 430).
            Este “circuito fechado” burguês definiu o “inimigo comum”: no passado o escravo, ou o liberto, no presente, o assalariado ou semi-assalariado do campo ou da cidade. A eclosão do regime de classes fez com que “as reservas de opressão e repressão” desta sociedade em formação fossem “mobilizadas para solapá-la e para impedir que as massas populares conquistassem, de fato, um espaço político próprio, 'dentro da ordem'.” (IANNI, 2000, pg. 432)
            Não fica difícil então entender a reação de 1964, quando pensamos que o período que antecede o golpe fervilhava de manifestações justamente dos setores que desde a Independência foram duramente reprimidos e desarticulados. Para Florestan, os setores dominantes “não tinham outro recurso, para se protegerem das consequências diretas ou indiretas do novo modelo de desenvolvimento econômico, social e cultural, se não neutralizar as crescentes pressões internas, favoráveis às reformas estruturais e democráticas.” (FERNANDES, 1977, pg. 109).
            Apesar de todos os problemas que se possam apontar sobre este período que parte da bibliografia marxista tende a chamar Nacionalismo e reformismo radical[7], as Ligas Camponesas, as lutas urbanas, a articulação crescente e frutífera de intelectuais e artistas da classe médias com as classes populares, além da expectativa pelas reformas de base com João Goulart são motivos suficientes para que as classes dominantes instaurem uma revolução, a fim de assegurar as condições de segurança e desenvolvimento necessárias para os interesses da burguesia nacional atrelada fortemente ao capital estrangeiro. É necessário se ter em vista também a conjuntura histórica do “perigo comunista”, que pôde propiciar uma justificada interferência do exército norte-americano na articulação e manutenção do golpe militar.
            Nas palavras de Florestan, “os trabalhadores agrícolas e os operários são deslocados para essa fronteira da subversão da ordem não mais como um perigo público potencial, mas como uma infecção mortífera em processo” (IANNI, 2000, pg. 154). Até 1964 era possível às classes possuidoras combinar “produtivamente cordialidade, violência orgânica institucionalizada e ordem civil” (Idem, pg. 153), valendo-se do discurso do homem cordial, que impulsionava “a perpetuação e a revitalização de todo um sistema paternalista de poder (Idem, pg. 151)” ao passo em que se constituía de fato como “uma simpatia ostensiva, que se esfrangalhava sob os menores arranhões, até a forte estrutura menos visível mas sólida da simpatia profunda entre iguais, que funcionava no grupo de parentes e em outras esferas” (Idem, ibidem), permitindo que as classes possuidoras se iludissem a si mesmas e em relação aos outros.
            Tal ilusão acaba com o golpe: ora, “a segurança nacional” está sob risco, e afinal, a nação é aquilo pelo qual todo o cidadão deve zelar e querer bem. “Brasil, ame-o ou deixe-o.” E como culpar a classe média brasileira de apoiar a ditadura, que nasce do seio da sociedade civil, se ela declara em alto e bom tom que pretende cuidar da nação que tanto a direita quanto a esquerda lutaram para legitimar, ensinando a própria classe média a amar?
            A preocupação de Florestan em desmitificar o caráter não democrático e nacional da burguesia brasileira fica mais clara quando entendemos que por muito tempo as próprias esquerdas brasileiras contaram com o fortalecimento de uma burguesia nacional, que bateria de frente com o Imperialismo e promoveria o fortalecimento das modernas instituições democráticas e representativas. Tais medidas levariam ao desenvolvimento de um capitalismo autônomo, que como tal, demandaria uma classe operária forte e esclarecida e daí então pronta para a demanda socialista, como lhe cabe no seu papel de sujeito histórico – o famoso etapismo stalinista.
            Para elucidar tal atmosfera podemos analisar superficial e sinteticamente as discussões no campo da cultura[8]. Os Estados Unidos enquanto uma nação jovem tinha diante de si uma defasagem cultural diante das nações europeias. A fase capitalista que se vivia no início do século XX demandava uma afirmação de nacionalidades fortes, visto que os grandes impasses se travavam no bojo das nações. Uma das primeiras indústrias que se fortalece pioneiramente nos Estados Unidos, satisfazendo tal exigência e contribuindo para a sua construção ideológica enquanto nação hegemônica, é a indústria cultural. A produção de quadrinhos, a legitimação do jazz como manifestação puramente ianque, os filmes, dentre tantos outros produtos norte-americanos, se tornaram produtos comerciais altamente rentáveis e estratégicos ideologicamente, cuja imersão se deu principalmente nos países latino americanos.
            A esquerda brasileira, que procurava combater o imperialismo, estava extremamente preocupada com a influência da cultura norte-americana nas manifestações autênticas e legitimamente brasileiras. Assim, a medida a tomar era preservar nossas manifestações culturais autênticas das influências modernas. E a essa altura qual era o nosso “produto” autenticamente nacional? O samba. [Um esforço sociológico não muito grande pode nos fazer enxergar que a gênese sócio-histórica do samba e do jazz tem muitos pontos em comum (tal qual o Tango argentino).]           
            Porém, como parar a cultura? Como impedir que os jovens dos centros urbanos, com acesso ao rádio e alguns à vinis não ouvissem a música que vinha de fora? E o que fazer quando as influências se casam, e misturando samba, jazz, marcha, choro, cha-cha-chá, nasce um novo jeito de tocar, a bossa-nova?
            Ainda que parar a cultura seja difícil, grande parte da arte engajada e seus críticos nacionalistas tentaram fazê-lo, se voltando para o morro carioca e para o samba de raiz como manifestações que deveriam ser preservadas e que carregavam em si a verdadeira brasilidade. A bossa-nova, marca dos anos dourados, fruto da modernização dos centros urbanos carioca e paulista, chegou a ser vista como arte alienada. Se a “influência do jazz” foi vista como tão maléfica, como então aceitar que os tropicalistas introduzissem guitarras elétricas em suas canções, deixando de lado um instrumento verdadeiramente nacional, como o violão, para usar uma mercadoria vinda do país imperialista, reiterando o nosso colonialismo cultural?[9]
            A esquerda acreditava na nação tanto ou mais que a própria direita, que se utilizou dela para promover sua revolução que docilizou o terreno para o capital estrangeiro.
            Na coletânea de ensaios Circuito Fechado, Florestan Fernandes, no terceiro capítulo, discute a ditadura militar e os intelectuais na América Latina. Sua exposição considera três aspectos primordiais na análise da ditadura militar: o primeiro deles é que a ditadura é, na realidade, uma ditadura de classes. Florestan argumenta dizendo que as formas democráticas de governo precedentes se caracterizaram, mesmo quando havia apoio popular, por uma concentração do poder estatal, sendo um “sistema flexível de opressão e de dominação autoritária, através do qual as classes altas e alguns círculos privilegiados das classes médias monopolizavam o poder politicamente organizado” (FERNANDES, 1977, pg. 106). Segundo aspecto é a perspectiva tecnocrática que a ditadura teve que relegar a si, na busca de forjar um discurso em termos “neutros”, “profissionais”, que por sua vez foi possível através da concepção de “desenvolvimento com segurança” (Idem). O terceiro aspecto foi o golpe proclamar a si mesmo como uma “revolução”, legitimando-se através do  “seu próprio 'poder revolucionário' e de sua capacidade de submeter todos os ramos do estado (inclusive o parlamento e a justiça) e todas as camadas da sociedade às orientações 'institucionais' militares”. (FERNANDES, 1977, pg. 107).
            A ideia de revolução teria sido retomada do passado (remetendo à revolução burguesa e não à revolução proletária) como “uma necessidade psicossocial, moral e política” (FERNANDES, 1977, pg. 109)

A ênfase na necessidade de desenvolvimento rápido, auto-suficiente e contínuo estendeu-se a todas as classes através da propaganda, dos escritos do intelectuais ou dos movimentos de massa e da influência de algumas agências internacionais, contribuindo para simplificar a redefinição cultural da ideia de revolução. Ela foi mantida isolada do seu significado real, enquanto concepção de classe e como 'projeto de classe'. (Idem)
           
Ó senhor cidadão
eu quero saber
eu quero saber:
com quantos quilos de medo
com quantos quilos de medo
se faz uma tradição?

Senhor Cidadão” – Tom Zé
           
            Conceber o Estado tal qual Marx – e Florestan – é entendê-lo como instrumento da acumulação capitalista, e não como um organismo político autônomo. Assim, conforme mudam as necessidades de produção e reprodução do capital, a forma de Estado, formulação, regulação e execução do poder mudam também. Desta forma, entender os limites do “poder político-militar”, como quer Florestan no ensaio anteriormente citado, é ter em mente que a ditadura “está condenada a desaparecer tão logo se torne necessária”. (FERNANDES, 1977, pg. 115)
            Discutir as funções econômicas e sociais que a ditadura cumpriu ao longo dos anos em que se manteve no poder extrapolam a intenção primeira deste trabalho. Todavia, este assunto deve ser amplamente debatido não só em termos das políticas econômicas, mas no tipo de sociedade que a ditadura formou e que reflete nos dias de hoje. A obra de Tom Zé[10], assim como de tantos outros compositores da música brasileira, oferecem grandes pistas para entender que o quadro de ampla influência da mídia na formação da opinião pública, o incentivo ao consumismo, individualização, desencanto, tristeza, pânico e medo, legitimação da violência que vivenciamos hoje de forma tão exacerbada, foram impulsionados durante o regime.
            Desta forma, o trabalho agora se volta para o momento de abertura política, de flexibilização do regime. Na síntese de Florestan, os militares “devorados pelo monstro que inventaram e produziram não tem ao alcance da mão outra saída segura. Veem-se compelidos a selar uma segunda aliança, na esperança de que a da costela da ditadura nasça seu complemento político, a apregoada 'democracia pela qual sempre ansiamos'... (FERNANDES, 1982, pg.8)
            Ou seja, o regime dá sinais de ruínas e pretende ele próprio conduzir a cena política do que virá depois dele. Florestan Fernandes enxerga a concessão da oposição tanto de centro quanto de esquerda (a que ele chama de esquerda da burguesia, e não proletária) em permitir que os militares deem o tom da transição, sem desmistificar seu “gradualismo democrático”. Acusa a oposição de não se aproveitar do terreno movediço no qual se encontra ditadura, levando às ultimas consequências o combate decisivo, aberto, direto e permanente[11].
            Interessante notar que em entrevista à Ensaio, Florestan fala sobre o PSDB – que reunia os dissidentes mais radicais e heterogêneos do PMDB –  e sua “predisposição social-democrata” oscilante e moderada -  uma tentativa, ao menos retórica, de instaurar o welfare state na periferia. Esta crítica à oposição, em estar oscilante e pouco incisiva na pressão da abertura política, revela suas consequências na hegemonia peessedebista que o Brasil vivenciou nos anos 90, com o governo de FHC, e as medidas políticas do estado de São Paulo, cuja hegemonia ainda vivencia. A posição oscilante de Mário Covas, que Florestan analisa, “quase privilegiada, porque está dentro, mantendo-se fora, deslocando em uma posição altamente vantajosa e correndo o páreo como se não estivesse nele” (FERNDANDES, 1989, pg. 151) demonstra o quão estratégica é a atitude de neutralidade que esta oposição forjou, mantendo-se afastada nas manifestações populares, posicionando-se contra o autoritarismo militar, ao mesmo tempo em que aglutina “interesses econômicos variados, assim como religiosos, intelectuais, comerciais e financeiros”, mantendo assim a aparência de que a ditadura está acima das classes, e de que a questão da ditadura se encerra na sua derrubada – ainda que concessiva – sem se deter no fato de as massas populares e oprimidas continuassem sem voz no processo e na participação política efetiva do país.
            Eis aqui o ponto defendido exaustivamente por Florestan: a única forma de haver uma democratização de fato da sociedade civil brasileira é através da mobilização popular; da tomada de consciência das classes subalternas da sua “privação de uma cidadania plena”, de que são “despojados de peso e voz”[12]. As classes dominantes provaram ao longo dos séculos – como já exposto – que não tem nem interesse e nem capacidade pela própria constituição dependente do capitalismo brasileiro de provir uma situação política em que a luta de classes realmente se efetive, e as demandas dos oprimidos possam impulsionar transformações da sociedade ainda que dentro da ordem.
            Diante da conjuntura de transformação Florestan retoma exaustivamente o ponto de que a democratização da sociedade só pode se dar radicalmente, através das classes oprimidas e subalternas. Caso contrário o “pluralismo democrático” não passará de mera “verborragia”. E de fato a história mostrou que Florestan tinha razão.
            Enquanto deputado, Florestan pôde dar testemunhos e balanços sobre a Assembleia Constituinte que esclarecem muito o quadro que temos hoje. Por exemplo, seguindo mais uma vez os passos históricos, as medida provisórias – amplamente confundidas com decreto-lei – acabaram se tornando instrumento “do arbítrio do poder presidencial, do poder imperial, da república autocrática”, mantendo a ostensiva concentração de poder no executivo em detrimento dos outros poderes.
            A oposição não tinha um projeto claro para a Constituinte e os pontos de importância prática da sociedade como um todo passaram ao largo da discussão. Ainda que a esquerda se apresenta-se como uma resistência, perdeu em pontos fundamentais, como direitos e a questão da reforma agrária, tanto porque não é de interesse algum da burguesia na promoção dessas reformas, quanto pela falta de uma articulação mais radical e ativa entre os constituintes e as mobilizações das classes populares.
            Outro ponto vivido por nós na contemporaneidade e do qual Florestan já falava era a “desmoralização do parlamento”. Esta desmoralização é fundamental no jogo do executivo de se manter como o poder central, ainda que por trás da cena. A população culpa os parlamentares, os partidos de esquerda fazem protestos retóricos nas tribunas - “para isso servem os parlamentos![13]”, e não se percebe a força do executivo agindo na surdina. Mas “para que o parlamento e todo o estado mudasse de caráter, seria preciso que a própria sociedade civil desse maior peso, maior força às classes trabalhadoras”[14]. E continua: “como dizem os dois mestres, Marx e Engels, a chave está na sociedade civil. Estado e sociedade civil são interdependentes, mas o processo de transformação se desencadeia a partir da classe e não do estado”[15].
            Para isso, o autor defende que é necessária a orientação numa perspectiva revolucionária, exigir consciência socialista, além de um partido que seja capaz de difundir o socialismo: proletário, marxista e revolucionário. E ao fazer essa ressalva já enxerga no PT, partido ao qual então era filiado, que se este não ficasse “numa posição socialista” não faria “sequer um revolução dentro da ordem” seria “apenas instrumental” para uma “modernização dirigida a partir de fora e de cima”[16]. E a história mais uma vez mostra que Florestan estava certo.
            Outra discussão de Florestan, desta vez no último artigo de A ditadura em questão, aborda outro ponto muito latente em nossos dias: a questão da violência. Vale a pena reproduzir seu raciocínio sobre a violência institucionalizada da sociedade industrial:

a civilização industrial moderna possui uma sociedade na qual a massa de violência não apenas é normalmente muito alta; é também rotinizada; é dispersa por todo o corpo da sociedade; é concentrada nas instituições-chave de dominação direta e indireta de classe e, reciprocamente, nas instituições de autodefesa e de contra-ofensiva das classes trabalhadoras; e é especializada em órgãos criados para “regular” ou “conciliar” os conflitos de classes (em escala individual e coletiva), sendo, pois, “legitimada” no âmbito do direito positivo e da ação “unificadora” do Estado. (FERNDANDES, 1982, pg. 133)

            Há também o que Florestan chama de violência caótica e anômica, tida como “útil” ou “mal necessário”, que constitui a base sobre a qual opera a violência institucionalizada. Esta violência está imersa entre as classes subalternas.
            Como um pensador dialético, se Florestan pensa a violência da classe dominante é porque pretende refletir sobre a contraviolência: “à violência das classes possuidoras contrapõe-se a contraviolência das classes oprimidas e exploradas” (Idem, pg. 134). E continua dizendo que a contraviolência “pode libertar-se dos liames das funções defensivas e manifestar-se como 'força motriz' da história, isto é, como fator de desagregação da produção capitalista, da sociedade burguesa e do Estado correspondente, qualificando-se como contraviolência revolucionária” (Idem, ibidem).
            Para cumprir sua responsabilidade de democratizar a sociedade civil e aprofundar sua ordem político-legal, as classes subalternas, entretanto, deveriam gerar, segundo Florestan, o “direito à revolução”, se quisessem “sair de um estado de subalternização permanente” (Idem, pg. 155). Para isso, Florestan entende que é necessária uma “rotação histórica prévia” que entende por: a) “absorver e eliminar de seu meio social intrínseco a violência anômica e destrutiva, que impede a unificação, a solidariedade e o desenvolvimento independente de classe” e b) “acumular uma massa histórica de violência positiva e criadora que possa ser transformada em fonte de autodefesa e de contra-ataque, ou seja, que possa alimentar a solução dos antagonismos de classe a nível da organização da sociedade civil e do Estado” (Idem, pg. 156).

Telas falam colorido
de crianças coloridas
De um
gênio
televisor
E no andor de nossos novos santos
O sinal de velhos tempos
Morte,
 morte,
 morte ao amor!

Milagre dos peixes” – Milton Nascimento

            Para quem assiste os tele-jornais, ouve as notícias, partilha dos comentários do senso comum, lê a revista Veja, ou simplesmente foi educado para pensar que o mundo se define e se limite a esses universos de entendimento, pode soar um absurdo, no mínimo uma utopia descabida o desejo de Florestan pela rotação histórica das classes subalternas. A televisão parece se deliciar em sangue, cultuar o medo. A violência das grandes capitais atinge um status no imaginário do país como um todo a ponto de não nos sentirmos tocados pela crescente desumanização que este mundo, de tempo acelerado, impõe cotidianamente, a todas as esferas da vida social. A reificação do homem, o fetiche abusivo e absurdo da coisa, do ter, da mercadoria, da imagem, do parecer crescem e demandam tanto tempo da existência do cidadão de bem, que a sensibilidade pelos absurdos que ouve cotidianamente nos tele-jornais, nas esquinas e nos botecos parece ter atrofiado.
            Florestan anseia por uma violência produtiva, por uma solidariedade de classes, como pensar isso sendo possível se a mídia, que contém o maior poder de formação da consciência, ensina em doses homeopáticas e constantes que os movimentos sociais são baderneiros, criminosos? A democracia é o máximo, mas há que ser representativa. Nossos representantes habitam a longínqua Brasília e se por acaso nós não ficamos satisfeito com o que fazem – ou não fazem – em nosso nome e vamos até a ilha da política reivindicar e tentar ser ouvidos, é com a polícia que encontramos, e não com eles. E aí, vê-se no jornal, depois do trabalho, um bando de baderneiro atrapalhando o andamento do parlamento. Ou então, vemos em um programa humorístico, com ar de denúncia e “engajamento político” as falcatruas que perpassam a nossa política, sua roubalheira, seu descaso, e antes de voltar pra correira do trabalho, para as prestações do fim do mês, nos limitamos a pensar: “é, tudo a mesma coisa! Tudo um bando de vagabundo!”. E nunca nada dá em nada, nunca nada vale a pena.
            E assim o barco vai correndo: as vezes algum governo com um pouco mais de compaixão, distribui alguns trocados para os mais miseráveis, enquanto a flexibilização da produção capitalista aumenta o contingente de desempregados estruturais. O medo, o pânico, a tristeza, a atomização dos indivíduos só cresce. O movimento adolescente emo (os emotivos) são quase como o “mal do século” dos poetas em fins do século XIX. Mas temos internet, uma classe média que consome descontroladamente, em diversas vezes... e quantos não dizem ao ver a “balbúrdia” na televisão: “ai que saudade da ditadura!”!?
           
Eu vi uns patins pra você!
Eu vi um Brasil na tevê...

Bye bye Brasil” - Chico Buarque
           
            Se a nação não esteve no horizonte das preocupações da burguesia no seu projeto de acumulação e reprodução de capital, podemos dizer que a necessidade de se forjar ideologicamente a ideia de nação se faz presente desde a Independência, momento que Florestan identifica como início do processo estrutural de revolução burguesa no Brasil.[17]
            É radicalmente diferente pensar o sentido de nação para os países de formação clássica. Por exemplo, a França. Um país de dimensão territorial muito menor que o Brasil, onde realmente a constituição da língua francesa enquanto oficial, na transição da baixa Idade Média para o início da Idade Moderna, é realmente revolucionária perante o uso obrigatório do latim, instituído pelo mundo feudal, uma vez que era a língua realmente falada por maior parte da população francesa. Além do mais, a unificação e o Estado burguês representaram de fato um avanço nas relações sociais para grande parcela população. Não obstante, há o legado memorial da revolução francesa.
            É realmente necessário forjar uma ideia de nação em uma porção de terra continental, que foi colonizada em fragmentos, mantendo concomitantemente diferentes tempos históricos, tipos de produção e reprodução social, línguas e costumes. Realmente, pensar Estado, ainda mais na conjuntura do início do século XX, é necessariamente pensar em Nação. Uma ex-colônia precisa se legitimar frente à sua ex-metrópole e às outras nações com as quais pretende negociar e submeter. A noção de nação é sempre relacional, sempre precisa ser pensada na relação com outras nações.
            O campo da cultura talvez ofereça bons exemplos para uma análise breve, superficial e sucinta das aspirações nacionalistas desde a Independência até os dias de hoje.
            Desde os românticos, tem-se a tentativa de forjar uma cultura autenticamente brasileira, que relatasse o Brasil, sua particularidade, que criasse sua história. O apelo indianista de José de Alencar demonstra mais uma tentativa de assimilar o modelo europeu romântico àquilo que era possível conceber em termos de Brasil, do que efetivamente criar algo que reproduzisse as nossas particularidades históricas, tal qual Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida fizeram.
            O modernismo foi outra tentativa de brasilidade. A antropofagia, a capacidade de abrasileirar o que vinha de fora, mesclando com os elementos que são próprios da nossa formação histórica, produziu realmente um momento extremamente fecundo da cultura brasileira. Paradoxalmente, esse movimento foi apropriado pelos interesses estatais:

a política cultural do primeiro período de Getúlio Vargas (1930-45), em grande parte obra dos intelectuais e artistas modernistas, de esquerda e de direita (Paulo Duarte, Carlos Drummond de Andrade, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, entre outros) que atenderam ao chamado poder central de compor a burocracia federal da cultura, “institucionalizando” e ideologizando os símbolos e patrimônios da identidade brasileira” (NAPOLITANO, 2007, pg. 590).

            Não se deve perder de vista que o governo de Getúlio foi responsável pela sistematização da ideia de nação, instituindo o português como língua oficial e sua obrigatoriedade de ensino e fala, além das políticas culturais, a moralização do samba e criação de “escolas de samba[18]”. O rádio foi fundamental para o governo de Getúlio e por muito tempo será o principal mecanismo de integração social de um continente tão diverso e criará, ainda que de forma “integradora, centralista e  autoritária” um “idioma cultural nacional-popular”.
             Este princípio de brasilidade, legado do primeiro período getulista, é incorporado pela arte engajada comunista dos anos 1950, na “defesa da nação-povo contra a alienação e a dominação cultural 'imperialista'” (Idem, ibidem).  Os anos 50 enchem de fato o povo brasileiro de orgulho: o campeonato mundial de futebol, a bossa nova, os automóveis e nada melhor para iniciar uma nova década do que uma nova capital.
            A preocupação nacionalista permeou diversos círculos culturais da época não apenas no eixo Rio-São Paulo: o fato é que de um jeito ou de outro, a busca por incitar a brasilidade dos brasileiros pela arte era quase um dever cívico. As aspirações pelas tarefas que a nossa burguesia “ainda” não tinha cumprido em relação à nação e à democracia, pairavam no ar, como ventos revolucionários [ao menos para classe média urbana esclarecida, para os movimentos sociais do campo e da cidade].
            O golpe de 1964 foi mais uma vez a apropriação do discurso de um movimento cultural (exceto a questão da terra, que não foi e nem nunca será resolvida a partir de cima): não a toa golpe se intitula revolucionário.
            Concomitantemente ao golpe, a televisão cresce no país. A tevê terá o mesmo peso para os militares que o rádio teve para Getúlio, principalmente a Rede Globo. A formação da opinião pública, omissão de fatos, transmissão de outros, geração de prioridades e assuntos: a televisão cresce e vai se ramificando, se alastrando conforme o consumo e a propaganda ganham impulso por todo o país ao longo das décadas. É através da televisão que a maioria dos brasileiros conhece grande parte do território que compõe a nação.
            Não é de espantar o caráter utópico do Rio de Janeiro para os brasileiros como um todo (menos os paulistas, por questões históricas outras) como cidade cartão-postal do Brasil. Capital desde a vinda da família real até 1960, o Rio de Janeiro forjará a imagem da nação tanto para o próprio Brasil quanto para o exterior. E é impressionante que mesmo com todas as contradições latentes que a cidade carrega, a imagem ainda é eficaz: o cartão-postal será palco do confronto e confraternização das nações na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016. [E para tal, podemos esperar um grande massacre nas favelas, a fim de deixar a cidade “apresentável” aos grandes milionários do mundo todo que se divertirão no Rio durante os jogos].
            As novelas exibidas quase diariamente reproduzem geralmente a mesma narrativa: os conflitos de uma família burguesa, suas relações paternalistas com seus doces e prestativos funcionários, integrantes de uma classe média, educada e consciente. Os pobres quando aparecem ou são bandidos ou são idealizados, mas nunca revolucionários. O patrão quando é ruim, é um ruim maniqueística, porque afinal de contas, sempre há um mocinho bom caráter que herdará toda a fortuna e tratará a todos com respeito e solidariedade. As novelas nos ensinam o que é normal, como agir para agradar o patrão, e nos ensinam que o patrão “é gente como a gente”. As novelas nos ensinam a consumir, a moldar os corpos. As novelas são alívio para alma. São o mais próximo de narrativas a que um povo, que foi privado de cultura literária, tem acesso.
            Nos tele-jornais aprendemos que o Brasil não é o país dos sonhos, mas um dia pode ser, pois se não vemos as nossas notícias, acompanhamos passo a passo tudo que se passa com as nações desenvolvidas [das quais somos dependentes financeiramente, para qual exploramos exaustivamente nossa população] para aprender com elas. Dos nossos vizinhos pobres, ou dos países mais miseráveis que o nosso aprendemos a pensar só “que pena!”, longe de entendermos na particularidade histórica de seus processos, semelhanças com a nossa miséria[19].
            Os meios de comunicação são uma forma velada de violência, mas extremamente útil e eficaz, que nos ensina a ser brasileiros, vendo o pouco que nos mostram das injustiças terríveis que se alastram pelo país, ajudamos a legitimá-las pelo bem da nação.
            A política se parece cada vez mais com um comercial bem produzido, que vende obras, imagens e carisma. Um pensador italiano, em extrema crítica ao momento histórico que vivemos, que constitui o que ele chama de “homo videns”[20], argumenta que a formação de hegemonia e coesão política não se faz mais pelos partidos; o candidato não angaria votos pela plataforma de ação política, sua articulação com a base, menos ainda com a ideologia do partido. Todos eles aprenderam que a “propaganda é a alma do negócio” e por fim nossa política, que já é um circo mesmo, não passa de uma questão de marketing.


       


NACIONALISMO
                                                                                              Mauro Iasi

             Nação é um retângulo de pano
            uma música alegre.
             Nação é um esforço insano
            com o qual um povo triste e pobre
            encobre seus enganos.







À PÁTRIA QUE ME PARIU

                                                                                              Mauro Iasi

Não me agradam as Pátrias.
Nada me dizem as fronteiras,
talvez por serem bordadas em sangue
no corpo da minha bandeira.

Se tenho alguma sina,
que seja, então, brasileira,
mas antes do verde e amarelo
queria a aquarela inteira.

No fundo pintaria o negro
desta noite derradeira.
Um negro que saiu da África
que já foi a terra da minha companheira.

Do olho de minha amada
roubaria uma centelha
incendiando a manhã com o vermelho
do sangue da humanidade inteira.







            Depois de toda essa reflexão, é difícil concluir tal como fez Florestan: enxergar nos galhos dos presentes, as folhas do futuro. Difícil tecer um panorama, apontar caminhos e direções. Mas não podemos nos render. É dever do intelectual, pela dignidade de assim ser chamado, cultivar a força crítica do pensamento, a liberdade de poder pensar com a própria cabeça. Um grande pensador russo disse uma vez que uma característica da modernidade é falar pela palavra do outro, discorrer através de citações. O discurso não é mais enfático, afirmativo, construtor: sua tendência é cada vez mais concessiva, precisamos nos remeter a palavra do outro, construir uma colcha de retalhos para então ousar dizer aquilo que passa pela nossa essência, o que diz respeito às nossas inquietações. Marx já reclamara disso, de como nem a liberdade de estilo lhe era cedida.
            Em tempos de alta produtividade acadêmica, onde papéis dizem mais do que somos, do que realmente a nossa caminhada e construção cotidiana, ousar pensar com a própria cabeça beira o subversivo. Somos ensinados a recortar o objeto, a ir com calma, a rever e rever, a pedir licença pra pensar. Talvez venha daí a ousadia em dizer que esse trabalho tentou. E não dizer grandes verdades, ou verdadeiras sínteses, mas se permitir a liberdade de dizer, de articular as leituras com a realidade latente do cotidiano.
            Apesar do tom cético da minha fala, acredito que é dever de todo pensador crítico, que tem a perspectiva da transformação, do devir, manter em si uma positividade que norteie as ações. Concluir sempre com sorriso, e não aumentar a tristeza. Diante da tristeza crescente que isola as pessoas, a competição que as torna indiferentes, uma sociabilidade reificada, onde o ter determina o ser, é necessário humanizar o mundo. Tornar as cores brilhantes novamente, os afetos importantes, o coletivo uma realidade cotidiana palpável. Transformar o cotidiano, desde a forma de se alimentar à maneira de tratar qualquer conhecido na rua. Se queremos um mundo melhor é porque acreditamos nas pessoas, que todas elas merecem um mundo melhor. Nada melhor do que começar exercitando isso no cotidiano, transformando as esferas, reiterando em cada diálogo como o capitalismo é desumano, sua produção e reprodução são irracionais. Fazer viver na consciência das pessoas próximas, a partir das mediações que lhes sejam possíveis, a essência das coisas.
            Temos diante de nós um mundo cheio de potencialidades, é necessário pensar em formas de transformar tais potencialidades em individualidades para si, onde cada ser possa tirar proveito das objetivações do gênero humano para se emancipar das reificações do capitalismo e então ser mais um a pensar e construir um novo mundo, lutar verdadeiramente por ele.


           


Referências bibliográficas:

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DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1996.
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IASI, Mauro Luis. Meta amor fases: coletânea de poemas. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Crítica da mais recente filosofia           alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão        em seus diferentes profetas. 1845-1846. São Paulo: Boitempo, 2007
_____. Sobre Literatura e Arte. São Paulo: Global Editora, 1980
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira: (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. São Paulo: 34, 2008
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RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV  (Record, 2000).
SARTORI, Giovani Homo videns:televisão e pós pensamento (Edusc, 2001)
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira (Lisboa: Caminho, 1990)
























UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”
Campus de Araraquara
Curso de Ciências Sociais












Desmistificando o Estado, a Sociedade Civil e a Nação

Diálogos com a obra de Florestan Fernandes.







Trabalho final apresentado à professora Maria Orlanda Pinassi como requisito à aprovação na disciplina Tópicos Especiais Em Pensamento Sociológico: Pensamento Social No Brasil.










Isabela Martins de Morais e Silva











Araraquara, junho de 2010.




[1]    Um exemplo do reconhecimento da contribuição constante de Florestan à leitura da realidade brasileira está presente na análise de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira: (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. (São Paulo: 34, 2008). Além de grandes intelectuais tais como Antonio Candido, Otavio Ianni.
[2]    Conferir a discussão sobre o homem cordial que Florestan Fernandes desenvolve no último artigo do livro A ditadura em questão (São Paulo: T. A. Queiroz, 1982), Nos marcos da violência pg. 127-164
[3]    A respeito do engajamento cultural nos anos 1960 conferir o trabalho de Marcelo Ridenti Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV  (Record, 2000).
[4]    Cf. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade civil: sua democratização para a reforma do Estado. In BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, WILHEIM, Jorge e SOLA, Lourdes (orgs) Sociedade e Estado em Transformação. UNESP/ENAP 1999. 67-116.
[5]    Vale registrar que ainda que o caráter mais radicalmente crítico de sua obra tenha se perdido ao longo das últimas décadas, Marco Aurélio Nogueira produziu um excelente artigo retomando a noção gramsciana de sociedade civil, tentando decantá-la das utilizações errôneas no seio das atuais análises políticas. cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Sociedade Civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais – Vol. 18 nº52 junho/2003, pg. 185-202.
[6]    Capítulo presente em A Revolução Burguesa no Brasil. Para este trabalho e as citações retiradas de mencionado capítulo, nos utilizaremos do excerto presente na coletânea organizada por Otávio Ianni (2000) Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante, editada pela Expressão Popular, retirada da edição de 1977 do original de Florestan, editado pela Jorge Zahar.
[7]    Conferir FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão (org) Nacionalismo e Reformismo radical (1945-1964) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (As esquerdas no Brasil; v.2)
[8]    Sobre as discussões do período conferir o artigo de Marcos Napolitano Forjando a revolução, remodelando o mercado: a arte engajada no Brasil (1956-1968) in Nacionalismo e Reformismo radical (1945-1964) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (As esquerdas no Brasil; v.2), pg. 585-617
[9]    Esta leitura está fortemente presente na obra de José Ramos Tinhorão História social da música popular brasileira (Lisboa: Caminho, 1990). Ainda que não concordemos aspectos fundamentais da análise sobre o desenvolvimento da cultura, há que se destacar que sua obra é de fundamental importância para qualquer estudo sobre cultura brasileira, embasada em registros históricos e pesquisas de alto rigor metodológico.
[10]  Destacamos aqui os álbuns A grande liquidação (1968), Tom Zé (1970) e Se o caso é chorar (1972).
[11]  Cf. FERNANDES, 1982, pg. 8
[12]  FERNANDES, 1989, pg. 155
[13]  Idem, pg. 144-145
[14]  Idem, pg. 126
[15]  Idem, pg. 127
[16]  Idem, pg. 142
[17]  Conferir o capítulo 2 de A Revolução Burguesa no Brasil, As implicações socioeconômicas da Independência pg. 49-108. (São Paulo: Globo, 2006).
[18]  Cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: uma leitura do carnaval carioca. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.
[19]  Um excelente exercício para a intelectualidade crítica é acompanhar o desenlace das independências de ex-colônias no século XX. Se a constituição de Estado e de Nação já foram extremamente complicadas em países que fizeram isso ainda na transição do século XIX para o XX, há que se pensar que até meados do século XX as contradições só se acentuaram e mínimo de potencial revolucionário desses processos se tornou cada vez menor. Tornar-se independente é realmente um avanço e uma conquista, entretanto, a constituição de um capitalismo dependente, constituir uma nação que esteja preparada – ao menos tenha esse objetivo – para competir no mercado mundial é muito mais cruel hoje em dia. Um caso com o qual os brasileiros poderiam aprender muito é a independência angolana: liderada por movimentos de esquerda, o país constituído por diversas etnias, com distintas línguas e costumes, passa a tornar o uso do português obrigatório após a independência, sendo muito mais cruéis que os colonizadores, “em nome da nação”. De fato, o português é um meio de ascensão, de diálogo com o mundo global e civilizado. Tais processos nos ajudam a desconstruir algumas noções que temos como naturais, tais como formação de estado e constituição – ou invenção – da nação.
[20]  Conferir SARTORI, Giovani Homo videns:televisão e pós pensamento (Edusc, 2001)