[pequeno prólogo: este texto foi escrito em 2010, durante o curso de graduação em Ciências Sociais e está longe de ser um tratado sobre o assunto. Eu, hoje, olhando daqui, passados 3 anos, mudaria muitas coisas, mas foi incrível lembrar dele, reler e ver como algumas reflexões me contemplam no entendimento do que se passa nesse junho movimentado no Brasil. Eis porque publico e compartilho]
E o que foi feito
E o que foi feito
é preciso conhecer
para melhor
prosseguir...
(...)
Que é cobramos o que
fomos
que nós iremos
crescer!
“O que foi feito devera” – Milton Nascimento
A análise de Florestan Fernandes
sobre a formação sociológica da moderna sociedade brasileira, através da nossa
lenta e estrutural revolução burguesa, é antes de tudo um tratado de fidelidade
àquela que Marx chamou de única grande ciência da humanidade: a história. Com a
lucidez de quem considera a contribuição clássica, ainda que enxergando os seus
limites, a formação sólida de Florestan, sua disciplina e seu rigor
metodológico, analisa o processo particular da constituição sócio-econômica
brasileira de braços dados com a análise histórica: como cada processo
histórico brasileiro conteve em si o germe e as condições que propiciaram o
desenvolvimento desigual e combinado do nosso capitalismo dependente.
A obra de Florestan Fernandes é
riquíssima e contribuiu diretamente na formação dos estudos sociais no Brasil.
Desde o início de sua trajetória, o rigor científico, a análise cuidadosa dos
fatos – ainda que não os desejados, mas os fatos -já demonstravam um
intelectual maduro e crítico, extremamente sensato na leitura da realidade
brasileira[1].
O potencial militante e mais radicalmente crítico da sociologia de Florestan
Fernandes é demonstrado após o encontro decisivo com o marxismo. Leitor de Marx
desde sempre, é no período em que passa no Canadá, lecionando na Universidade
de Toronto, diante de toda a desilusão que estar fora de seu país - e os motivos que o levavam a tal – lhe proporcionava, o materialismo histórico
pareceu inevitável para a análise dos processos que irrompiam a realidade
brasileira, fruto de uma longa caminhada histórica.
Este tombo marxista fica
claro na própria elaboração do clássico A revolução burguesa no Brasil.
A primeira parte do livro foi escrita em fins da década de 60 e é caracterizada
por uma análise sociológica de altíssimo nível das particularidades históricas
da formação do Estado brasileiro e da Independência como germe da nossa
Revolução Burguesa e todas as nuances que perpassavam as relações sociais entre
seus agentes. Porém, os capítulos finais do livro mostram Florestan na década
de 70 se utilizando fortemente do instrumental materialista marxiano, inspirado
em leituras de grandes marxistas, tais quais Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo,
potencializando a capacidade crítica da análise do processo de constituição do
capitalismo no Brasil.
A noção de desenvolvimento desigual
e combinado é chave para o entendimento do que Florestan vai chamar de
capitalismo dependente. Segundo ele, ao contrário do que algumas esferas do
pensamento social e econômico brasileiro concebem, a possibilidade de formação
do capitalismo na periferia não perpassa os mesmos processos clássicos dos
países de capitalismo central, em que as potencialidades revolucionárias e
humanizadoras da burguesia despontaram como parte do processo de
constituição dela enquanto classe hegemônica e dominante. Nos países
periféricos, o próprio passado colonial traz em si o germe de um capitalismo
dependente das antigas metrópoles, se forjando primeiramente com a exportação
de produtos coloniais, agrícolas. O passado colonial não dá somente o tom das
conciliações entre arcaico e moderno, como também pode ajudar a entender o
caráter autocrático da burguesia, que apoiada em práticas mandonistas,
paternalistas, forjadas no mito do homem cordial[2],
se valerá de uma espécie de violência legitimada, sagrada, para impedir
a manifestação das classes baixas, sua organização, sua irrupção para a
deflagração de uma situação explícita de lutas de classes.
Este trabalho pretende abordar
sinteticamente, a partir de obras e debates feitos principalmente depois do tombo
marxista, os desdobramentos históricos da relação entre Estado e sociedade
(como um todo e sociedade civil) no Brasil para tentar esboçar a situação atual
desta relação, dialogando com alguns autores da teoria do Estado contemporâneo.
Uma características da nossa
revolução burguesa que a distingue radicalmente dos processos clássicos é não
ter trazido consigo as características democráticas e nacionais de tais
processos. A burguesia brasileira foi desde sempre restrita ao circuito fechado
dos velhos e antigos donos do poder, legando pouco espaço de participação efetiva
– e ao menos a possibilidade de sua articulação – por parte dos setores
explorados, oprimidos; ao passo que também não forjou minimamente um
capitalismo autônomo das economias centrais, subordinando e coadunando seus
interesses aos do grande capital estrangeiro.
Entretanto, este trabalho defende
que, ainda que a nação não tenha sido o horizonte da prática burguesa efetivamente econômica de
construção de um capitalismo nacional, o discurso nacionalista foi (e é)
fundamental para a produção e reprodução do capitalismo dependente, da
desarticulação das classes oprimidas. Tentar-se-á exemplificar e abordar tal
ideia na última parte deste trabalho.
Fui escravo do reino
e sou
escravo no mundo em que estou
Mas acorrentado
ninguém pode
amar!
“EsseMundo é Meu” – Sérgio Ricardo
A canção de Sérgio Ricardo “Esse
mundo é meu” foi gravada por Nara Leão no álbum de 1964, ano do golpe, Opiniãode Nara. O álbum sintetizava as contribuições melódicas e rítmicas da bossa
nova, que permeava a música popular da época (ainda que “inconscientemente” ou
contra a vontade) mesclando canções de compositores populares como Zé Keti,
então morador de um morro carioca (lugar mítico de resistência e autenticidade
brasileira para a esquerda da época) com as canções da revolucionária parceria
de Tom e Vinícius de Moraes. O tom político e contestador do álbum, com toda
certeza influenciado pelas discussões dos artistas envolvidos direta e
indiretamente no Centro Popular de Cultura, não deixou que o primor pela forma
estética fosse afetado. O álbum planejado com cuidado pela intérprete é tão
rico e completo, demonstrando uma responsabilidade pela vida e pela arte, que
inspirou a criação de um espetáculo musical que seria uma catarse da indignação
de toda uma geração que contava com a revolução social e não com um golpe
militar[3].
A ditadura militar trouxe à tona,
talvez da forma mais explícita no desenvolvimento da revolução burguesa
brasileira, o caráter autocrático da burguesia, desmascarando as ilusões quanto
a uma burguesia que tivesse um interesse nas questões nacionais e na ampliação
da participação social.
O livro A ditadura em questão reúne
quatro ensaios de Florestan Fernandes e tem como objetivo disseminar “o debate
sobre todos os aspectos do assunto, sobre todas as consequências
que estão no bojo da transformação da sociedade civil e, principalmente, sobre todas
as mistificações e ilusões que falseiam a questão da relação da ditadura com a
sociedade civil” (FERNANDES, 1982, pg. 5). A conjuntura da escrita dos ensaios
é o início dos diálogos sobre abertura política, a anistia que o regime começa
a conceder aos presos políticos e a expectativa geral pela Assembleia Nacional
Constituinte. A preocupação de Florestan é com a liberalização política
outorgada pelo regime, aceita passivelmente pelos setores de esquerda e do
centro, que não conseguem ter em mente a dimensão histórica de alijamento das
manifestações populares no impulso pelas revoluções democráticas. Para
Fernandes a democratização da sociedade deve “escapar do controle de minorias
egoístas e destrutivas” e ser “movida pelas dissenções, aspirações e conflitos
das massas de oprimidos e deserdados”.
É realmente fascinante descobrir uma
análise tão perspicaz do sociólogo trinta anos depois, assistindo às
consequências do processo que ele anteviu. De fato, nossa democratização foi
outorgada. As classes altas e dominantes conseguiram por aparatos
institucionais, tecnológicos – e muita violência, como sempre – demonstrar sua
capacidade histórica de desarticulação das massas e hoje é consenso até entre
os intelectuais menos radicais o caráter pouco democrático da nossa sociedade
civil.
A Teoria do Estado Contemporâneo,
vigente em algumas esferas da atual Ciência Política, tem travado debates a
respeito da sociedade civil, tanto a nível nacional, regional, quanto a
possibilidade de uma sociedade civil global. É possível encontrar em nomes como
Bresser Pereira[4],
intelectual responsável pela reforma do Estado no governo FHC – a mesma levada
à cabo e mais radicalmente no Estado de São Paulo, de hegemonia psdebista – um
discurso sobre a necessidade de
democratização da nossa sociedade civil, que seria agora, a responsável
pela reforma do Estado (que coaduna com a noção neoliberal de um Estado mínimo
no que tange às responsabilidades sociais) e pelos serviços sociais que este
deixa de cumprir e se responsabilizar com tal reforma.
Entretanto, a maior parte destes
intelectuais se utilizam da noção gramsciana – que remete diretamente à Marx –
de sociedade civil como Florestan define: como uma espécie de “cavalo de
batalha” (FERNANDES, 1982, pg. 3). É necessário lembrar que a relação entre
Estado e Sociedade Civil para o pensador italiano é dialética – um está o tempo
todo em relação com o outro, tanto na construção da hegemonia quanto condução
das demandas[5].
Pensar Estado e Sociedade Civil como esferas autônomas é um erro cabal, que
pode levar a análises sociológicas que perdem de vista as peculiaridades e
contradições dessa relação – que no Brasil, diga-se de passagem, são muitas.
Mais uma vez Florestan Fernandes
contribui para o entendimento histórico desta relação. No capítulo A
concretização da Revolução Burguesa[6],
Florestan procura desmistificar e conciliar duas ideias fundamentais que
perpassam a nossa revolução burguesa: a constituição capitalista brasileira se
dá através da conciliação das antigas formas de poder coloniais com a
modernização dos interesses burgueses, de maneira a forjar um tipo de
capitalismo dependente das economias centrais. Logo, pela própria natureza do
nosso tipo de capitalismo, a possibilidade da burguesia trazer consigo aspectos
modernizadores para toda a sociedade é necessariamente inviável. A modernização da sociedade brasileira é
impulsionada por um pacto tácito de dominação de classe, onde a burguesia se
compromete com tudo aquilo que lhe seja vantajoso
O discurso liberal da Primeira
República era um “adorno”, objeto de ostentação, “um símbolo de modernidade e
civilidade” no qual a burguesia estava envolta. Como coloca Florestan:
Quando os outros grupos se puseram em condições de
cobrar essa identificação simbólica, ela se desvaneceu. A burguesia mostrou as verdadeiras entranhas, reagindo de maneira
predominantemente reacionária e ultraconservadora, dentro da melhor tradição do
mandonismo oligárquico (que nos sirva de exemplo o tratamento das greves
operárias na década de 1910, em São Paulo, como puras 'questões de polícia',
ou, quase meio século depois, a repressão às aspirações democráticas de
massas). (IANNI, 2000, pg.429)
Florestan constata que o espírito
modernizador deveria ser moderado e se delimitar às “fronteiras de difusão de
valores, técnicas e instituições instrumentais” suficientes para a formação de
uma economia dependente, já que ir além disso “representaria um risco: o de
acordar o homem nativo para sonhos de independência e de revolução nacional,
que entrariam em conflito com a dominação externa” (IANNI, 2000, pg. 430).
Este “circuito fechado” burguês
definiu o “inimigo comum”: no passado o escravo, ou o liberto, no presente, o
assalariado ou semi-assalariado do campo ou da cidade. A eclosão do regime de
classes fez com que “as reservas de opressão e repressão” desta sociedade em
formação fossem “mobilizadas para solapá-la e para impedir que as massas populares
conquistassem, de fato, um espaço político próprio, 'dentro da ordem'.” (IANNI,
2000, pg. 432)
Não fica difícil então entender a
reação de 1964, quando pensamos que o período que antecede o golpe fervilhava
de manifestações justamente dos setores que desde a Independência foram
duramente reprimidos e desarticulados. Para Florestan, os setores dominantes
“não tinham outro recurso, para se protegerem das consequências diretas ou
indiretas do novo modelo de desenvolvimento econômico, social e cultural, se não
neutralizar as crescentes pressões internas, favoráveis às reformas estruturais
e democráticas.” (FERNANDES, 1977, pg. 109).
Apesar de todos os problemas que se
possam apontar sobre este período que parte da bibliografia marxista tende a
chamar Nacionalismo e reformismo radical[7],
as Ligas Camponesas, as lutas urbanas, a articulação crescente e frutífera
de intelectuais e artistas da classe médias com as classes populares, além da
expectativa pelas reformas de base com João Goulart são motivos suficientes
para que as classes dominantes instaurem uma revolução, a fim de
assegurar as condições de segurança e desenvolvimento necessárias para os
interesses da burguesia nacional atrelada fortemente ao capital estrangeiro. É
necessário se ter em vista também a conjuntura histórica do “perigo comunista”,
que pôde propiciar uma justificada interferência do exército norte-americano na
articulação e manutenção do golpe militar.
Nas palavras de Florestan, “os
trabalhadores agrícolas e os operários são deslocados para essa fronteira da subversão
da ordem não mais como um perigo público potencial, mas como uma infecção
mortífera em processo” (IANNI, 2000, pg. 154). Até 1964 era possível às classes
possuidoras combinar “produtivamente cordialidade, violência orgânica institucionalizada
e ordem civil” (Idem, pg. 153), valendo-se do discurso do homem cordial,
que impulsionava “a perpetuação e a revitalização de todo um sistema
paternalista de poder (Idem, pg. 151)” ao passo em que se constituía de fato
como “uma simpatia ostensiva, que se esfrangalhava sob os menores
arranhões, até a forte estrutura menos visível mas sólida da simpatia
profunda entre iguais, que funcionava no grupo de parentes e em outras
esferas” (Idem, ibidem), permitindo que as classes possuidoras se iludissem a
si mesmas e em relação aos outros.
Tal ilusão acaba com o golpe: ora,
“a segurança nacional” está sob risco, e afinal, a nação é aquilo pelo qual
todo o cidadão deve zelar e querer bem. “Brasil, ame-o ou deixe-o.” E como
culpar a classe média brasileira de apoiar a ditadura, que nasce do seio da
sociedade civil, se ela declara em alto e bom tom que pretende cuidar da nação
que tanto a direita quanto a esquerda lutaram para legitimar, ensinando a
própria classe média a amar?
A preocupação de Florestan em
desmitificar o caráter não democrático e nacional da burguesia brasileira fica
mais clara quando entendemos que por muito tempo as próprias esquerdas
brasileiras contaram com o fortalecimento de uma burguesia nacional, que
bateria de frente com o Imperialismo e promoveria o fortalecimento das modernas
instituições democráticas e representativas. Tais medidas levariam ao
desenvolvimento de um capitalismo autônomo, que como tal, demandaria uma classe
operária forte e esclarecida e daí então pronta para a demanda socialista, como
lhe cabe no seu papel de sujeito histórico – o famoso etapismo stalinista.
Para elucidar tal atmosfera podemos
analisar superficial e sinteticamente as discussões no campo da cultura[8].
Os Estados Unidos enquanto uma nação jovem tinha diante de si uma defasagem
cultural diante das nações europeias. A fase capitalista que se vivia no início
do século XX demandava uma afirmação de nacionalidades fortes, visto que os
grandes impasses se travavam no bojo das nações. Uma das primeiras indústrias
que se fortalece pioneiramente nos Estados Unidos, satisfazendo tal exigência e
contribuindo para a sua construção ideológica enquanto nação hegemônica, é a
indústria cultural. A produção de quadrinhos, a legitimação do jazz como
manifestação puramente ianque, os filmes, dentre tantos outros produtos
norte-americanos, se tornaram produtos comerciais altamente rentáveis e
estratégicos ideologicamente, cuja imersão se deu principalmente nos países
latino americanos.
A esquerda brasileira, que procurava
combater o imperialismo, estava extremamente preocupada com a influência da
cultura norte-americana nas manifestações autênticas e legitimamente
brasileiras. Assim, a medida a tomar era preservar nossas manifestações
culturais autênticas das influências modernas. E a essa altura qual era o nosso
“produto” autenticamente nacional? O samba. [Um esforço sociológico não muito
grande pode nos fazer enxergar que a gênese sócio-histórica do samba e do jazz
tem muitos pontos em comum (tal qual o Tango argentino).]
Porém, como parar a cultura?
Como impedir que os jovens dos centros urbanos, com acesso ao rádio e alguns à
vinis não ouvissem a música que vinha de fora? E o que fazer quando as
influências se casam, e misturando samba, jazz, marcha, choro, cha-cha-chá,
nasce um novo jeito de tocar, a bossa-nova?
Ainda que parar a cultura seja
difícil, grande parte da arte engajada e seus críticos nacionalistas tentaram
fazê-lo, se voltando para o morro carioca e para o samba de raiz como
manifestações que deveriam ser preservadas e que carregavam em si a verdadeira
brasilidade. A bossa-nova, marca dos anos dourados, fruto da modernização dos
centros urbanos carioca e paulista, chegou a ser vista como arte alienada. Se a
“influência do jazz” foi vista como tão maléfica, como então aceitar que os
tropicalistas introduzissem guitarras elétricas em suas canções, deixando de
lado um instrumento verdadeiramente nacional, como o violão, para usar
uma mercadoria vinda do país imperialista, reiterando o nosso colonialismo
cultural?[9]
A esquerda acreditava na nação tanto
ou mais que a própria direita, que se utilizou dela para promover sua revolução
que docilizou o terreno para o capital estrangeiro.
Na coletânea de ensaios
Circuito Fechado, Florestan Fernandes, no terceiro capítulo, discute a
ditadura militar e os intelectuais na América Latina. Sua exposição considera
três aspectos primordiais na análise da ditadura militar: o primeiro deles é
que a ditadura é, na realidade, uma ditadura de classes. Florestan argumenta dizendo
que as formas democráticas de governo precedentes se caracterizaram, mesmo
quando havia apoio popular, por uma concentração do poder estatal, sendo um
“sistema flexível de opressão e de dominação autoritária, através do qual as
classes altas e alguns círculos privilegiados das classes médias monopolizavam
o poder politicamente organizado” (FERNANDES, 1977, pg. 106). Segundo aspecto é
a perspectiva tecnocrática que a ditadura teve que relegar a si, na busca de
forjar um discurso em termos “neutros”, “profissionais”, que por sua vez foi
possível através da concepção de “desenvolvimento com segurança” (Idem). O
terceiro aspecto foi o golpe proclamar a si mesmo como uma “revolução”,
legitimando-se através do “seu próprio
'poder revolucionário' e de sua capacidade de submeter todos os ramos do estado
(inclusive o parlamento e a justiça) e todas as camadas da sociedade às
orientações 'institucionais' militares”. (FERNANDES, 1977, pg. 107).
A ideia de revolução teria sido
retomada do passado (remetendo à revolução burguesa e não à revolução
proletária) como “uma necessidade psicossocial, moral e política” (FERNANDES,
1977, pg. 109)
A ênfase na necessidade de desenvolvimento rápido,
auto-suficiente e contínuo estendeu-se a
todas as classes através da propaganda, dos escritos do intelectuais ou dos movimentos de massa e da influência de algumas agências
internacionais, contribuindo para simplificar a redefinição cultural da ideia de
revolução. Ela foi mantida isolada do seu significado real, enquanto
concepção de classe e como 'projeto de classe'. (Idem)
Ó senhor cidadão
eu quero saber
eu quero saber:
com quantos quilos de medo
com quantos quilos de medo
se faz uma tradição?
“Senhor Cidadão” – Tom Zé
Conceber o Estado tal qual Marx – e
Florestan – é entendê-lo como instrumento da acumulação capitalista, e não como
um organismo político autônomo. Assim, conforme mudam as necessidades de
produção e reprodução do capital, a forma de Estado, formulação, regulação e
execução do poder mudam também. Desta forma, entender os limites do “poder
político-militar”, como quer Florestan no ensaio anteriormente citado, é ter em
mente que a ditadura “está condenada a desaparecer tão logo se torne
necessária”. (FERNANDES, 1977, pg. 115)
Discutir as funções econômicas e
sociais que a ditadura cumpriu ao longo dos anos em que se manteve no poder
extrapolam a intenção primeira deste trabalho. Todavia, este assunto deve ser
amplamente debatido não só em termos das políticas econômicas, mas no tipo de
sociedade que a ditadura formou e que reflete nos dias de hoje. A obra de Tom
Zé[10],
assim como de tantos outros compositores da música brasileira, oferecem grandes
pistas para entender que o quadro de ampla influência da mídia na formação da
opinião pública, o incentivo ao consumismo, individualização, desencanto,
tristeza, pânico e medo, legitimação da violência que vivenciamos hoje de forma
tão exacerbada, foram impulsionados durante o regime.
Desta forma, o trabalho agora se
volta para o momento de abertura política, de flexibilização do regime. Na
síntese de Florestan, os militares “devorados pelo monstro que inventaram e
produziram não tem ao alcance da mão outra saída segura. Veem-se
compelidos a selar uma segunda aliança, na esperança de que a da costela da
ditadura nasça seu complemento político, a apregoada 'democracia pela qual
sempre ansiamos'... (FERNANDES, 1982, pg.8)
Ou seja, o regime dá sinais de
ruínas e pretende ele próprio conduzir a cena política do que virá depois dele.
Florestan Fernandes enxerga a concessão da oposição tanto de centro quanto de
esquerda (a que ele chama de esquerda da burguesia, e não proletária) em
permitir que os militares deem o tom da transição, sem desmistificar seu
“gradualismo democrático”. Acusa a oposição de não se aproveitar do terreno
movediço no qual se encontra ditadura, levando às ultimas consequências o
combate decisivo, aberto, direto e permanente[11].
Interessante notar que em entrevista
à Ensaio, Florestan fala sobre o PSDB – que reunia os dissidentes mais
radicais e heterogêneos do PMDB – e sua
“predisposição social-democrata” oscilante e moderada - uma tentativa, ao menos retórica, de
instaurar o welfare state na periferia. Esta crítica à oposição, em
estar oscilante e pouco incisiva na pressão da abertura política, revela suas
consequências na hegemonia peessedebista que o Brasil vivenciou nos anos 90,
com o governo de FHC, e as medidas políticas do estado de São Paulo, cuja
hegemonia ainda vivencia. A posição oscilante de Mário Covas, que Florestan
analisa, “quase privilegiada, porque está dentro, mantendo-se fora, deslocando
em uma posição altamente vantajosa e correndo o páreo como se não estivesse
nele” (FERNDANDES, 1989, pg. 151) demonstra o quão estratégica é a atitude de
neutralidade que esta oposição forjou, mantendo-se afastada nas manifestações
populares, posicionando-se contra o autoritarismo militar, ao mesmo tempo em
que aglutina “interesses econômicos variados, assim como religiosos,
intelectuais, comerciais e financeiros”, mantendo assim a aparência de que a
ditadura está acima das classes, e de que a questão da ditadura se encerra na
sua derrubada – ainda que concessiva – sem se deter no fato de as massas
populares e oprimidas continuassem sem voz no processo e na participação
política efetiva do país.
Eis aqui o ponto defendido
exaustivamente por Florestan: a única forma de haver uma democratização de fato
da sociedade civil brasileira é através da mobilização popular; da tomada de
consciência das classes subalternas da sua “privação de uma cidadania plena”,
de que são “despojados de peso e voz”[12].
As classes dominantes provaram ao longo dos séculos – como já exposto – que não
tem nem interesse e nem capacidade pela própria constituição dependente do
capitalismo brasileiro de provir uma situação política em que a luta de classes
realmente se efetive, e as demandas dos oprimidos possam impulsionar
transformações da sociedade ainda que dentro da ordem.
Diante da conjuntura de
transformação Florestan retoma exaustivamente o ponto de que a democratização
da sociedade só pode se dar radicalmente, através das classes oprimidas e
subalternas. Caso contrário o “pluralismo democrático” não passará de mera
“verborragia”. E de fato a história mostrou que Florestan tinha razão.
Enquanto deputado, Florestan pôde
dar testemunhos e balanços sobre a Assembleia Constituinte que esclarecem muito
o quadro que temos hoje. Por exemplo, seguindo mais uma vez os passos
históricos, as medida provisórias – amplamente confundidas com decreto-lei –
acabaram se tornando instrumento “do arbítrio do poder presidencial, do
poder imperial, da república autocrática”, mantendo a ostensiva concentração de
poder no executivo em detrimento dos outros poderes.
A oposição não tinha um projeto
claro para a Constituinte e os pontos de importância prática da sociedade como
um todo passaram ao largo da discussão. Ainda que a esquerda se apresenta-se
como uma resistência, perdeu em pontos fundamentais, como direitos e a questão
da reforma agrária, tanto porque não é de interesse algum da burguesia na
promoção dessas reformas, quanto pela falta de uma articulação mais radical e
ativa entre os constituintes e as mobilizações das classes populares.
Outro ponto vivido por nós na
contemporaneidade e do qual Florestan já falava era a “desmoralização do
parlamento”. Esta desmoralização é fundamental no jogo do executivo de se
manter como o poder central, ainda que por trás da cena. A população culpa os
parlamentares, os partidos de esquerda fazem protestos retóricos nas tribunas -
“para isso servem os parlamentos![13]”,
e não se percebe a força do executivo agindo na surdina. Mas “para que o
parlamento e todo o estado mudasse de caráter, seria preciso que a própria
sociedade civil desse maior peso, maior força às classes trabalhadoras”[14].
E continua: “como dizem os dois mestres, Marx e Engels, a chave está na
sociedade civil. Estado e sociedade civil são interdependentes, mas o processo
de transformação se desencadeia a partir da classe e não do estado”[15].
Para isso, o autor defende que é necessária
a orientação numa perspectiva revolucionária, exigir consciência socialista,
além de um partido que seja capaz de difundir o socialismo: proletário,
marxista e revolucionário. E ao fazer essa ressalva já enxerga no PT, partido
ao qual então era filiado, que se este não ficasse “numa posição socialista”
não faria “sequer um revolução dentro da ordem” seria “apenas instrumental”
para uma “modernização dirigida a partir de fora e de cima”[16].
E a história mais uma vez mostra que Florestan estava certo.
Outra discussão de Florestan, desta
vez no último artigo de A ditadura em questão, aborda outro ponto muito
latente em nossos dias: a questão da violência. Vale a pena reproduzir seu
raciocínio sobre a violência institucionalizada da sociedade industrial:
a civilização industrial moderna possui
uma sociedade na qual a massa de violência não apenas é normalmente
muito alta; é também rotinizada; é dispersa por todo o corpo da
sociedade; é concentrada nas instituições-chave de dominação direta e indireta
de classe e, reciprocamente, nas instituições de autodefesa e de contra-ofensiva
das classes trabalhadoras; e é especializada em órgãos criados para “regular”
ou “conciliar” os conflitos de classes (em escala individual e coletiva), sendo,
pois, “legitimada” no âmbito do direito positivo e da ação “unificadora” do Estado.
(FERNDANDES, 1982, pg. 133)
Há
também o que Florestan chama de violência caótica e anômica, tida como “útil”
ou “mal necessário”, que constitui a base sobre a qual opera a violência
institucionalizada. Esta violência está imersa entre as classes subalternas.
Como um pensador dialético, se
Florestan pensa a violência da classe dominante é porque pretende refletir
sobre a contraviolência: “à violência das classes possuidoras contrapõe-se a
contraviolência das classes oprimidas e exploradas” (Idem, pg. 134). E continua
dizendo que a contraviolência “pode libertar-se dos liames das funções
defensivas e manifestar-se como 'força motriz' da história, isto é, como fator
de desagregação da produção capitalista, da sociedade burguesa e do Estado
correspondente, qualificando-se como contraviolência revolucionária” (Idem,
ibidem).
Para cumprir sua responsabilidade
de democratizar a sociedade civil e aprofundar sua ordem político-legal, as
classes subalternas, entretanto, deveriam gerar, segundo Florestan, o “direito
à revolução”, se quisessem “sair de um estado de subalternização permanente”
(Idem, pg. 155). Para isso, Florestan entende que é necessária uma “rotação
histórica prévia” que entende por: a) “absorver e eliminar de seu meio social
intrínseco a violência anômica e destrutiva, que impede a unificação, a
solidariedade e o desenvolvimento independente de classe” e b) “acumular uma
massa histórica de violência positiva e criadora que possa ser transformada em
fonte de autodefesa e de contra-ataque, ou seja, que possa alimentar a solução
dos antagonismos de classe a nível da organização da sociedade civil e do
Estado” (Idem, pg. 156).
Telas falam colorido
de crianças coloridas
De um
De um
gênio
televisor
E no andor de nossos novos santos
O sinal de velhos tempos
Morte,
E no andor de nossos novos santos
O sinal de velhos tempos
Morte,
morte,
morte
ao amor!
“Milagre dos peixes” – Milton Nascimento
Para quem assiste os tele-jornais,
ouve as notícias, partilha dos comentários do senso comum, lê a revista Veja,
ou simplesmente foi educado para pensar que o mundo se define e se limite a
esses universos de entendimento, pode soar um absurdo, no mínimo uma utopia
descabida o desejo de Florestan pela rotação histórica das classes subalternas.
A televisão parece se deliciar em sangue, cultuar o medo. A violência das
grandes capitais atinge um status no imaginário do país como um todo a ponto de
não nos sentirmos tocados pela crescente desumanização que este mundo, de tempo
acelerado, impõe cotidianamente, a todas as esferas da vida social. A
reificação do homem, o fetiche abusivo e absurdo da coisa, do ter, da
mercadoria, da imagem, do parecer crescem e demandam tanto tempo da existência
do cidadão de bem, que a sensibilidade pelos absurdos que ouve cotidianamente
nos tele-jornais, nas esquinas e nos botecos parece ter atrofiado.
Florestan anseia por uma violência
produtiva, por uma solidariedade de classes, como pensar isso sendo possível se
a mídia, que contém o maior poder de formação da consciência, ensina em doses
homeopáticas e constantes que os movimentos sociais são baderneiros,
criminosos? A democracia é o máximo, mas há que ser representativa. Nossos
representantes habitam a longínqua Brasília e se por acaso nós não ficamos
satisfeito com o que fazem – ou não fazem – em nosso nome e vamos até a ilha da
política reivindicar e tentar ser ouvidos, é com a polícia que encontramos, e
não com eles. E aí, vê-se no jornal, depois do trabalho, um bando de baderneiro
atrapalhando o andamento do parlamento. Ou então, vemos em um programa
humorístico, com ar de denúncia e “engajamento político” as falcatruas que
perpassam a nossa política, sua roubalheira, seu descaso, e antes de voltar pra
correira do trabalho, para as prestações do fim do mês, nos limitamos a pensar:
“é, tudo a mesma coisa! Tudo um bando de vagabundo!”. E nunca nada dá em nada,
nunca nada vale a pena.
E assim o barco vai correndo: as
vezes algum governo com um pouco mais de compaixão, distribui alguns trocados
para os mais miseráveis, enquanto a flexibilização da produção capitalista
aumenta o contingente de desempregados estruturais. O medo, o pânico, a
tristeza, a atomização dos indivíduos só cresce. O movimento adolescente emo
(os emotivos) são quase como o “mal do século” dos poetas em fins do século
XIX. Mas temos internet, uma classe média que consome descontroladamente, em
diversas vezes... e quantos não dizem ao ver a “balbúrdia” na televisão: “ai
que saudade da ditadura!”!?
Eu vi uns patins pra você!
Eu vi um Brasil na tevê...
“Bye bye Brasil” - Chico Buarque
Se a nação não esteve no horizonte
das preocupações da burguesia no seu projeto de acumulação e reprodução de
capital, podemos dizer que a necessidade de se forjar ideologicamente a ideia
de nação se faz presente desde a Independência, momento que Florestan
identifica como início do processo estrutural de revolução burguesa no Brasil.[17]
É radicalmente diferente pensar o
sentido de nação para os países de formação clássica. Por exemplo, a França. Um
país de dimensão territorial muito menor que o Brasil, onde realmente a
constituição da língua francesa enquanto oficial, na transição da baixa Idade
Média para o início da Idade Moderna, é realmente revolucionária perante o uso
obrigatório do latim, instituído pelo mundo feudal, uma vez que era a língua
realmente falada por maior parte da população francesa. Além do mais, a
unificação e o Estado burguês representaram de fato um avanço nas relações
sociais para grande parcela população. Não obstante, há o legado memorial da revolução
francesa.
É realmente necessário forjar uma
ideia de nação em uma porção de terra continental, que foi colonizada em
fragmentos, mantendo concomitantemente diferentes tempos históricos, tipos de
produção e reprodução social, línguas e costumes. Realmente, pensar Estado,
ainda mais na conjuntura do início do século XX, é necessariamente pensar em
Nação. Uma ex-colônia precisa se legitimar frente à sua ex-metrópole e às
outras nações com as quais pretende negociar e submeter. A noção de nação é
sempre relacional, sempre precisa ser pensada na relação com outras nações.
O campo da cultura talvez ofereça
bons exemplos para uma análise breve, superficial e sucinta das aspirações
nacionalistas desde a Independência até os dias de hoje.
Desde os românticos, tem-se a
tentativa de forjar uma cultura autenticamente brasileira, que relatasse o
Brasil, sua particularidade, que criasse sua história. O apelo indianista de
José de Alencar demonstra mais uma tentativa de assimilar o modelo europeu
romântico àquilo que era possível conceber em termos de Brasil, do que
efetivamente criar algo que reproduzisse as nossas particularidades históricas,
tal qual Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida fizeram.
O modernismo foi outra tentativa de
brasilidade. A antropofagia, a capacidade de abrasileirar o que vinha de fora,
mesclando com os elementos que são próprios da nossa formação histórica,
produziu realmente um momento extremamente fecundo da cultura brasileira.
Paradoxalmente, esse movimento foi apropriado pelos interesses estatais:
a política cultural do primeiro período
de Getúlio Vargas (1930-45), em grande parte obra dos intelectuais e artistas
modernistas, de esquerda e de direita (Paulo Duarte, Carlos Drummond de
Andrade, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, entre outros)
que atenderam ao chamado poder central de compor a burocracia federal da
cultura, “institucionalizando” e ideologizando os símbolos e patrimônios da
identidade brasileira” (NAPOLITANO, 2007, pg. 590).
Não
se deve perder de vista que o governo de Getúlio foi responsável pela
sistematização da ideia de nação, instituindo o português como língua oficial e
sua obrigatoriedade de ensino e fala, além das políticas culturais, a
moralização do samba e criação de “escolas de samba[18]”.
O rádio foi fundamental para o governo de Getúlio e por muito tempo será o
principal mecanismo de integração social de um continente tão diverso e criará,
ainda que de forma “integradora, centralista e
autoritária” um “idioma cultural nacional-popular”.
Este princípio de brasilidade, legado do
primeiro período getulista, é incorporado pela arte engajada comunista dos anos
1950, na “defesa da nação-povo contra a alienação e a dominação cultural
'imperialista'” (Idem, ibidem). Os anos
50 enchem de fato o povo brasileiro de orgulho: o campeonato mundial de
futebol, a bossa nova, os automóveis e nada melhor para iniciar uma nova década
do que uma nova capital.
A preocupação nacionalista permeou
diversos círculos culturais da época não apenas no eixo Rio-São Paulo: o fato é
que de um jeito ou de outro, a busca por incitar a brasilidade dos brasileiros
pela arte era quase um dever cívico. As aspirações pelas tarefas que a nossa
burguesia “ainda” não tinha cumprido em relação à nação e à democracia,
pairavam no ar, como ventos revolucionários [ao menos para classe média urbana
esclarecida, para os movimentos sociais do campo e da cidade].
O golpe de 1964 foi mais uma vez a
apropriação do discurso de um movimento cultural (exceto a questão da terra,
que não foi e nem nunca será resolvida a partir de cima): não a toa golpe se
intitula revolucionário.
Concomitantemente ao golpe, a
televisão cresce no país. A tevê terá o mesmo peso para os militares que o
rádio teve para Getúlio, principalmente a Rede Globo. A formação da opinião
pública, omissão de fatos, transmissão de outros, geração de prioridades e
assuntos: a televisão cresce e vai se ramificando, se alastrando conforme o
consumo e a propaganda ganham impulso por todo o país ao longo das décadas. É
através da televisão que a maioria dos brasileiros conhece grande parte do
território que compõe a nação.
Não é de espantar o caráter utópico
do Rio de Janeiro para os brasileiros como um todo (menos os paulistas, por
questões históricas outras) como cidade cartão-postal do Brasil. Capital desde
a vinda da família real até 1960, o Rio de Janeiro forjará a imagem da nação
tanto para o próprio Brasil quanto para o exterior. E é impressionante que
mesmo com todas as contradições latentes que a cidade carrega, a imagem ainda é
eficaz: o cartão-postal será palco do confronto e confraternização das nações
na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016. [E para tal, podemos esperar
um grande massacre nas favelas, a fim de deixar a cidade “apresentável” aos
grandes milionários do mundo todo que se divertirão no Rio durante os jogos].
As novelas exibidas quase
diariamente reproduzem geralmente a mesma narrativa: os conflitos de uma
família burguesa, suas relações paternalistas com seus doces e prestativos
funcionários, integrantes de uma classe média, educada e consciente. Os pobres
quando aparecem ou são bandidos ou são idealizados, mas nunca revolucionários.
O patrão quando é ruim, é um ruim maniqueística, porque afinal de contas,
sempre há um mocinho bom caráter que herdará toda a fortuna e tratará a todos
com respeito e solidariedade. As novelas nos ensinam o que é normal,
como agir para agradar o patrão, e nos ensinam que o patrão “é gente como a
gente”. As novelas nos ensinam a consumir, a moldar os corpos. As novelas são
alívio para alma. São o mais próximo de narrativas a que um povo, que foi
privado de cultura literária, tem acesso.
Nos tele-jornais aprendemos que o
Brasil não é o país dos sonhos, mas um dia pode ser, pois se não vemos as
nossas notícias, acompanhamos passo a passo tudo que se passa com as nações
desenvolvidas [das quais somos dependentes financeiramente, para qual
exploramos exaustivamente nossa população] para aprender com elas. Dos nossos
vizinhos pobres, ou dos países mais miseráveis que o nosso aprendemos a pensar
só “que pena!”, longe de entendermos na particularidade histórica de seus
processos, semelhanças com a nossa miséria[19].
Os meios de comunicação são uma
forma velada de violência, mas extremamente útil e eficaz, que nos ensina a ser
brasileiros, vendo o pouco que nos mostram das injustiças terríveis que se
alastram pelo país, ajudamos a legitimá-las pelo bem da nação.
A política se parece cada vez mais
com um comercial bem produzido, que vende obras, imagens e carisma. Um pensador
italiano, em extrema crítica ao momento histórico que vivemos, que constitui o
que ele chama de “homo videns”[20],
argumenta que a formação de hegemonia e coesão política não se faz mais pelos
partidos; o candidato não angaria votos pela plataforma de ação política, sua
articulação com a base, menos ainda com a ideologia do partido. Todos eles
aprenderam que a “propaganda é a alma do negócio” e por fim nossa política, que
já é um circo mesmo, não passa de uma questão de marketing.
NACIONALISMO
Mauro
Iasi
Nação é um retângulo de pano
uma música
alegre.
Nação é um esforço insano
com o qual
um povo triste e pobre
encobre
seus enganos.
À PÁTRIA QUE ME PARIU
Mauro
Iasi
Não me agradam as Pátrias.
Nada me dizem as fronteiras,
talvez por serem bordadas em sangue
no corpo da minha bandeira.
Se tenho alguma sina,
que seja, então, brasileira,
mas antes do verde e amarelo
queria a aquarela inteira.
No fundo pintaria o negro
desta noite derradeira.
Um negro que saiu da África
que já foi a terra da minha companheira.
Do olho de minha amada
roubaria uma centelha
incendiando a manhã com o vermelho
do sangue da
humanidade inteira.
Depois de toda essa reflexão, é
difícil concluir tal como fez Florestan: enxergar nos galhos dos presentes, as
folhas do futuro. Difícil tecer um panorama, apontar caminhos e direções. Mas
não podemos nos render. É dever do intelectual, pela dignidade de assim ser
chamado, cultivar a força crítica do pensamento, a liberdade de poder pensar
com a própria cabeça. Um grande pensador russo disse uma vez que uma
característica da modernidade é falar pela palavra do outro, discorrer através
de citações. O discurso não é mais enfático, afirmativo, construtor: sua
tendência é cada vez mais concessiva, precisamos nos remeter a palavra do
outro, construir uma colcha de retalhos para então ousar dizer aquilo que passa
pela nossa essência, o que diz respeito às nossas inquietações. Marx já
reclamara disso, de como nem a liberdade de estilo lhe era cedida.
Em tempos de alta produtividade
acadêmica, onde papéis dizem mais do que somos, do que realmente a nossa
caminhada e construção cotidiana, ousar pensar com a própria cabeça beira o
subversivo. Somos ensinados a recortar o objeto, a ir com calma, a rever e
rever, a pedir licença pra pensar. Talvez venha daí a ousadia em dizer que esse
trabalho tentou. E não dizer grandes verdades, ou verdadeiras sínteses, mas se
permitir a liberdade de dizer, de articular as leituras com a realidade latente
do cotidiano.
Apesar do tom cético da minha fala,
acredito que é dever de todo pensador crítico, que tem a perspectiva da
transformação, do devir, manter em si uma positividade que norteie as ações.
Concluir sempre com sorriso, e não aumentar a tristeza. Diante da tristeza
crescente que isola as pessoas, a competição que as torna indiferentes, uma
sociabilidade reificada, onde o ter determina o ser, é necessário humanizar o
mundo. Tornar as cores brilhantes novamente, os afetos importantes, o coletivo
uma realidade cotidiana palpável. Transformar o cotidiano, desde a forma de se
alimentar à maneira de tratar qualquer conhecido na rua. Se queremos um mundo
melhor é porque acreditamos nas pessoas, que todas elas merecem um mundo
melhor. Nada melhor do que começar exercitando isso no cotidiano, transformando
as esferas, reiterando em cada diálogo como o capitalismo é desumano, sua
produção e reprodução são irracionais. Fazer viver na consciência das pessoas
próximas, a partir das mediações que lhes sejam possíveis, a essência das
coisas.
Temos diante de nós um mundo cheio
de potencialidades, é necessário pensar em formas de transformar tais
potencialidades em individualidades para si, onde cada ser possa tirar
proveito das objetivações do gênero humano para se emancipar das reificações do
capitalismo e então ser mais um a pensar e construir um novo mundo, lutar
verdadeiramente por ele.
Referências
bibliográficas:
BAKHTIN, Mihail. (VOLOCHINOV) Marxismo e Filosofia da
Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade civil: sua
democratização para a reforma do Estado. In BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, WILHEIM, Jorge e SOLA,
Lourdes (orgs) Sociedade e Estado em Transformação. UNESP/ENAP 1999.
67-116.
DUARTE, Newton. A individualidade
para-si: contribuição a uma teoria
histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1996.
FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
_____. A
Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2006.
_____. Constituinte e revolução in Revista
Ensaio nº17/18. Editora Ensaio, 1989.
_____. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o
“poder institucional”. São Paulo: Hucitec, 1977.
FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão (org) Nacionalismo
e Reformismo radical (1945-1964) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007. (As esquerdas no Brasil; v.2)
GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: uma
leitura do carnaval carioca. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.
IANNI, Octavio. (org) Florestan
Fernandes: sociologia crítica e militante. São Paulo: Expressão Popular,
2004.
IASI, Mauro Luis. Meta
amor fases: coletânea de poemas. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A
Ideologia Alemã. Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner,
e do socialismo alemão em seus
diferentes profetas. 1845-1846. São
Paulo: Boitempo, 2007
_____.
Sobre Literatura e Arte. São Paulo: Global Editora, 1980
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura
Brasileira: (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. São
Paulo: 34, 2008
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Sociedade Civil, entre o
político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências
Sociais – Vol. 18 nº52 junho/2003, pg. 185-202.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo
brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV (Record, 2000).
SARTORI, Giovani Homo videns:televisão e pós
pensamento (Edusc, 2001)
TINHORÃO, José Ramos. História social da música
popular brasileira (Lisboa: Caminho, 1990)
UNESP – Universidade
Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”
Campus de Araraquara
Curso de Ciências
Sociais
Desmistificando o Estado, a Sociedade
Civil e a Nação
Diálogos com a obra de Florestan Fernandes.
Trabalho final apresentado à professora
Maria Orlanda Pinassi como requisito à aprovação na disciplina Tópicos
Especiais Em Pensamento Sociológico: Pensamento Social No Brasil.
Isabela
Martins de Morais e Silva
Araraquara, junho de 2010.
[1] Um exemplo do reconhecimento da contribuição
constante de Florestan à leitura da realidade brasileira está presente na
análise de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira: (1933-1974):
pontos de partida para uma revisão histórica. (São Paulo: 34, 2008). Além de
grandes intelectuais tais como Antonio Candido, Otavio Ianni.
[2] Conferir a discussão sobre o homem
cordial que Florestan Fernandes desenvolve no último artigo do livro A
ditadura em questão (São Paulo: T. A. Queiroz, 1982), Nos marcos da
violência pg. 127-164
[3] A respeito do engajamento cultural nos anos
1960 conferir o trabalho de Marcelo Ridenti Em busca do povo brasileiro:
artistas da revolução, do CPC à era da TV (Record, 2000).
[4] Cf. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade
civil: sua democratização para a reforma do Estado. In
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos,
WILHEIM, Jorge e SOLA, Lourdes (orgs) Sociedade
e Estado em Transformação.
UNESP/ENAP
1999. 67-116.
[5] Vale registrar que ainda que o caráter mais
radicalmente crítico de sua obra tenha se perdido ao longo das últimas décadas,
Marco Aurélio Nogueira produziu um excelente artigo retomando a noção
gramsciana de sociedade civil, tentando decantá-la das utilizações errôneas no
seio das atuais análises políticas. cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Sociedade
Civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira
de Ciências Sociais – Vol. 18 nº52 junho/2003, pg. 185-202.
[6] Capítulo presente em A Revolução Burguesa
no Brasil. Para este trabalho e as citações retiradas de mencionado
capítulo, nos utilizaremos do excerto presente na coletânea organizada por
Otávio Ianni (2000) Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante,
editada pela Expressão Popular, retirada da edição de 1977 do original de
Florestan, editado pela Jorge Zahar.
[7] Conferir FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel
Aarão (org) Nacionalismo e Reformismo radical (1945-1964) Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (As esquerdas no Brasil; v.2)
[8] Sobre as discussões do período conferir o
artigo de Marcos Napolitano Forjando a revolução, remodelando o mercado: a
arte engajada no Brasil (1956-1968) in Nacionalismo e Reformismo radical
(1945-1964) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (As esquerdas no
Brasil; v.2), pg. 585-617
[9] Esta leitura está fortemente presente na
obra de José Ramos Tinhorão História social da música popular brasileira
(Lisboa: Caminho, 1990). Ainda que não concordemos aspectos fundamentais da
análise sobre o desenvolvimento da cultura, há que se destacar que sua obra é
de fundamental importância para qualquer estudo sobre cultura brasileira,
embasada em registros históricos e pesquisas de alto rigor metodológico.
[10] Destacamos aqui os álbuns A grande liquidação
(1968), Tom Zé (1970) e Se o caso é chorar (1972).
[11] Cf. FERNANDES, 1982, pg. 8
[12] FERNANDES, 1989, pg. 155
[13] Idem, pg. 144-145
[14] Idem, pg. 126
[15] Idem, pg. 127
[16] Idem, pg. 142
[17] Conferir o capítulo 2 de A Revolução
Burguesa no Brasil, As implicações socioeconômicas da Independência pg.
49-108. (São Paulo: Globo, 2006).
[18] Cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do
samba: uma leitura do carnaval carioca. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2009.
[19] Um excelente exercício para a intelectualidade
crítica é acompanhar o desenlace das independências de ex-colônias no século
XX. Se a constituição de Estado e de Nação já foram extremamente complicadas em
países que fizeram isso ainda na transição do século XIX para o XX, há que se
pensar que até meados do século XX as contradições só se acentuaram e mínimo de
potencial revolucionário desses processos se tornou cada vez menor. Tornar-se
independente é realmente um avanço e uma conquista, entretanto, a constituição
de um capitalismo dependente, constituir uma nação que esteja preparada – ao
menos tenha esse objetivo – para competir no mercado mundial é muito mais cruel
hoje em dia. Um caso com o qual os brasileiros poderiam aprender muito é a
independência angolana: liderada por movimentos de esquerda, o país constituído
por diversas etnias, com distintas línguas e costumes, passa a tornar o uso do
português obrigatório após a independência, sendo muito mais cruéis que os
colonizadores, “em nome da nação”. De fato, o português é um meio de ascensão,
de diálogo com o mundo global e civilizado. Tais processos nos ajudam a
desconstruir algumas noções que temos como naturais, tais como formação de
estado e constituição – ou invenção – da nação.
[20] Conferir SARTORI, Giovani Homo videns:televisão
e pós pensamento (Edusc, 2001)